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Estudos de aquisição de linguagem mostram que crianças possuem a capacidade de detectar sutilezas provavelmente nunca explicitamente ensinadas a elas a respeito de estruturas de sentenças. Imagine um grupo de crianças de 3 anos assistindo à seguinte cena com personagens de brinquedo: um leão está dentro de uma caixa pegando galinhas para si (CRAIN; MCKEE, 1985). A seguir, as seguintes sentenças são apresentadas a elas:

(34) Quando ele pegou as galinhas, o leão estava na caixa.

(35) Ele pegou as galinhas quando o leão estava na caixa.

De 62 crianças, 88% consideraram (35) falsa quando elas viam o leão pegando as galinhas, mas elas não tiveram grandes problemas para julgar (34) verdadeira a respeito da mesma cena. É praticamente impossível que essas crianças soubessem julgar as sentenças dessa maneira devido a algum curso pré-escolar sobre a gramática da anáfora, ou seja, sobre a maneira como nomes e pronomes podem compartilhar o mesmo referente dependendo de sua posição na sentença. (CRAIN; NAKAYAMA, 1987, p. 524)

Não tenho informações sobre qualquer teste parecido feito com animais treinados. No entanto, pela análise dos resultados experimentais acima, podemos ver por que tenho afirmado que a capacidade dos animais para dominar alguns aspectos da linguagem deve ser considerada latente: a ordem de palavras referenciais numa sequência linear simples deve ser desse tipo, ou seja, ela pode ser considerada mais fraca que a capacidade natural humana, mas, por outro lado, é maior do que zero.

Essa classificação por si só, no entanto, não diz muito. O ponto interessante a ser destacado aqui é que, pelo fato de alguns animais possuírem apenas um subconjunto das capacidades humanas quanto à linguagem pode levar a julgamentos diferentes por parte dos pesquisadores. Esses julgamentos dependem de quais dessas características da linguagem eles consideram importante.

Vimos na seção anterior que recursão pode ser considerado uma propriedade central da linguagem para alguns, mas pode não representar algo tão pertinente para outros. A centralidade da recursão como caracterização da linguagem é uma típica característica da concepção que chamo de internalista, já que ela possui raízes nos estudos de matemática e computação da primeira metade do século XX, como veremos no capítulo 4.

Outra conclusão interessante que pode ser extraída dos estudos com golfinhos e bonobos é que linguistas podem divergir sobre o que é gramaticalidade. Uma das características fundamentais da concepção internalista de linguagem é uma escolha teórica pela autonomia da sintaxe em relação à semântica, que foi representada no nosso modelo delineado em (33).

Nele, vimos que categorias linguísticas podem ser consideradas mais abstratas do que aquelas

postuladas por Herman, Kuczaj II e Holder (1993), e que é possível postular que mecanismos sintáticos possam ser distintos dos semânticos no maquinário da mente.

Essas assunções teóricas fazem diferença na definição de gramaticalidade: a concepção externalista de linguagem, por exemplo, é caracterizada pela importância maior dada ao conteúdo das sentenças em relação à forma. O modelo de interpretação (32)foi pensado como uma tentativa de descrever a concepção de linguagem deHerman e Uyeyama(1999), que parece postular uma relação direta entre as propriedades das categorias gramaticais e as interpretações das sentenças. Por exemplo, a característica transportável, que reflete diretamente uma relação entre a condição física de objetos e a capacidade motora dos animais, foi considerada um traço gramatical pelos autores.

Uma observação importante deve ser feita: a descrição da concepção de Herman e Uyeyama (1999) acima foi simplificada. No estudo anterior, (HERMAN; KUCZAJ II; HOLDER, 1993), os autores, na verdade, propõem uma separação terminológica entre anomalia sintática e semântica. Eles consideram certas categorias como sintáticas (objeto direto eobjeto indireto) em oposição a categorias semânticas (objetos transportáveis e estacionários).

No entanto, apesar da terminologia, a noção de gramaticalidade deles difere em aspectos significativos de uma gramaticalidade baseada em sintaxe autônoma. Para os autores, as noções de objeto direto e objeto indireto são baseados apenas no fato de que a gramática dos golfinhos corresponderia à estrutura humana de verbos como “trazer X até Y”, ou seja, X representaria o objeto direto e Y representaria o objeto indireto por que eles são classificados dessa maneira em inglês.

Sob uma concepção de sintaxe autônoma, no entanto, as gramáticas humanas ignora-riam o fato de que o nome de um objeto, seja ele transportável ou não, estaria ocupando a posição de objeto direto ou indireto, para efeitos de gramaticalidade.

Nesse caso, tanto a sentença “leve a banana até o quintal” como “leve o quintal até a banana” seriam interpretáveis, apesar da impossibilidade semântica (ou, talvez, da incompatibilidade lexical) da segunda. O que realmente tornaria as sentenças agramaticais, segundo essa concepção, seria a inserção de um item lexical próprio de outra categoria sintática, como, por exemplo, usar um verbo no lugar de ‘o quintal’.

Para resumir, acredito que tenha sido basicamente a diferença de recorte teórico que teria influenciado a disparidade entre as opiniões desses autores sobre os resultados desses experimentos. Pinker (1994) traz um ponto interessante sobre capacidades de animais. Ele diz que há muitas características que podem ser atribuídas ao conceito de linguagem, e que encontrar (ou deixar de encontrar) algumas dessas propriedades em animais treinados pode dar início a um debate infrutífero.

O debate é sobre o que qualifica como Linguagem Verdadeira. Um lado lista algumas qualidades que linguagem humana possui, mas nenhum animal

treinado ainda teria demonstrado: referência, uso de símbolos em um tempo e espaço deslocados de seus referentes, criatividade, percepção categorial da fala, ordem consistente, estrutura hierárquica, infinidade, recursão, e assim por diante. O outro lado encontra contra-exemplos no reino animal (talvez periquitos possam discriminar sons da fala, ou golfinhos ou papagaios possam identificar ordem de palavras quando respondem a comandos, ou algum pássaro possa improvisar seu canto indefinidamente sem se repetir) e então se regojiza de que o castelo da unicidade humana teria sido violado.

O time da Unicidade Humana abandona aquele critério, mas enfatiza outros, ou adiciona novos à lista, provocando objeções iradas de que eles estão movendo as traves do gol. (PINKER,1994, p. 347)

Embora, sobre Pinker, também possa ser dito que ele muitas vezes defende energi-camente uma concepção de linguagem internalista, a linha de raciocínio mostrada acima se encaixa bem aos propósitos do presente trabalho. Linguistas e pesquisadores de animais podem se posicionar em times que dão ênfase a diferentes aspectos da linguagem. A maior divisão mostrada nesse capítulo está relacionada à fronteira teórica entre sintaxe e semântica, que, no caso da concepção internalista, tende a isolar a primeira da segunda.

No próximo capítulo, veremos como diferentes concepções de linguagem e de objetivos científicos podem fazer com que vejamos os processos de mudança e evolução de maneiras distintas.

capítulo 3

MUDANÇA OU EVOLUÇÃO?

A extinção de uma vasta multitude de idiomas acarretou a morte de muitas formas intermediárias; a migração de povos causou o deslocamento das relações de parentesco originais das línguas, de maneira que agora os idiomas de formas essencialmente diferentes possuem todos a aparência dos vizinhos, enquanto que nenhuma forma intermediária é encontrada entre eles. Tal é o caso, por exemplo, do Basco, uma ilha isolada no arquipélago indo-germânico. Darwin diz essencialmente o mesmo sobre as relações de animais e plantas.

(August Schleicher)

A área de evolução da linguagem engloba diferentes tipos de pesquisa, e um dos motivos para que todos eles sejam designados pelos mesmos termos é de que, histórica e democraticamente, muitas definições tanto de evolução quanto de linguagem emergiram entre os estudiosos.

A linguística histórico-comparativa, por exemplo, muitas vezes usa o termo ‘evolução’

para descrever o que outros chamam de ‘mudança linguística’, ou seja, as transformações que ocorrem naturalmente ao longo dos anos em línguas como o latim e o português, por exemplo.

Enquanto isso, a definição genética de evolução está geralmente associada à frequência de certos tipos de genes em uma população (BOYD; SILK, 2009, p. 54).

Esses casos de homonímia de conceitos não causam muitos problemas quando os estudiosos que utilizam esses termos possuem um acordo qualquer delimitando os conceitos denotados por eles. Mais importante que essa ambiguidade terminológica, no entanto, é a ocorrência de algumas assunções teóricas de grande escala que se opõem diretamente entre si.