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3.1 A dicotomia gradual versus não-gradual

3.1.3 O que dizem os registros arqueológicos

O quebra-cabeças não é dos mais fáceis. A escassez e fragmentação do material arqueológico coletado (ossos, dentes, artefatos etc.) torna vasto o número de possibilidades sobre o surgimento da linguagem, em termos de locais, períodos e descendência genética.

Vejamos algumas evidências empíricas sobre a existência de linguagem nos humanos em ordem cronológica inversa.

Os aparelhos que gravam áudio foram inventados há pouco mais de um século. A escrita alfabética, que representa segmentos fonológicos, há aproximadamente 4 mil anos.

A partir daí, as evidências se tornam um pouco mais indiretas. Os primeiros humanos a mudarem de um sistema nômade de caça e coleta para um sistema agricultural surgiram há aproximadamente 10 mil anos, durante a chamada revolução neolítica. Há registro de santuários de pedra construídos antes disso, como as ruínas de Göbekli Tepe na Turquia, por volta de 12 mil anos.

Há 50 mil anos, houve a revolução conhecida como grande salto, descrita acima. Até esse momento, a aceitação de que a faculdade de linguagem humana já deveria ter surgido é aceita pela grande maioria dos pesquisadores. Para eles, as evidências de comportamento complexo da espécie justificariam a decisão de postular que esses traços de comportamente estariam associados à capacidade de pensamento simbólico complexo, e, por consequência, de linguagem.

A partir desse marco, no entanto, a controvérsia aumenta na mesma proporção em que a distância rumo ao passado.

Os registros mostram que, por volta de 1,8 milhões de anos atrás, grupos de Homo erectus já utilizavam as chamadas ferramentasacheulianas. Elas consistiam principalmente de bifaces, pedras esculpidas para funcionarem como lâminas. Esse tipo de ferramenta exige mais planejamento e treinamento em sua confecção do que as anteriores, o que aponta para uma transição cognitiva importante entre os hominídeos.

Retrocedendo ainda mais no tempo - 2,6 milhões de anos - há evidências de usos de ferramentas mais simples (as chamadas olduwanas) por antecessores do gênero Homo, muito provavelmente alguma espécie do gênero Australopithecus. Apesar dos fósseis e dos artefatos serem extremamente fragmentários, é possível supor que esses hominídeos modificavam pedras, transformando-as em instrumentos cortantes para processar carne e acessar a medula de ossos de grandes mamíferos, uma fonte de calorias difícil de ser ignorada (SEMAW et al., 2003).

Outra equipe de pesquisadores sugere que hominídeos ainda mais antigos podem ter usado cascos de animais para o mesmo fim, baseado em amostras de ossos de mamíferos apresentando marcas de corte com impacto, encontrados há 3,4 milhões de anos. Os dados, no entanto, são considerados controversos pelos próprios autores: não há evidência definitiva de que as marcas deixadas nos ossos possam ter sido causadas pelo uso dos cascos dos animais

ou por outros motivos (MCPHERRON et al., 2010).

A figura 6 representa uma das muitas propostas para a linhagem do Homo sapiens, tanto em termos de tempo como ocupação geográfica. Ela mostra apenas uma parte do período de 5 milhões de anos que P&B se referem como espaço para conjecturas sobre as origens da linguagem.

Por um lado, pesquisadores que defendem uma caracterização gradual de capacidades cognitivas defendem que a história do desenvolvimento das ferramentas e artefatos humanos sugere uma evolução em termos cumulativos. Por outro lado, quanto mais antigas as evidências, maior é a elaboração indutiva necessária para se inferir que a espécie em questão possuiria linguagem (ou uma protolinguagem) aliada a outras capacidades cognitivas.

Não são apenas ferramentas e artefatos simbólicos que podem ser utilizadas para argumentação em favor de uma longa história evolutiva da linguagem. Fósseis como o osso hioide Kebara 2, mencionado na seção 1.1.2, são às vezes citados como evidência para sustentar a hipótese de que neandertais também podiam articular algum tipo de linguagem. Eles também utilizavam alguns artefatos, como lanças para perfuração e ferramentas simples feitas de ossos.

O último antecessor comum entre Homo sapiens eHomo neanderthalensis teria vivido entre 800 mil e 1,2 milhão de anos atrás (ver figura6). Se o traço de linguagem fosse realmente compartilhado entre as duas espécies, é possível que ele fosse considerado homólogo, ou seja, seria herdado dos antecessores. Nesse caso, portanto, seria válido supor que esse antecessor comum também pudesse possuir alguma variedade desse traço.

No entanto, não é difícil contra-argumentar a respeito dessas assunções. As habilidades de construir ferramentas por parte de todos os hominídeos não apresentaram grandes inovações tecnológicas até o ponto em que os humanos anatomicamente modernos as diversificaram drasticamente por volta de 50 mil anos. Outros primatas modernos, como chimpanzés, orango-tangos e bonobos utilizam ferramentas simples como varetas para coletar insetos ou espetar mamíferos pequenos dentro de suas tocas. Abutres utilizam pedras para quebrar ovos de outros pássaros. Corvos aprendem a jogar nozes nas ruas para que os carros as quebrem ao passar por cima. Mas como vimos no capítulo 2, a esses animais, em seu estado natural, dificilmente pode ser atribuída uma capacidade de linguagem humana.

A variedade dos artefatos produzidos pelos neandertais era levemente superior à do Homo erectus. Esse dado pode ser interpretado de duas maneiras. É possível argumentar, de um lado, que, se os neandertais possuíam capacidades cognitivas suficientes para desenvolver linguagem, baseado em suas capacidades de produzir artefatos, então os H. erectus também poderiam possuí-la. Mas também é possível usar a mesma correlação para argumentar o contrário: se um não tinha condições de desenvolver tal capacidade, o outro também não.

Como podemos perceber, as possibilidades evolucionárias são inúmeras. No que tange à evolução de algo complexo como a linguagem, sempre haverá algum embasamento no

Figura 6 – Evolução de hominídeos no tempo e espaço, segundo uma das muitas análises possíveis baseadas em fósseis: apesar de sua aparição na linhagem dos hominídeos ser muito recente (aproximadamente 200 mil anos), o Homo sapiens apresenta uma capacidade sem igual de ocupar nichos ecológicos muito diferentes por todo o globo.

Autor: Reed, D.L.; Smith V.S.; Hammond S.L.; Rogers, A.R.

Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Human_evolution_

chart-sv.svg>

Do artigo: Reed, D.L.; Smith V.S.; Hammond S.L.; Rogers, A.R. et al.

Genetic Analysis of Lice Supports Direct Contact between Modern and Archaic Humans. PLOS Biology 2(11): e340., 2004, doi:10.1371/journal.pbio.0020340

<http://www.plosbiology.org/article/info:doi/10.1371/journal.pbio.0020340>

Figura adaptada de:

Stringer, C., Human evolution: Out of Ethiopia, Nature 423, junho 2003, pp.

692-695, doi:10.1038/423692a

infindável estoque de argumentos arqueológicos, comportamentais, filogenéticos etc. para justificar posições favoráveis tanto a mudanças graduais quanto não-graduais.

Esse é mais um dos motivos para prosseguirmos com cautela. Na seção seguinte, veremos como desembaralhar alguns desses argumentos supostamente contraditórios sobre mudanças graduais e bruscas, mas buscando a comparação com outro tipo de sistema dinâmico sujeito à seleção: as línguas humanas.