• Nenhum resultado encontrado

As zonas de experiências e devires como zonas performativas

2. TRAÇAR COORDENADAS, CRUZAR TERRITÓRIOS

2.5. As zonas de experiências e devires como zonas performativas

As experimentações estéticas relatadas visam, a partir de um aguçamento da percepção para as normas estabelecidas entre corpo e espaço, a efetivação de desvios e subversões dessas normas. Ao performar outros comportamentos possíveis em cada contexto experimentado, geram-se outros modos de existir pelo corpo, outras perspectivas para os espaços e outras possibilidades de liberdade estética, política e sexual, das quais carecemos em nosso cotidiano (Gómez-Peña, 2013, p. 448).

Nos trabalhos refletidos aqui, as zonas de devires se dão como uma zona de criação expandida. Assim, é a própria noção de criação que é expandida, ou seja, essa não se dá apenas num momento restrito, inscrito no tempo cronológico dos ensaios, mas, ao contrário, está difusa entre as possibilidades de todas as experiências da vida diária, quando as intensidades podem ser percebidas pelo artista e, posteriormente, investigadas e aprofundadas na sala de ensaio, possibilitando, através dos princípios e procedimentos técnicos específicos, um diálogo contínuo com as experiências singulares vivenciadas no cotidiano. A noção de uma zona de devir está ligada aqui justamente a essa perspectiva da criação estética como uma possibilidade sempre latente, indefinida e não prescrita.

A zona de devires pode ser disparada a partir de uma ampliação da consciência para as relações vividas entre o corpo e o ambiente no momento em que se está executando uma ação, seja num ensaio, ou em outros momentos no cotidiano. Essa ampliação introduz, no próprio ato, uma qualidade de performance, vinculada, assim, a uma atitude perceptiva em relação ao próprio corpo em movimento. Atitude que dispara e propicia processos de investigação estética do corpo, nos quais este é sentido e pensado como um entre-dentro-fora, que percebe o entorno de si ao mesmo tempo em que se envolve e se afeta nessa experiência.

Segundo Petronílio:

O corpo é esse espaço demoníaco, que nos permite fazer complexos movimentos para dentro e para fora, de entradas e saídas através de pequenos gestos. Os gestos são performativos, como um evento, um acontecimento que nunca se repete. Cada corpo representa e multiplica inéditos sinais no mundo. Isso porque ele sempre já está no mundo e faz parte dessa representação que é o mundo. Cada corpo é um mundo e cada um inventa mundos possíveis (2015, p. 2).

O redimensionamento da percepção do artista, em relação às experiências vivenciadas em seu cotidiano, provoca uma desestabilização do corpo e uma relação mais sensível e intensiva com os aspectos do mundo. Essa desestabilização da percepção se relaciona diretamente às imagens e sensações vivenciadas nas zonas de devires, provocadas nos espaços e nas relações entre os corpos e os ambientes.

A partir dos pensamentos do Coletivo La Pocha Nostra, Souza diferencia as noções de “zona civil” e “zona performativa”: a primeira, diz respeito à vida ordinária, às lógicas da vida social que organizam nossas ações no cotidiano, regulada pelos valores que regem a ordem social e moral da nossa sociedade; a segunda, refere-se ao campo de ação sensível-criativa do artista em experimentação de si e do mundo, pelo viés da subversão dos modos ordinários de utilização do corpo e dos espaços, mais próximos de uma ética do que de uma ordem.

As zonas de devir são zonas performativas, espaços onde o corpo se defronta com sua própria materialidade, e que são orientados pela suspensão dos valores sociais que precedem os julgamentos morais sobre o próprio corpo e sobre as ações que experimentamos. Nessas zonas, a busca é por instaurar uma ética no trato consigo, com as outras pessoas e com o mundo, que se dá pelo enfrentamento/desafio de si e pelo respeito ao outro. A sala de ensaio é pensada aqui como zona de devir, onde o corpo aberto aos afetos pode criar o próprio devir; está apto a ativar e a inventar outros modos de ser; apto a fazer da vida uma experiência corporal, estética e imagética pulsante. As zonas performativas são “zonas de vizinhança e indiscernibilidade”, de encontro com aspectos desconhecidos pela percepção habitual, zonas de fusão e confusão entre as materialidades do corpo e do espaço. Zonas em que novas conexões são tecidas em rede.

Deleuze diferencia moral e ética segundo o pensamento de Michel Foucault:

(...) a constituição dos modos de existência ou dos estilos de vida não é somente estética, é o que Foucault chama de ética, por oposição à moral. A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica (1992, p. 130).

Em Conversações (1992) Deleuze trata de três grandes encontros do pensamento de Michel Foucault com Nietzsche, acerca das relações entre o poder e

o corpo. Esses encontros contribuem aqui para a compreensão das experiências do corpo em cena como experimentações ético-estéticas, políticas e performáticas da ação corporal efêmera e assim como processos de subjetivação. Os três grandes encontros relatados por Deleuze são sobre: a concepção de força; a relação forma- força e a noção da existência como processos de subjetivação.

De acordo com Deleuze:

O poder, segundo Foucault, como a potência para Nietzsche (...) consiste na relação da força com outras forças que ela afeta, ou mesmo que a afetam (...). Em segundo lugar a relação das forças com a forma: toda forma é um composto de forças. (...). Enfim, o terceiro encontro diz respeito aos processos de subjetivação: mais uma vez não é de modo algum a constituição de um sujeito, mas a criação de modos de existência (...). Foucault marcará essa dimensão pela maneira com que a força se afeta ou se dobra. (Idem, p.150).

Transpor a linha de força, ultrapassar o poder, isso seria como curvar a força, fazer com que ela mesma se afete, em vez de afetar outras forças: uma dobra, segundo Foucault, uma relação da força consigo. Trata-se de “duplicar” a relação de forças, de uma relação consigo que nos permita resistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem-se contra o poder (Idem, p. 127).

A criação cênica se dá, assim, a partir de um posicionamento, um engajamento corporal, criativo e sensível do artista, um modo latente e complexo de ação, percepção e transformação da realidade, propiciado pela experiência corporal. O corpo é entendido como lugar de ritualização da existência, uma conjugação singular entre as concepções e os modos de ação do sujeito no mundo.

As zonas de experiências e devires são zonas de entre-lugares, zonas de fusão e confusão de fronteiras e das referências dominantes estabelecidas. Ao agir no cotidiano de modo inesperado e indefinido, borrando os limites do classificável, o artista desestabiliza as ordens do cotidiano, desterritorializando as concepções hegemônicas e delimitadas do corpo e da cidade e os reterritorializando sobre múltiplas outras coisas. Geram-se, assim, zonas de vizinhança e indiscernibilidade, a partir das quais o artista extrai os afectos das afecções e os perceptos das percepções, ao mesmo tempo em que cria e transforma essas zonas. O cotidiano é espaço de trânsito, de negociação, e se constrói na relação entre os corpos e a cidade. As zonas de devires chamam atenção para e nos provocam a pensar nas diversas camadas do que está “entre” (entre um estado corporal e outro, entre a vida

e a arte, entre os papéis sociais, entre os gêneros artísticos, entre o corpo e a cena, entre cotidiano e extra-cotidiano, entre acaso e planejado, entre normas e desvios, entre proibido e permitido, entre eus e outros).

A performance é um momento de quebra e de fricção no fluxo da realidade, no qual ocorre uma intensificação, um realce da experiência. Esse momento, acredito, é marcado pelas zonas de devires, criadas na percepção corporal dos que participam da performance, uma espécie de confusão ante o que está sendo vivenciado, um estranhamento, que não permite enquadrar facilmente a experiência e que se desdobra por vias menos objetivadas e mais sensíveis. Um espaço de instabilidade (que se define na relação entre as subjetividades), no qual os sentidos são criados no instante mesmo em que ocorrem.