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Sobre os desdobramentos da modernização

1. PERDER AS PLACAS E (RE)ENDEREÇAR OS CONCEITOS GERALIDADES E

1.1. Sobre as geralidades e os afunilamentos

1.1.4. Sobre os desdobramentos da modernização

Estamos, agora, cerca de 70 anos após a Fordlândia, em um outro contexto, mais próximo do processo de modernização e urbanização das cidades, que se consolidou, no Brasil, no início do século XX. Junto a esse processo, houve um movimento de reformas urbanas, visando à higienização e militarização do espaço, que trouxe consigo ideias de assepsia, de controle e de afastamento da morte da esfera mais próxima da vida social. O antropólogo Antônio Motta, em seu livro À flor

da pedra: formas tumulares e processos sociais em cemitérios brasileiros (2009),

comenta sobre essa situação, que promoveu a remoção de cemitérios para longe dos centros comerciais de cidades como o Rio de Janeiro nesse período.

Motta escreve sobre como circularam boatos de transmissão de doenças associadas a proximidade com os cemitérios e, também, sobre a posterior insatisfação da população com o afastamento dos cemitérios do centro urbano, pois tratava-se de um afastamento físico, geográfico, simbólico e afetivo. Isso promoveu um distanciamento com a dimensão da morte na esfera social, a morte estava espacialmente mais distante da vida. Há, assim, uma clara separação entre a metrópole, como cidade dos vivos, e a necrópole, cidade dos mortos. Foucault comenta ser curioso o fato de que, no momento em que nossa civilização se torna

mais ateia, no final do século XIX, foi justamente quando começou-se a individualizar

os esqueletos, de forma que “cada qual passou a ter direito ao seu caixão e à sua pequena decomposição pessoal” (2013, p. 23).

Entre outras reformas urbanas, advindas do processo de modernização urbana, estava o alaragamento das vias públicas, como estratégia para facilitar o fluxo dos automóveis, uma demanda crescente nesse período, mas, também, para facilitar a circulação de veículos militares, para exercer, ainda mais, o controle da vida pública.

O processo de modernização das cidades faz parte de um contexto histórico- cultural mais amplo que foi a modernidade na sociedade ocidental. Por isso, do

mesmo modo que pensamos o surgimento da cidade moderna, também é possível pensar na construção do sujeito moderno nesse período.

Bondía, em seu texto Notas sobre a experiência e o saber da experiência (2002), aponta para os fatores que afastam, no mundo contemporâneo, os indivíduos da experiência. Para ele, o excesso de informação, o excesso de opinião e o excesso de trabalho (aliados à “falta de tempo”) perfazem o processo de construção do sujeito moderno.

Um dos paradoxos que vivemos no mundo contemporâneo se dá entre a quantidade e complexidade de referências a que estamos submetidos cotidianamente e a nossa capacidade perceptiva para lidar criticamente com essa profusão de imagens e ideias. Segundo Bondía, existe um excesso de informação que toma a vida moderna; e o autor alerta para o fato de que a informação não é experiência, e, nesse sentido, o sujeito da informação é oposto ao sujeito da experiência, já que "a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência" (BONDÍA, 2002. p. 21, 22).

Maffesoli em seu livro No fundo das aparências (1996) aborda como o moralismo intelectual ocupou-se em desenvolver uma desconfiança do corpo e do sensível nos processos de construção de conhecimento ao longo da história do pensamento na sociedade ocidental. Tal desconfiança levou a um cerceamento das potências do sensível e um desprezo dos processos corporais e afetivos na formação do indivíduo.

Maffesoli discorre sobre um controle do sensível, o qual, na observação desta pesquisa, pode funcionar como um ideal, um valor a ser alcançado em nossa sociedade atual:

Como observa justamente P. Sloterdjik (...) a injunção “seja razoável” significa “não confie em seus impulsos, não escute seu corpo, aprenda a se controlar, e, inicialmente, a controlar sua própria sensibilidade. Há aí a expansão acabada da ruptura que aconteceu entre o intelecto e o sensível (1996, p. 70).

O moralismo intelectual tem seu auge na modernidade, no advento do Iluminismo, na busca por um sujeito racional, orientado para uma vida sempre futura. Posteriormente, o positivismo demarcaria, ainda com mais força, os limites do conhecimento nas searas das ciências. É toda uma onda de desprezo do senso- comum como lugar de conhecimento do mundo e do humano que se expande a partir

de então. A modernidade teria acentuado um processo de racionalização do mundo, marcando assim a tradição ocidental do pensamento com um afastamento da vida, um distanciamento entre o conhecimento e o enraizamento mundano dos fatos (Maffesoli, 1996, p. 47).

Hoje, o poder encontra-se mais difuso, não está mais restrito as instituições sociais, mas sim, enraizado ainda mais nos corpos, o que levou Deleuze a intitular nossa sociedade atual, não mais como sociedade disciplinar, conforme pensou Foucault, mas como sociedade de controle. Assim, o poder é desempenhado hoje, não apenas por dispositivos disciplinares e urbanos, mas, também, pelas próprias pessoas nas cidades, pelos transeuntes/habitantes, que tomam a vigilância da norma pra si e passam a exercê-la sobre o comportamento de si e dos outros. É o que Passeti considera como a formação de um “cidadão-polícia” (2015, p. 15).

Segundo Passeti:

Nãos se trata tão somente de uma guinada aos cuidados de si, o que seria libertário e contundente, próprio da revolta, mas principalmente do controle de si e dos outros como imobilização de resistências (...) A resiliência proporciona os contornos de um cidadão-polícia (monitorando a si e aos demais, funcionando como outra faceta atualizada, individualizada e normalizadora do poder pastoral (...) (2015, p. 12 e 15).

Trata-se de um movimento biopolítico de domesticação da vida nos corpos, do qual a cidade é peça fundamental, já que a arquitetura passa a ser empreendida, a partir do século XVIII, como um dispositivo fundamental do biopoder, um modo de efetivar o poder nos corpos. No texto Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1992) Deleuze fala de como nos tornamos uma senha na sociedade contemporânea. É essa senha, em seu extrato histórico-político-econômico, que nos garante ou não acesso a mundos e experiências possíveis no universo pós-industrial do capitalismo, dentro de uma cadeia de produção e consumo de imagens e sensações.

É nessa conjuntura que Foucault considera a passagem do poder disciplinar ao biopoder, visando dar conta de outros dispositivos, como os da sexualidade, que não são apenas de tipo disciplinar, mas que “também se realizam pela regulação das populações, por um bio-poder que age sobre a espécie humana, que considera o conjunto, com o objetivo de assegurar sua existência” (Machado, 1979, p. XXII).

O biopoder é um complexo conjunto de dispositivos e procedimentos, que tem como focos os corpos e a civilização humana, e se ocupa da nossa condição como

espécie no planeta. É nesse sentido, que Passetti, no prefácio do livro Michel Foucault

– Filosofia e Biopolítica (Branco, 2015), avança e atualiza a noção de biopoder ao

escrever: “uma coisa é biopolítica, controle da espécie, outra é ecopolítica, controle do planeta” (Idem, p 10). Ambas as políticas constituem os corpos, as cidades e a sociedade atual.

Conforme escreve Passeti:

A biopolítica não cuida mais somente do direito de causar a vida ou deixar morrer, nem mesmo de definir quem deve viver e quem deve morrer, como no nazismo, mas ela trata do que deve permanecer vivo, do que pode ser extraído do quase morto para se tornar capital humano e à ecopolítica cabe governar a vida dos humanos conectada a dos demais seres. Injeta-se no humano a possibilidade de permanecer vivo produzindo situações de compartilhamento entre ambientes. (2015, p. 12)