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I. 3. O CENTRO EM TRANSFORMAÇÃO E A CHINA

I. 3.1. ASPECTOS DE UMA ESTRATÉGIA CHINESA E AMERICANA

Existem interpretações distintas sobre as estratégias de crescimento e desenvolvimento chinês. Medeiros (1999) diverge das teses mais difundidas, as quais podem ser organizadas em dois subgrupos. Um primeiro conjunto de economistas “gradualistas” adota como

65,9% 65,5% 59,8% 47,3% 29,2% 30,7% 29,4% 24,1% 21,2% 19,7% 24,4% 37,8% 6,4% 6,2% 6,1% 7,6% 2,4% 2,5% 5,3% 12,1% 30,4% 26,7% 28,0% 22,5% 0% 20% 40% 60% 80% 1980-1989 1990-1999 2000-2009 2010-2015

G7 União Europeia Mercados Emergentes e Economias em Desenvolvimento America Latina e Caribe China EUA

0% 20% 40% 60% 80% 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

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explicação do sucesso da via chinesa de transição à economia de mercado a sua forma lenta – ao contrário da estratégia abrupta da ex-URSS e das economias do leste europeu. A China, diferentemente desses países, teria adotado uma estratégia gradual e de criação de instituições adaptadas à sua realidade, de modo a não reproduzir instituições típicas das economias ocidentais. As reformas promovidas pelo Estado, aliadas à formação da pequena indústria rural, ao regime de contratos com os produtores agrícolas e ao sistema dual de formação de preços permitiram o sucesso do crescimento chinês. Seria, então, o gradualismo e o respeito às especificidades chinesas que explicariam o êxito não verificado na transição a economia de mercado feita de forma caótica na ex-URSS e no leste europeu.

Um segundo subgrupo de economistas, inspirados na “economia institucionalista”, é o de orientação tipicamente ortodoxa e inspirada em modelos de crescimento de Solow. Essa vertente compreende que a estratégia gradual chinesa não comprometeu seu desenvolvimento na medida em que, a despeito de ser gradual se consolidaram instituições tipicamente de mercado, liberaram-se os preços e se adotou uma política de abertura externa. Portanto, tal como em uma função de produção neoclássica típica, esses elementos teriam permitido que uma economia de baixa renda per capita, com uma grande oferta de mão-de-obra barata previamente ocupada em atividades rurais e de baixa produtividade, atingisse uma acelerada acumulação de capital.

Ainda que o gradualismo haja sido central na transição chinesa à economia de mercado e não seja elemento a ser subestimado na análise,27 ambos grupos desconsideram (ou subestimam) um elemento central do desenvolvimento chinês, qual seja, sua estratégia desenvolvimentista e o papel do Estado na liderança das transformações econômicas e sociais. Segundo Medeiros (1999), o “espetacular crescimento econômico chinês com mudança estrutural” que se iniciou em 1978 se explica por três principais vetores: (i) a estratégia americana de isolamento e desgaste da URSS; (ii) a ofensiva comercial dos EUA com o Japão; e (iii) a estratégia do governo chinês de afirmação da soberania do Estado por meio do desenvolvimento econômico e modernização da indústria. Com relação a esses vetores levantados por Medeiros (1999) vale aprofundar um pouco mais dois deles, quais sejam, a estratégia estadunidense de isolamento da URSS no contexto da Guerra Fria e a estratégia do governo chinês de promover o desenvolvimento econômico e modernizar-se como forma de consolidar sua soberania.

27 Para uma discussão acerca da importância do gradualismo na transição chinesa, consultar Popov (2007), em

A relação histórica da China comunista com a União Soviética foi marcadamente complicada. Ainda que o senso comum leve a assumir que China e URSS deveriam ser aliados naturais, por uma identidade ideológica na busca de um modelo econômico alternativo ao modo de produção capitalista ocidental, a realidade é que, por diversas razões, a relação sino-soviética foi bastante complexa e potencialmente conflituosa, seja no período em que os países eram liderados por Mao, Deng, Stalin, ou Khrushchev, seja antes ou depois de a China reestabelecer relações com os EUA.

Já na Guerra da Coreia, no início da década de 1950, Kissinger (2011) argumenta que Stalin pressionou pela atuação chinesa no conflito com a expectativa de que isso também geraria uma duradoura hostilidade entre China e EUA, o que, consequentemente, fortaleceria a dependência da China com relação à URSS. Quanto a esse objetivo particular Stalin saiu derrotado, a despeito da importância da atuação chinesa no conflito. Mao estava tão convencido da profundidade das tensões entre EUA e URSS que acreditou que isso o permitiria não “pagar preço” algum aos soviéticos. O resultado foi que a China se envolveu no conflito, cativou hostilidades com os EUA, como previa Stalin, mas nem por isso se subordinou à URSS.

A URSS buscava, mesmo depois da morte de Stalin, consolidar sua liderança na Ásia, em uma forma análoga à influência exercida em boa parte da Europa oriental, que subordinava esses países na esfera econômica e também militar. Kissinger (2011) está convencido de que a ideologia, ao mesmo tempo, aproximou e distanciou China e URSS. A China, a despeito de compartilhar princípios ideológicos da revolução russa, possui fortes valores “sino-centristas” e detinha sua própria interpretação de como construir o comunismo, o que fez com que o país jamais aceitasse se subordinar aos soviéticos – os chineses, por exemplo, nem aderiram ao Pacto de Varsóvia, de 1955.

Mais do que essa relação complicada com a URSS, a estratégia de Mao era de hostilidade com ambas superpotências. Nem subordinação à URSS, nem aos EUA. Com os EUA o enfrentamento também foi duro, particularmente no tema de Taiwan. Os EUA, por sua vez, por muitos anos reconheceram Taiwan como o governo legítimo da China.

É curioso que a China, sob a liderança de Mao, mostrou-se muito incomodada com a posição de Khrushchev de criticar os crimes cometidos por Stalin. A China acusava a “des- Stalinização” de ser um processo de “revisionismo” – revisão de modelo que, de fato, anos mais tarde quem o fez foi Deng Xaoping na própria China. Mao tinha divergências com

Stalin, mas respeitava sua posição ideológica, chegando a afirmar que a crítica de Khrushchev e sua geração de líderes soviéticos deveria “ter limites” e que “dos dez dedos de Stalin, apenas três eram podres” (KISSINGER, 2011, p. 170 [tradução própria]).

Além de Mao acusar a URSS pós-Stalin de “revisionismo”, Mao também chegou a rejeitar uma proposta de Khrushchev, que em 1958 buscava utilizar a força de trabalho barata e de ampla disponibilidade da China em projetos na Sibéria. Mao respondeu de forma dura e irônica:

“Você sabe, Camarada Khrushchev, há anos existe essa opinião generalizada de que a China é um país subdesenvolvido e sobrepovoado, com amplo desemprego, que, portanto, representa uma boa fonte de trabalho barato. Mas você sabe, nós chineses achamos essa atitude muito ofensiva. Vindo de você, é bastante constrangedor. Se nós aceitássemos sua proposta, outros (...) poderiam pensar que a União Soviética tem a mesma imagem da China que o Ocidente capitalista.” (KISSINGER, 2011, p. 163 [tradução própria]).

Fiori (2013a) menciona que “o grande salto capitalista” da China tem raízes na década de 1950, em decorrência da ruptura da China com a União Soviética. Fiori (2013a) traz à tona uma série de outros eventos que também explicitam as dificuldades sino-soviéticas já na década de 1950 e nos anos seguintes, tais como, a militarização na fronteira, o primeiro teste nuclear chinês em 1964 e o lançamento do primeiro foguete balístico dois anos depois. Levando, inclusive, a que Mao mencionasse ao presidente Nixon em 1972 uma proposta de uma “linha horizontal” para contenção da URSS que iria desde o Oriente Médio até o Japão.

Portanto, o que se quer ilustrar com esses fatos é que a estratégia americana de isolar a URSS, que sugere Medeiros (1999), encontraria terreno fértil na China comunista, particularmente após a ascensão de Deng Xaoping.

Com a ascensão de Deng ao poder, no final da década de 1970, o mesmo estava convencido do relativo atraso da economia chinesa e da necessidade de o país adquirir tecnologia e conhecimento dos países industrializados e desenvolvidos. Dentre as principais razões que levaram Xaoping a buscar uma reaproximação com os EUA, os temas da modernização da economia e do acesso a tecnologias foram cruciais. Essas preocupações do líder chinês ficaram evidente em distintos momentos, em especial nas viagens que Deng Xaoping fez aos EUA, Japão e sudeste asiático entre 1978 e 1979, período em que também concedeu entrevista à revista Time.28 A tônica das viagens não escapava da preocupação com a soberania nacional, mas continha importantes novidades no discurso. Deng mencionou seu

interesse em defender-se da URSS, ao mesmo tempo em que afirmava que a China não poderia depender exclusivamente dos EUA, ou da Europa. Conforme relata Kissinger (2011), Deng, de uma forma inédita para um líder chinês, insistiu explicitamente no atraso da economia chinesa e na pobreza de seu povo, manifestando a necessidade de aprender com outros países. Deng aproximou-se inclusive do Japão, onde novamente destacou os problemas decorrentes do atraso da economia chinesa, mencionando que “se você tem uma cara feia, é inútil fazer de conta que é bonito” (KISSINGER, 2011, p. 358).

Se Deng Xaoping tinha interesse em reaproximar-se dos EUA, do lado estadunidense, Jimmy Carter havia estabelecido como prioridade de seu governo a normalização das relações sino-americanas, como apresenta Kissinger (2011). As pressões soviéticas na África e Oriente Médio “convenceram” Carter a acelerar a normalização das relações com a China, em um esforço de minar a liderança global da URSS e consolidar seu distanciamento da China de Deng Xaoping. Nesse sentido, conforme nota Fiori (2011), Henry Kissinger era parte de um grupo de republicanos e democratas convencidos de que a expansão da China seria benéfica para os interesses americanos e, portanto, caberia aos EUA construir uma parceria estratégia com a China. Ainda na opinião desse grupo, evidentemente que essa aliança deveria administrar divergências e fatalmente os Estados Unidos teriam que compartilhar a liderança regional com a China, mas, sobretudo seria a forma de evitar um confronto frontal.29

Com isso, nota-se que houve uma importante coalizão de interesses entre a China, que queria marcar seu processo de desenvolvimento de forma soberana e independente da URSS, ao mesmo tempo em que os EUA se empenhavam em minar a liderança militar e econômica do bloco soviético. Esse momento histórico permitiu, dessa maneira, a reaproximação da China com os EUA e contribuiu definitivamente para que o país asiático construísse sua estratégia de sucesso econômico, como evidenciam os dados apresentados anteriormente.

Uma vez já claras as condições históricas que permitiram a recuperação de relações sino-americanas, é crucial insistir no fato de que a mesma esteve subordinada a um Estado chinês organizado para consolidar sua soberania nacional. Como menciona Fiori (2013a), o ponto de vista político de Deng Xaoping era de que “o desenvolvimento da China deve estar sempre a serviço da sua política de defesa”. Para tal objetivo, Deng articulou essa estratégia internacional, acima discutida, a um conjunto de reformas no campo doméstico para

29

Ainda conforme Fiori (2011), essa postura liderada por Kissinger se contrapôs a outro grupo, bem representado pela visão do cientista político John Mearsheimer, que acreditava que a ascensão da China poderia criar um Estado inevitavelmente agressivo e determinado a conquistar uma liderança regional.

modernizar a economia, com a agenda das “quatro modernizações”: agricultura, indústria, defesa, e ciência e tecnologia. Pantsov e Levine (2015) destacam que as reformas asseguravam a expansão de direitos a empresas em sua gestão financeira, comércio internacional, contratação e demissão de funcionários. As modernizações também moviam a China na direção de maior abertura econômica, com o objetivo de absorver tecnologias e experiência de gestão do exterior, atraindo investimento direto externo e estabelecendo joint enterprises.

Vale destacar, ainda que Deng estivesse convencido da necessidade de modernizar a economia chinesa, o líder chinês argumentava que isso não significava desmantelar o socialismo. Xaoping afirmava que não reformar o país condenaria a China a “seguir para sempre atrasada”, portanto seria importante modernizar-se e abrir-se ao exterior, mas que o país deveria “preservar a ordem socialista (...) essa fica intocável.” (Deng Xaoping apud PANTSOV & LEVINE, 2015, p. 335). Portanto a estratégia chinesa não era de consolidar “instituições de mercado” que fariam o desenvolvimento chinês, como apontam alguns economistas, mas de permitir o desenvolvimento de mercados sob a coordenação e planejamento de um Estado que manteve a capacidade de subordinar a agenda econômica a um objetivo político mais geral – naturalmente sem discutir os méritos do que seria, ou deixaria de ser, o que Deng chamou de “ordem socialista”.

Fiori (2013b) e Cintra et al. (2015) ressaltam que sob o controle político do Partido Comunista Chinês (PCC), a tradição milenar anteriormente representada e legitimada pelo imperador foi restaurada. Mantiveram-se os princípios morais do confucionismo, articulados a uma estrutura de poder onde as decisões são centralizadas, de modo que se consolida no Estado chinês um ambiente de estabilidade política com o compromisso pelo crescimento da renda. Assim, o Estado define uma estratégia de desenvolvimento e de gestão da economia para que, por meio do crescimento da renda, a China tenha as condições de melhorar as condições de vida da população, construir um país moderno, poderoso e independente. Essa estratégia nacional e social, cujos objetivos principais são reconquistar a liderança internacional chinesa e sua autonomia, subordina as políticas econômicas, de ciência e tecnologia e de defesa. Portanto, a China fez reformas no sentido de uma “economia de mercado”, mas o Estado chinês não se aventurou em abandonar sua capacidade de planejamento da economia, nem entregou ao mercado a gestão de variáveis macroeconômicas, nem abandonou a política industrial – aventura essa que muitos países da América Latina adotaram durante a hegemonia do neoliberalismo.

Dessa maneira, o desenvolvimento chinês não seria apenas produto de uma transição gradualista de construção de instituições próprias de uma economia de mercado. Tampouco seria a abertura à economia de mercado que permitiu taxas acentuadas de acumulação de capital, da função de produção agregada chinesa. O desenvolvimento chinês com mudança estrutural foi, sobretudo, resultado de uma estratégia nacional de desenvolvimento para a consolidação de soberania sobre seu próprio território e população, em um contexto geopolítico no qual os EUA buscaram isolar a URSS. A sabedoria chinesa esteve em navegar sua estratégia de desenvolvimento em um contexto geopolítico particular, que os permitiu criar suas condições de expansão econômica.