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Aspectos da religiosidade popular na poética de Patativa

Capítulo IV Divina Providência em Patativa: elementos de

4.2 Aspectos da religiosidade popular na poética de Patativa

Um dos aspectos interessantes e característicos da religiosidade popular, apontado por Patativa em seus versos refere-se às superstições, tão comuns ao povo sertanejo, referindo-se a presságios advindos dos cantos dos pássaros e outros elementos da natureza.

A FESTA DA MARICOTA

E tem bichinho servage Que, com a sua linguage E a musga da sua voz, Conta tudo certo e exato, Apois tem bicho no mato, Que sabe mais do que nós.

(...)

No fundo de um cafundó, Uma coã gargaiava, Gargaiava e agôrava, Na copa da um pau-mocó.

(...)

Quando eu contá nesta histora Tudo quanto se passou, O senhô fica ciente Que aquela coã não mente, Pois a bicha adivinhou.

(...)

E ante que a histora eu acabe Seu jornalista, dê fé,

Veja a coã como sabe! É como eu digo ou não é? Ela, quando gargaiava, Com certeza me contava Que a desgraça ia se dá,

Mas porém ninguém comprende, Ninguém sabe nem entende A língua dos animá.309

O poeta demonstra e salienta a divergência entre saber cientificamente aceitável e sabedoria popular, ressalta a distância entre esses dois saberes e realça seus pontos de vista diferentes, mas não excludentes, valorizando a multiplicidade de maneiras de lidar com os fatos da realidade.

309 Trecho do poema A festa da Maricota, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina, p.77-94.

Patativa relata e elogia aspectos da religiosidade popular característica do povo sertanejo, com suas superstições, hábitos, costumes, festas, simpatias e outros elementos que compõe o imaginário religioso popular.

NO MEU SERTÃO

(...)

É munto mais boa a vida Da minha gente matuta, Lá onde tudo é sossego, Lá onde ninguém escuta Essa zoada mardita, E onde tombém se acredita E se crê de coração Em muita coisa da vida Que essas pessoa sabida Chama de suprestição

(...)

A gente do meu sertão Tem a vida acotelada. Nas noite de sexta-feira Caçadô não faz caçada, Temendo grande desgraça. No meu sertão ninguém passa Entre dois pau de portêra, Pois é grande o sacrifico, Se arrisca a pegá feitiço Da gente catimbózeira.

E nas noites de São João As moça casamentêra Leva uma bacia d’água Bem pra junto da foguêra, E ali, com munta prudênça Vão fazê esperiença Sobre o futuro que vem, Deitanlo a sorte nas braza

Promode sabê se casa

Com os moços que elas qué bem. (...)310

As fogueiras em louvor a São João311, um outro costume característico da devoção religiosa popular nordestina, principalmente em Caruaru onde hoje se comemora o maior ‘São João’ do mundo, também aparecem nos versos do poeta, revelando a valorização desse ato de fé primordial na constituição do campo simbólico religioso popular.

A FOGUEIRA DE SÃO JOÃO (...)

É tão grande, é tão imensa A minha fé e minha crença, Que se Deus me dé licença, Quando eu morrê, vou levá Grosso fêcho de madêra De angico e de catinguêra, Pra fazê uma foguêra

Lá no céu, quando eu chegá.312

Além de poemas que descrevem o modo particular da religiosidade tipicamente popular, Patativa trabalha ainda em seus versos com as divergências entre o imaginário religioso popular, carregado de sentidos e significados próprios do povo sertanejo, e aquelas imagens propostas pela Igreja como devoção institucionalmente aceita e constituída. De modo claro, mas sutil, no poema O padre e o matuto, o poeta demonstra as incongruências entre o Catolicismo Clerical Ortodoxo e o Catolicismo Popular dos rezadores, das benzedeiras e de suas práticas; propõe questionamentos comuns ao povo sertanejo, a respeito dos critérios de validação da santidade, do respaldo nas Sagradas Escrituras e do reconhecimento pela Instituição. A figura do sacerdote, representando a

310 Trecho do poema No meu sertão, contido na obra ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina,

p.123-127.

311 Festas de São João caracterizam tradição amplamente divulgada do Nordeste brasileiro, sendo

inclusive exploradas turisticamente; como exemplo cito uma matéria a respeito dessa comemoração no Maranhão, a qual afirma que “O aspecto mais marcante da festa é o caráter popular. A festa dura praticamente todo o mês.” ALMANAQUE BRASIL DE CULTURA POPULAR. Especial São João de

São Luís. Almanaque de bordo da TAM, (Editor Elifas Andreato), Ano 4, nº 39, junho de 2002, p.16-17. 312 Trecho do poema A fogueira de São João, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina, p.128-131.

autoridade clerical, é questionada pela figura do benzedor popular, homem do povo, fiel à religião e descrente das novidadeiras mudanças na religião; dessa forma coloca-se uma crítica às novas imagens do Cristo, impostas pela ortodoxia, levantando questionamentos sobre a validade de tantas novas imagens.

O PADRE E O MATUTO O digno padre Luís, Graças à sua bondade, Tem sido muito feliz. Quando prega na Matriz, Seu sermão tem um encanto Que do triste enxuga o pranto, Ao fraco dá esperança; Ali pela vizinhança

Muitos lhe chamam de santo.

(...)

Dali um pouco afastado, Em uma pobre arapuca, Habita o Cinco Mutuca, Um camponês atrasado, À Igreja conchegado, Fervoroso rezador, Porém com o confessor Muito desgostoso andava, Em Cristo rei não creiava Nem para fazer favor.

Dizia ele zangado:

_ “ Eu creio é no Bom Jesus, Que morreu por nós na cruz, Pra nos livrá do pecado! Cristo Reis foi inventado Lá no Rio de Janêro, Nem a troco de dinhêro Eu nele não tenho fé Pois eu sei que ele não é O nosso Deus verdadêro.”

(...)

_” Muié, amenhã bem cedo Você perpare o armôço, Que o Serviço vai sê grosso, Discussão não é brinquedo! De padre eu não tenho medo, Conheço a lei do Senhô, Dizê ao vigaro eu vou Que o Cristo Reis tão falado Não tá no livro sagrado Que eu herdei do meu avô”.

(...)

_ “Seu vigaro, é uma histora que anda na boca do povo, Sobre um tá de Cristo novo Que os padre inventou agora. Credo em cruz! Nossa Senhora! Vá descurpando o senhô, Mas porém é um horrô O que faz vossemincêis, Afirmá que o Cristo Rêis É o nosso Redentô!”

(...)

_ “Portanto, Chico, você Se defenda do perigo, Nas palavras que te digo Grande verdade se lê. Ai daquele que não crê Neste título honroso! Em vez de supremo gozo E santa felicidade, Terá lá na eternidade Um sofrimento horroroso!”

_” Pois agora, seu vigaro, Me perdoe, se já pequei, Vou rezá pra Cristo Rêis Nas conta do meu rosáro, Vou vê se rezando saro As chaga do coração, Apois a tá confusão Que munta gente fazia, Fez eu e minha famia Se afastá da confissão.”

_ “Agora, que eu acredito De todo meu coração, Vou trazê pra confissão Ciço, José, Benedito, O Migué, o Espedito, O Romão e o Mozá, O Antõi e o Alencá, A Izefa e a Tonica, Lá em casa ninguém fica, Vem tudo se confessá!...”313

Nesse poema, revela-se ainda o espanto do sertanejo diante das novas imagens do Cristo, como a estátua do Cristo Redentor na capital carioca, que causam dúvidas e geram questionamentos na busca de esclarecimentos sobre a legitimidade da própria fé. Nos versos Patativa mostra a figura do Padre e suas palavras de representante clerical, recheadas de erudição e autoridade, afirmando a legitimidade das imagens, símbolos e ritos divulgados pela Instituição; apelando inclusive aos temores característicos da religiosidade popular de castigos futuros. Curiosamente, o próprio poeta termina seus versos reafirmando a autoridade institucional e validando o sacramento da confissão, instaurado exatamente com o objetivo de enfatizar o papel da Instituição como mediadora exclusiva dos desígnios Divinos.

Esse poema revela um discurso popular que abarca as ambigüidades da própria religião, que aceita a dominação institucional, mas subverte a ordem e contesta a imposição de conceitos e de símbolos desprovidos de significado para os fiéis;

313 Trecho do poema “O padre e o matuto”, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina, p.224-231.

transparece as divergências entre o institucional e o popular, reafirma uma forma de conhecimento popular baseado na experiência, um universo simbólico que orienta a ação humana desse povo sertanejo ante a religião.

Num outro poema intitulado O Inferno, o Purgatório e o Paraíso, Patativa do Assaré realiza interessante analogia entre a vida real e as instâncias constituintes do imaginário religioso popular católico, recheada de críticas irônicas; elabora uma crítica social, a partir de elementos desse imaginário religioso popular relacionando-o a situação da sociedade dividida em classes desiguais; mas o autor decepciona-se quando da publicação desse poema, devido a um erro da editora no trecho em que afirma o Inferno como repleto de cenas de tortura e a publicação dizia repleto de cenas de

ventura.

O INFERNO, O PURGATÓRIO E O PARAÍSO

Pela estrada da vida nós seguimos, Cada qual procurando melhorar, Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos, Desejamos, na mente, interpretar, Pois nós todos na terra possuímos O sagrado direito de pensar, Neste mundo de Deus, olho e diviso O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.

Este Inferno, que temos bem visível E repleto de cenas de ternura, (sic) Onde nota-se o drama triste horrível De lamentos e gritos de loucura E onde muitos estão no mesmo nível De indigência, desgraça e desventura, É onde vive sofrendo a classe pobre Sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.

(...)

Mas acima é que fica o Purgatório, Que apresenta também sua comédia E é ali onde vive a classe média.

Porém seus habitantes é preciso Simularem semblantes de prazer, Transformando a desdita num sorriso. E agora, meu leitor, nós vamos ver, Mais além, o bonito Paraíso, Que progride, floresce e frutifica, Onde vive gozando a classe rica.

Este é o Éden dos donos do poder, Onde reina a coroa da potência. O Purgatório ali tem que render Homenagem, Triunfo e Obediência. Vai o Inferno também oferecer Seu imposto tirado da indigência, Pois, no mastro tremula, a todo instante, A bandeira da classe dominante.

(...)

Já mostrei, meu leitor, com realeza, Pobres, médios e ricos potentados, Na linguagem sem arte e sem riqueza. Não são versos com ouro burilados, São singelos, são simples, sem beleza, Mas, nos mesmos eu deixo retratados, Com certeza, verdade e muito siso, O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.314

Nesse poema, o autor realiza uma comparação entre o imaginário religioso Cristão: Inferno, Purgatório e Paraíso; e a organização de nossa sociedade por Classes Sociais, respectivamente: classe pobre, classe média e classe rica.

Com a classe pobre, visualiza o Inferno e seu drama triste de exploração, indigência, desgraça e desventura, sem conforto, sem pão e sem lar. Na classe média, Patativa vê o Purgatório e sua comédia, de quem padece e mesmo assim simula semblantes de prazer. E com a classe rica, nosso autor reconhece o florescimento, a fartura e o conforto do Paraíso.315

314 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, pp.43-47. 315 ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo, p.55.

Percebe-se novamente aí a constituição de uma imagem de mundo, com base na simbologia religiosa popular católica, simbologia essa que abarca ambigüidades da realidade e lhes confere um sentido através da linguagem poética; ao mesmo tempo que mostra uma crítica social dessa realidade, demonstra uma ressignificação de elementos da religião católica sob uma visada popular que atribui novo sentido a imagens estabelecidas pela instituição.

Patativa comenta ainda, num outro poema, a probabilidade e as vantagens da existência do Inferno, local incutido no imaginário religioso popular pela Instituição Eclesial; o poeta salienta o fato de que o inferno pode ser considerado um consolo futuro aos justos, por seus sofrimentos diante das injustiças vividas no mundo. Nesse poema, a metáfora poética de um outro mundo se perfaz como crítica desse mundo injusto

SE INFERNO EXISTE

Se existe inferno, como diz a Briba, Se lá de riba é que o castigo vem, Se o espríto vai se derretê queimado, Purgá os pecado que o sujeito tem.

(...)

Se o cabra ruim quando morrê padece E triste desce os inferná degrau, Se os anjos preto lá nos tacho ardente Dá banho quente castigando os mau,

Se geme as arma dos pió canáia Nessas fornáia onde o Demônio ta, Nas braza acesa desse forno imundo, O nosso mundo vai se escangaiá!316

Nesse poema o pensamento sincrético popular elabora elementos da tradição católica institucionalizada com imagens ressignificadas que constituem uma mundivisão

316 Trecho do poema Se inferno existe, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina,

peculiar do povo nordestino; a simbologia atribuída ao Inferno pela instituição é ressignificada na poesia que lhe atribui novo sentido individual e coletivo, como espaço de redenção dos sofrimentos vividos pelo povo.

Como outra figura preponderante nas formas populares de religiosidade, a mulher rezadeira, tão comum ao sertão, é também abordada pela poesia de Patativa do Assaré; em um de seus poemas o autor retrata, em meio a uma narrativa, as funções e responsabilidades assumidas por tal figura. Introduzir as crianças numa vivência religiosa pode ser considerada uma das principais funções dessas figuras arquetípicas que são as mulheres rezadeiras, extremamente representativas da religiosidade popular sertaneja e de seu papel imprescindível na constituição individual dos sujeitos.

CHIQUITA E MÃE VÉIA (...)

De menhãzinha, bem cedo, Depois do só apontá, Mãe Véia chamava nós, Mode aprendê a rezá. Quando Mãe Véia chamava, Nós ia e se ajueiava

Como se faz nas igreja. E Mãe Véia, paciente, Ia dizendo na frente: _Bendito e lovado seja Nosso Deus, nosso Jesus, Que pra nos livrá das curpa Morreu pregado na cruz.

(...)

Muntas vez, nós no terrêro, Tudo sentado no chão. Mãe Véia contava histora Iscoroçando argudão. Falava em Nosso Senhô Quando neste mundo andou, Tombem em Nossa Senhora E notas coisa engraçada.

Ah! muié abençoada Pra sabê contá histora!

Mas aquelas coisa boa Desapareceu da terra. (...)

Mãe Véia já não existe, Chiquita tombém morreu.

(...)

A vida é tão esquesita! Nem Mãe Véia, nem Chiquita, Tudo, tudo se acabou!

Pois inté o jacarandá Do ninho do sabiá, Veio o vento e derrubou.317

Nesse poema reafirma-se também a dupla religiosidade do catolicismo, institucional e popular, na qual Patativa enfatiza no catolicismo popular o caráter de universo simbólico peculiar de orientação para a ação humana; ao produzir poemas específicos que tratem das rezadeiras, das festas e de outros temas tipicamente populares o poeta salienta e reafirma o significado desses elementos para o povo, sua obra revela uma função interpretativa da realidade, como um discurso elaborado visando compreensão a respeito dessa realidade.

Além de apresentar em seus versos, elementos cotidianos da religiosidade popular, Patativa elabora comentários poéticos também a respeito de elementos componentes da ortodoxia institucional, bem como de personagens bíblicos; sempre de modo ressignificado, incorporando-os ao campo simbólico popular, de modo crítico e criativo.

No caso de um outro poema endereçado ao seu amigo Padre Antônio Vieira, o personagem abordado é o jumento que recebe de Patativa inúmeros elogios por sua força e sua importante função na narrativa bíblica de salvação.

Surpreendente é o modo como o poeta finaliza esse poema, acirrando o tom de sua crítica social, pois compara o descaso da sociedade ao jumento com o descaso ao

povo sertanejo, também personagem de grande valor para agricultura e subsistência inclusive das cidades.

MEU CARO JUMENTO (...)

O seu valô subrimado, Não é só pruquê trabaia Levando os costá pesado E os quatro pau da cangaia Pois você não merecia Sofrê tão grande narquia Vivendo como um criado, Com o seu valô profundo, Era pra sê neste mundo Um animá respeitado.

Merecia até mora

Num jardim belo e perfeito Mode todos visitá

Com amô e com respeito. Basta a gente maginá Que de todos animá Que esta grande terra cria E tem o nome na históra, Só você teve a gulora De carregá o Missia.

(...)

Você, meu caro jumento, Foi quem teve a grande sorte, O grande merecimento De servi como transporte Na noite desta fugida, Defendendo a santa vida De Cristo Nosso Senhô. Até nos livro sagrado Seu nome ta carimbado, Mas ninguém lhe dá valo.

(...)

E agora, caro jumento, Se eu errei, peço perdão, Mas, todo seu sofrimento É falta de potreção, De assistença e de respeito. Você é do mesmo jeito Do matuto agricurtô Que trabáia até morrê Pro mundo intero comê Mas ninguém lhe dá valo.318

Como bem afirma Geertz, uma abordagem completa da cultura deve analisar os atos simbólicos ligando-os aos acontecimentos sociais, dessa forma a poesia de Patativa revela-se como discurso crítico sobre a realidade, já que o significado simbólico atribuído ao jumento é ainda reforçado por sua relação com o povo sertanejo e sua sofrida situação social e econômica. Nessa análise é imprescindível o significado cristão e bíblico atribuído ao animal, bem como os elogios à sua força física e utilidade no trabalho cotidiano que, posteriormente, são relacionados em analogia à situação do povo matuto.

Nessa mesma linhagem temática de defesa do jumento, Patativa produziu também outra obra, publicada no mesmo livro que o poema citado anteriormente; neste, de forma mais crítica, o poeta narra a crueldade dos matadouros da Bahia por consumir carne desse animal considerado, por ele, sagrado. Além de relembrar o valor simbólico do animal, recorrendo à sua função bíblica, Patativa relembra seus sofrimentos ao arcar com pesadas cargas e, ainda, ser feito alimento para os humanos; encerra clamando à Deus, à Jesus, ao Padre Antonio Vieira e, até, ao poeta Castro Alves, solicitando auxílio a esse pobre animal.

MEU PROTESTO Minha gente, o frigorico Lá das terra de Bom Fim, Promode abatê jirico É coisa qui eu acho ruim. (...)

318 Ibidem, p.100-104.

Jirico, que vida amarga! Como é triste o seu vivê! Quando lhe estragam na carga, Vão sua carne comê.

Meu pensativo jumento, Isto é um atrevimento, Um crime, um grande pecado, Um sacrilejo, um capricho, Comê a carne do bicho Que Jesus andô muntado.

(...)

Meu bom Jesus Nazareno, Venha a este mundo, ou mande, Pois seu animá piqueno, Mais porém dum valô grande, Qui fez o pape bonito Lhe conduzindo ao Egito Junto com José e Maria, O povo sem compaxão, Sem arma e sem coração Ta matando na Bahia.

Distinto Padre Viera, Que sobre o jegue escreveu, Veja que grande sujêra Fizero cronta o lepeu! Para o sinhô, iscritô, Do jumento o defensô, É grande a decepição; Meu prezado reverendo, A Bahia tá comendo O Jumento nosso irmão.

Ó Crasto Arve, incelente E primoroso poeta,

Que no poema “O VIDENTE” Tombém mostrô sê profeta,

Peça na sua gulora A licença de uma hora

Dum segundo ou dum momento, E venha vê o grande agravo, Você defendeu o iscravo Venha defendê o jumento!319

Em contato com a vasta obra de Patativa e a variedade encantadora de seus poemas, outros dois também podem ser caracterizados como referentes à religiosidade:

Antônio Conselheiro e O Padre Henrique e o dragão da maldade, o primeiro devido à

pertinência do movimento de Canudos320 e da pessoa do próprio Conselheiro na constituição da identidade popular do sertanejo, bem como de sua religiosidade típica. O segundo poema, feito a pedido de Dom Hélder por Patativa, decorre do movimento católico da Teologia da Libertação321.

São poemas exemplares, pois se dirigem diretamente ao religioso e suas manifestações na Cultura Popular, revelando suas imbricações com aspectos do social, do econômico e do político.

O misticismo caracteriza o poema que trata da figura messiânica de Antonio Mendes Maciel, o Conselheiro; enquanto a tônica mais forte do poema sobre o Pe Henrique é a crítica social.

Em seu poema sobre o Conselheiro, Patativa enaltece a figura messiânica do líder que foi Antonio Vicente Mendes Maciel, retratando sua função organizadora e defensora do povo oprimido, em diversos momentos. Enaltecendo ainda, o caráter missionário da vida do Conselheiro, que apesar de sua total intenção religiosa provocava reações políticas.

319 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, p. 164-166. 320 A respeito da guerra de Canudos, seu histórico religioso milenarista e político, é possível recorrer a

diversas fontes; como indicação literária o livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha e como exemplo de textos acadêmicos, entre inúmeros outros, a REVISTA USP. Dossiê Canudos. Textos de José Calasans. Nº 20, Dez./Jan./Fev., 1993/94.

321 Esse novo enfoque epistemológico sobre noções teológicas, além de instaurar uma reflexão que visa o

pleno compromisso de caridade da Igreja, pretende ressaltar seu compromisso libertador. Cf. introdução da obra de GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. Trad. Jorge Soares, 5ª ed., Petrópolis: Vozes, 1985, p.9-11.

Para maiores informações a respeito da Teologia da Libertação buscar também a obra em parceria de BOFF, Leonardo. BETTO, Frei. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

O líder do movimento milenarista adquire atributos de herói e passa a