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Aspectos constitutivos do poema e da narrativa poética

2 POESIA E INFÂNCIA NA VOZ DE MANOEL DE BARROS

2.2 Aspectos constitutivos do poema e da narrativa poética

Já nos debruçamos, no capítulo anterior, um pouco sobre o que vem a ser a poesia, um efeito que é alcançado pela renovação da significação da linguagem ou da imagem comum. O poeta ao considerar o mundo a partir do objeto, o retrata por meio das palavras como uma coisa nova. Sendo algo “novo”, a palavra poética pretende nomear, criar e exige do leitor imaginação para significá-la. Nos textos poéticos, a significação da palavra está posta para além do plano do sentido

performativo ou referencial (TODOROV, 1979, p.111), assim, ela desautomatiza, ou seja, retiram do automático os significados previamente estabelecidos.

É a partir dos arranjos linguísticos, dos conhecimentos de mundo sugeridos pela experiência e pela realidade proposta pelo poeta/autor, além do conhecimento, que o leitor dispõe que o significado do texto se constrói. Em se tratando das construções poéticas, não podemos considerar apenas os aspectos linguísticos e formais para a definição do significado. Mas, antes, entram em cena a história, a ideologia, a vida, o som, a musicalidade e o sentimento que pulsa no uso que se faz da palavra.

Se alguém quiser saber alguma coisa sobre poesia, deverá fazer uma das coisas ou ambas. É olhar para ela ou escutá-la. E, quem sabe, até mesmo pensar sobre ela. [...] E se precisar de conselhos, deve dirigir-se a alguém que entenda alguma coisa a respeito dela. (POUND, 2013, p.37).

Em nossa dissertação, entendemos a poesia como um efeito da palavra carregada de significados que para Ezra Pound (2013) tem três essências operantes em si, que são: a fanopeia, a melopeia e a logopeia.

Segundo Pound (2013), a fanopeia diz respeito ao atributo que uma palavra tem para lançar uma imagem virtual de mundo na mente do leitor, o qual cria o seu micro ou macrocosmo. É uma imagem que parte do sentido literal da palavra para alcançar a plenitude da criação.

A melopeia, por sua vez, diz respeito à cadência sonora das palavras que é alcançada pela combinação dos sons e a harmonização das suas letras. Enfim, a logopeia diz respeito ao conteúdo do poema que gera reflexão, evocação de memórias e amplia os horizontes de significados e de vida no leitor.

No contexto das narrativas poéticas de Manoel de Barros, as metáforas poéticas são as grandes responsáveis por lançar no texto uma multiplicidade de significados. Esses tendem, sempre, a transgredir os sentidos culturalmente estabelecidos. Para Ezra Pound (2013, p. 52): “O termo significado não se pode restringir a significações estritamente culturais ou “puramente intelectuais”. O quanto você quer significar, o como você se sente por significá-lo, também podem ser introduzidos na linguagem”.

Dessa forma, a linguagem poética exige um pensar, o qual exige do leitor o seu interesse em engendrar um sentido para o texto. Manoel de Barros ao trabalhar a palavra com uma projeção ampla de sentidos possíveis, de maneira inabitual e desautomatizada, oportuniza um momento de reflexão e de construção de representações de ideias novas, que libertam autor e leitor do utilitarismo das suas relações com as palavras, as pessoas, as coisas, os seres vivos e não vivos ao seu redor. Assim, por meio da linguagem, não realizamos um mero descobrimento do mundo real, mas criamos outras possibilidades de relações com esse sistema de mundo.

Sendo o ser humano um ser de linguagem e que por ela se constitui, precisamos, ainda, compreender que o autor e o leitor do texto poético, conforme diz Todorov (1979), tratam a palavra como um ato de fingimento e a coloca no plano da palavra-ação e da palavra-narrativa. Na “palavra-ação reage-se ao aspecto referencial do enunciado [...] se se trata de uma narrativa, o único aspecto que os interlocutores retêm parece ser o aspecto literal”. (TODOROV, 1979, p. 111). A palavra-ação é compreendida em um primeiro momento pelo leitor como um ato performativo, referencial. Já a palavra-narrativa é percebida como um discurso, um ato constatativo, evocando sentidos que podem ser verdadeiros ou falsos mediante os discursos que o fundamentam. Assim, as palavras são sempre entendidas em um campo de discurso que intermedeiam a vida do autor e a do leitor. Dessa forma, as palavras que estão em um plano conotativo requisitam do leitor uma compreensão semântica, sinestésica e emocional para que possamos dar um sentido conceitual para elas.

Completa este estudo sobre a narrativa as teorias de Adam (2011) que diz ser ela, uma unidade textual complexa composta de um número limitado de proposições-enunciados que adquirem um sentido, constroem representações esquemáticas do mundo, tem o objetivo de partilhar uma crença com a finalidade de induzir certo comportamento e seguem um estilo composicional. A sequência narrativa, em especial, é caracterizada por Adam (2011) da seguinte maneira:

Toda narrativa pode ser considerada como uma exposição de “fatos” reais ou imaginários, sendo que essa designação geral de ‘fatos’ abrange duas realidades distintas: eventos e ações. A ação se caracteriza pela presença de um agente – ator humano ou antropomórfico - que provoca ou tenta evitar uma mudança. O evento

[a ser narrado] acontece sobre o efeito de causas, sem intervenção intencional de um agente. (ADAM, 2011, p. 224 grifo nosso).

Quanto à trama da sequência narrativa, dependendo da sua complexidade, essa deve apresentar pelo menos quatro momentos com suas respectivas funções: situação inicial (orientação), transformação (existe um elemento desencadeador que quebra a situação inicial), gerando reação ou avaliação (conflito), clímax (desenlace ou solução) e a situação final (desfecho).

A situação inicial estabelece o contrato de entrada do leitor no mundo da narrativa, nesse momento, o texto convence-o a aceitar e compreender o plano ficcional; no segundo momento, as ações iniciais desencadeiam uma transformação na narrativa, provocando mudanças no rumo do enredo. A transformação assume a forma de uma ameaça, a partir disso, surge uma situação a ser resolvida. Em seguida, temos um conflito que quebra a instabilidade dos personagens e dos acontecimentos; chegando ao clímax, temos, como consequência, um trecho dinâmico e emocionante, em que os fatos se encaixam para produzir a situação final ou o desfecho, que se constitui quando há a finalização das ações narradas, quando tudo que fica pendente na narrativa é encerrado.

Normalmente, na situação final é recriado um novo estado de equilíbrio, em que há uma avaliação pelo autor relativa ao desenvolvimento da narrativa ou uma moral explicitando a significação global atribuída à história. Ainda existem algumas narrativas em que o final deve ser proposto pelo leitor.

O plano linguístico, estrutural e discursivo da narrativa quando acessado pelo leitor permite que as capacidades produtiva, receptiva e comunicativa do texto literário sejam ativadas pela estruturação rítmica, sonora e semântica do léxico. Segundo Jauss (2002) e Amarilha (2012), na dinâmica da leitura, a capacidade produtiva da linguagem se apresenta na atividade de elaboração de sentido pelo leitor, quando este completa o cenário, projeta as possibilidades de ações a serem vividas pelos personagens, imagina a pulsão dos desejos, sonhos e sentimentos que habitam a vida dos agentes da narrativa; quanto à capacidade receptiva, essa atua diretamente no texto que acolhe as significações e interpretações possíveis que são propostas pelos leitores, mediante o seu conhecimento de mundo; por fim, o texto literário comunica porque prevê a multiplicidade de sentidos que a ele serão atribuídas, recebendo dos seus leitores diversas informações e significados.

A narrativa, enquanto forma de organização do discurso, acompanha a evolução da humanidade. Das pinturas rupestres ao exercício da transmissão oral, elas ganharam em nossa escala evolutiva densidade de conteúdo e de organização estrutural. Segundo Dehaene (2012), a escrita é uma conquista recente da humanidade com aproximadamente 5.000 anos, o registro dos eventos modificaram a nossa maneira de compreender e ler as histórias, uma vez que perenizou certas estruturas.

Devido ao seu grau de complexidade estrutural, em que há sempre o espaço para encaixes, considerações e avaliações finais, sejam essas avaliações propostas pelo texto ou desencadeadas pelo fluxo do pensamento do leitor, a narrativa tornou- se a forma usual para a transmissão da cultura dos povos, seja através da oralidade ou de sua formatação mais recente que é a escrita.

É válido lembrar que a estrutura narrativa de alguma maneira sempre esteve ligada à evolução da humanidade, na obra “Ilíada” (2003), datada do século IV a.C., Homero produziu uma grande narrativa versificada que conta a história do drama humano do herói Aquiles, durante a Guerra de Troia. A ação se situa no ano nono, depois do começo da guerra e é um dos principais poemas épicos da Grécia Antiga, contado sempre do ponto de vista do eu-lírico. Na modernidade, essas características serão relembradas figurando no poema em prosa ou na narrativa poética como queira classificar, porém, os poemas em prosa perderam o caráter versificado, a voz uníssona do eu-lírico e ganharam outras vozes.

Nesse contexto, o efeito poético que é a poesia nasce na experiência de decifração da simulação de vida proposta pelo texto. A ação poética nos textos do gênero narrativo tem como efeito principal desadormecer as sensações e os estímulos. Ser poesia diz respeito, portanto, ao efeito causado pela arte no leitor ou no observador do mundo. Sendo assim, o leitor ao desfrutar da leitura ou da audição de um texto literário encontra na interação texto, leitor e vida, o fenômeno da poesia.

Delineamos conforme as nossas leituras que o estado poético habita o inconsciente do ser e esse espaço é acessado pelo leitor, no momento, em que ele lê a palavra literária e passa a refletir, segundo Coelho (2012), acerca de suas vivências e desejos, ou seja, o instinto de sobrevivência, o amor, o ódio, o ciúme, o ego, a vontade, a inveja, o egoísmo, a fé, o respeito e todas as representações do seu inconsciente. Além dessas compreensões, precisamos saber que no momento

da leitura acessamos o nosso conhecimento de mundo, advindo das nossas experiências anteriores com os objetos e com a própria linguagem.

Nesse sentido, a poesia de Manoel de Barros nos oferece a possibilidade de brincarmos com o fingimento das palavras para descobrirmos nossa singularidade. A dimensão ficcional exige uma abertura à novidade em que as palavras reivindicam ser pensadas e ressignificadas.

Na próxima seção, abordaremos algumas breves explicações sobre o processo de metaforização, um fator linguístico que gera atribuições semânticas diversas para as palavras, é responsável por despertar a compreensão leitora, desencadeia a recepção estética e poética do leitor que alarga seus horizontes de mundo.