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Um corpo à flor da cidade: performances e outras heterotopias

3. COMPOR PAISAGENS URBANAS DESVIANTES

3.1. Um corpo à flor da cidade: performances e outras heterotopias

Neste capítulo, proponho um ensaio a partir de algumas experiências de construção do que nomeei de corpo desviante em meu trabalho corporal sensível- criativo como artista cênico, que tenho investigado em experimentações estéticas realizadas em espaços urbanos. O corpo desviante se empenha em desviar das normas urbanas, espaciais e arquitetônicas, dos modos instituídos e estabelecidos de relação entre o corpo e o espaço. O corpo em desvio adentra zonas de devir, zonas de intensidade vividas nos entre espaços da percepção. Essas zonas são provocadas por uma desordem na percepção habitual, a partir da desorganização das normatividades no uso do corpo e dos espaços arquitetônicos e urbanos. O corpo desviante se constrói nessas zonas de experiência, ao mesmo tempo, que constrói novas paisagens urbanas desviantes, a partir das composições entre o corpo e o espaço.

Esta corporeidade desviante é investigada ao longo das experimentações performáticas e vai se construindo como uma espécie de segunda pele, uma segunda musculatura, uma segunda natureza do corpo, sua natureza urbana/performática. Essa natureza é resultado de um modo mais íntimo de relação entre corpo e espaço, provocado pelo perfomer em experimentação, um contato da pele com a cidade, um contato multissensorial com a cidade em sua materialidade. Quando volto da cidade é com um corpo outro, que criei no meu próprio corpo: um corpo arranhado, esgarçado, ressecado, esgotado. É como se uma outra camada do corpo tivesse sido exercitada, uma camada mais energética e, ao mesmo tempo, mais material e

multissensorial. Uma sensação como se a pele toda tivesse sido lixada e agora se pusesse a se refazer, a se reconstituir sobre suas próprias novas marcas. Um corpo com pele de cidade, a cidade como uma pele do corpo, adensada no corpo em carne viva, numa percepção dilatada, colhida pelo olhar artístico.

Esse contato, que busca uma relação mais próxima do corpo com o espaço, vem do modo como aprendi a compreender a prática do treinamento de ator, como uma prática de vida. O treinamento técnico-expressivo do artista cênico é entendido aqui como uma experimentação ética-estética e política da ação corporal em performance. Por isso, está ligado ao modo pelo qual o artista pode se posicionar corporalmente no mundo, sensível e conceitualmente, no exercício contínuo de reaprendizagem. Nas experimentações performáticas que faço na cidade proponho um trânsito de elementos e procedimentos tecnicamente aprendidos na sala de ensaio/trabalho para o ambiente da rua. Ao mesmo tempo, me atento aos aspectos que emergem da própria rua e que, por isso, pedem dispositivos de atuação do artista em performance diferentes dos investigados na caixa preta, na sala de ensaio, no laboratório teatral.

Certa vez, voltando de uma experimentação feita na cidade refleti sobre as qualidades presentes quando eu (corpo) regressava da cidade. Um corpo todo amassado, cheio de marcas, dolorido, cansado e também repleto de novas vibrações. Um corpo que havia se dobrado e desdobrado de múltiplas maneiras. De fato, como uma folha de papel, que tenha sido dobrada e redobrada muitas e muitas vezes, um corpo-origami31. De fato, o corpo são essas dobras. Penso aqui nas linhas que vão

surgindo na pele e nos músculos no decorrer da vida, especialmente na velhice: linhas no pulso, linhas na parte interna dos cotovelos, linhas no pescoço, na parte de trás dos joelhos, nas mãos, nos pés. São linhas de vida, como bem disse Petronílio ao citar Foucault (2015(1)), linhas de vidas infames, ordinárias, banais e, por isso, potentes. Cada vida é um imenso desenho, cruzamento singular e coletivo, um mapa constantemente refeito, um rizoma de múltiplas entradas e saídas.

O corpo que voltava, voltava de uma experiência de vulnerabilidade, de exposição, de hipersensibilização. E tinha aí sua potência. Um corpo povoado de

31 Retomo aqui a expressão utilizada por Aguinaldo de Souza em um exercício técnico de investigação

corporal ao pensar que as articulações como dobras do corpo e o corpo como uma grande folha de papel que, como na prática do origami, pode ser dobrado, desdobrado e redobrado inúmeras vezes, compondo, assim, inúmeras imagens plásticas possíveis.

intensidades. Era um corpo que havia vivido o sol intenso da cidade por um tempo estendido, rolado e se sujado no chão áspero, encostado e até deslizado o rosto pelos equipamentos da cidade (um poste de ferro, uma janela de vidro, um corrimão). Havia tocado a cidade, seus elementos e matérias, de corpo todo. Toquei e fui tocado. Adentrei as tocas da cidade, desterritorializei os territórios.

Passei a pensar então quais as possibilidades de experimentar uma investigação estética de um corpo cênico urbano, a partir da abertura e exposição à materialidade da cidade, especialmente a partir de um contato mais íntimo e sensível do corpo com o espaço urbano.

Essa noção de uma hipersensibilização do corpo na cidade me apareceu durante uma das experimentações urbanas que vivi durante o processo criativo do espetáculo De Carne e Concreto. Havíamos saído da sala de trabalho em direção à rua e, individualmente, nos deslocamos sem caminho ou objetivo prévio. A ideia era abrir a percepção para as relações entre o corpo e a cidade, ampliar a percepção.

___Logo de saída, me deparei com a rua, a W3, muito movimentada. Me encaminhei para o meio das vias de automóveis, um corredor de grama e árvores, e caminhei por ali. O som dos carros, suas velocidades, o vento que a pressão dessas máquinas produziam no meu corpo me embalavam num devir. Eu estava em fluxo e no fluxo. De repente, num instante, um som de buzina forte nas minhas costas me fez despertar, era como um corte no devir. Fluxos e cortes, que perpassam a dinâmica viva das máquinas desejantes, como escrevem Deleuze-Guattari. A força da buzina impactou meu peito, irradiando pelos braços em direção aos cotovelos, que retraíram e flexionaram os antebraços e mãos. Vivi o caminho de uma sensação, seu brotar no Fora, no limite mesmo do corpo. As entradas e saídas da sensação no corpo, como uma potência desterritorializante, que me reterritorializava em um desenho estranho, na grafia de um curto-circuito que se desenhava no corpo e no espaço. Depois, ao pegar um ônibus; novamente uma experiência de espaço se apresentou. Um corredor, uma janela móvel furando o espaço à frente. Uma plataforma de vibração, trepidação e balanço, de desequilíbrios. Uma jangada onde muitos dividem um estreito espaço. Um ar mais parado do que lá “fora”. Mas, por algumas janelas abertas, algumas rajadas de vento entram, circulam e fazem circular. Depois, de volta ao espaço aberto, já em outra parte da cidade: são muitas pessoas que cruzam uma ampla área. E são tantas... Várias multidões. Um entre-espaço, entre aberto e fechado. Um espaço de passagem, outros fluxos, outras máquinas. A cada aqui-agora uma pessoa, várias, a

cada lance de olho uma imagem, várias. Era parede, pilastra, calçada, camiseta, cor, cheiro, som, pedra, ferro, poeira, pó, árvore, mato, lixo, vozes, e era tanto e tanto e tanto, que meu corpo sentia como um colapso de sensações. Fluxos entrecortados por outros fluxos. Imagens e sensações, como um corpo sem órgãos, por onde vazavam e faziam vazar pulsações intensas e contínuas, ondas de calor e de vibração, que deixavam o corpo em uma sensibilidade estranha. Estranha porque amarga, uma corporalidade áspera e ao mesmo tempo à flor da pele, ou melhor, um corpo à flor da pedra, um corpo á flor da cidade.

Como já dito, ao refletir sobre a experiência, Bondía fala de um sujeito do estímulo, e considera que:

Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência” (2002, p. 23).

Esse corpo da hiperestimulação seria o extremo oposto dos corpos de passagem, que, no cotidiano, se insensibilizam frente ao turbilhão das informações na cidade. Assim, evidenciam-se as faces perversas do corpo atual: a anestesia e a hiperestimulação.

De acordo com Bondía:

Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo (Idem).

Ao retornar à sala de trabalho, era esse corpo que eu vivia, que havia construído na experiência de encontro com a cidade. Um corpo povoado de sensações, mas, também, à beira de um colapso. Um corpo produzido por perceber elementos que cotidianamente ignorava: um corpo construído nas minúcias, intensidades e povoações que coletara numa cidade contemporânea. Um corpo que se nutre das invisibilidades, dos obscenos, dos apagamentos, do que está posto às margens da ordem social e econômico-política, das concepções e percepções hegemônicas.

Penso nas vidas breves dos corpos desviantes, que pude vislumbrar e sentir em minhas experimentações pela cidade, nas experiências do banal vividas nessas ocasiões. As experiências do corpo desviante são também de curta duração. Uma, duas, três ou quatro horas dentro do cotidiano atarefado e atribulado do dia-a-dia da cidade. Experiências de curta duração, assim como são as vivenciadas em processos de ensaio e criação em sala de trabalho pelo artista cênico, se pensadas em relação ao restante do tempo de um dia, por exemplo. Porém, são experiências intensas de instauração e investigação de um tempo-espaço-corpo outro, tal qual o vivenciado nos rituais, nas festas ou em momentos de extraordinariedade, um tempo em suspensão. Vidas breves, mas, compostas de múltiplos instantes eternos (Maffesoli, 1996).

Se atualmente podemos pensar em alguma linguagem pela qual passa o fio da vida, essa linguagem talvez seja a da vida urbana e capitalista, ligada aos movimentos de institucionalização e burocratização da experiência corporal na cidade, na busca cada vez mais acirrada pela vigilância e punição dos corpos, num processo de disciplinamento voltado para produção e consumo.

Por isso, ir além das organizações e dos modos de uso previstos para o corpo em suas interações com o espaço urbano é balançar toda uma rede de poderes que estão fortemente costurados na vida urbana, e que sustentam o tecido social. É desfiar e tecer de outros modos essas linhas de vida que se entrelaçam a todo momento e que insistem em reiterar as normas sociais compulsórias da subjetividade capitalista. Normas que regulam e produzem os modos de existência da vida no corpo.