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I DADE : 11 ANOS

4.3 Liel e Gavillan

4.3.1 Aspectos do cotidiano escolar na Bolívia

Nos depoimentos desses dois jovens bolivianos indocumentados, podemos consignar lembranças não tão agradáveis do espaço educacional boliviano, à medida que relatam alguns momentos de extrema rigidez e autoritarismo que marcaram suas passagens por esse espaço. Enquanto Liel é econômico nas palavras, deixando transparecer a pouca vontade de recordar os momentos vividos na Bolívia, Gavillan expõe os fatos de forma expansiva e com extrema vontade de contar algumas ocorrências de seu cotidiano nas escolas bolivianas.

É. Eu estou quase cinco anos aqui. Eu vim com 12 anos. Tipo assim..considero que quando eu vim pra cá um pouco pequeno, Entendeu?! Se eu tivesse vindo na idade um pouco mais velho. Tipo...Dezesseis anos que eu tô. Eu ia lembrar muito mais de lá do que...Tipo...Assim entendeu?! Eu não sei muita coisa...Não lembro. ..Que...Tipo...Nasci lá...Tem que saber alguma coisa....Assim...Eu sei alguma coisa assim...Lembro.Mais ou menos...Eu estudei em La Paz. No centro. A escola que eu estudei não era muito grande... A gente estudava tipo assim...Meio

período. Eu lembro que os professores eram bravos. Batiam, puxam a orelha e ninguém podia falar nada. Aprendi um pouco de história da Bolívia. Tipo história do país mesmo... Usava uniforme...E tipo...Tinha que estar bem limpo...Entendeu?! Se não ia pra diretoria. Gritavam com quem não ia com o uniforme. Muitas vezes vi colegas não estudarem na semana...Tipo porque não foram de uniforme um dia... Era muito rígido, entendeu?! Agora...Ficava bastante parado também...Tipo...Muita greve. Agora... Não lembro muito...Não...Eu cresci mais ou menos por aqui, entendeu?!. Então...as coisas que eu sei de lá mesmo.... são bem poucas. O principal pelo menos eu tento saber...e...Eu acho que não atrapalha não...Entendeu?! (Liel)

Verificamos que Liel demonstra um afastamento no que concerne às lembranças de um passado recente vivido na Bolívia à medida que prefere afirmar para si que viveu mais no Brasil que na Bolívia, ainda que tenha permanecido 12 anos de seus 16 no espaço boliviano. Também, demonstra um misto de timidez e desconfiança ao participar da entrevista, embora tenhamos explicitado todos os objetivos da pesquisa, e termos nos comprometido, com ele e com seu tio Álvaro, manter no anonimato determinados aspectos que pudessem comprometer sua estadia no Brasil.

Lá na Bolívia, em La Paz, onde estudei primeiro...Existia como fosse tipo... Você errrava...E pá!!!! Os professores tinham um pedaço de madeira que eles mandavam fazer, para eles mesmos. Tipo...Esqueci... não sei o nome. Ah! Que nem a palmatória... Que apontava na lousa e você tem que olhar, às vezes eles trazem o mapa e mostram com o negócinho....Que nem uma régua mas... Eles não faziam com régua. Era um negócio de madeira com ponta grossa e ponta fina. Eles apontavam... Tinha uns professores que mandavam ir na lousa. Me lembro uma vez, que foi eu e mais duas meninas na frente da sala explicar, né! Aí foi a primeira menina, e ela errou. E a outra também errou. E tinha que falar os rios que passavam por todo Brasil. Nessa época eu achava fácil e eu fui lá e falei tudo. Por mais que ser pequeno, era fácil. Aí o professor falou: - Vai lá e bate nelas pra elas aprenderem! E o professor me deu a madeira, e fez eu bater nelas. Eu não queria bater nelas, mas tive que bater. (Gavilan)

No relato de Gavilan visualizamos de forma clara a severidade e o autoritarismo presente no espaço escolar boliviano e, mais grave ainda, a maneira como é realizada a violência física: o professor atribuindo a outrem – um aluno – a função de aplicar a punição naquele que errou. Assim, temos a violência praticada, primeiro em sua forma simbólica, que fornece a legitimidade do ato em si pelo volume de capital possuído, no caso pelo professor, e segundo, na forma física por intermédio da concretização da ação.

Nesse ponto podemos evocar Weill (1996, p. 174), quando afirma que “[...] a escola deveria ser imaginada de uma forma totalmente nova [...]”, para que o ensino nela expresso permitisse ao indivíduo egresso de seu espaço, visualizar uma sociedade mais justa e solidária, livre de opressões e aviltamentos.

Contudo, constatamos nesses relatos que, passadas décadas da proposição que Weill expôs em 1941, o espaço escolar pouco mudou e, conseqüente, pouco auxilia nas mudanças de paradigmas da sociedade.

No relato que segue, Gavilan nos apresenta o momento que esteve estudando em Cochabamba, uma vez que estava morando com seus avós, visto que seus pais haviam migrado ao Brasil.

Mas teve uma vez em Cochabamba, já tinha evoluído, já tinha mais coisa, já tinha bordado, tinha tudo, pintura, tinha educação artística...Lá era bem legal. Aqui a maioria, você não faz muita coisa manual, você aprende a coisa da arte. Lá também aprende. Mas.... faz também, e eu achava legal por que eu gosto de montar, desenhar...Mas bordar eu não gostava muito, era muito difícil, e a professora era muito brava...Alguns colegas, e até a professora, me chamavam de filhinho de papai.. Meus avós eram aposentados, não tinha o porquê deles me chamarem de filhinho de papai, eu não andava com dinheiro, mas sempre eu ia para escola arrumado, sempre limpinho. Que minha avó era chatona nesses negócios, mandava lavar todos os dias. Lá era legal, porque homem era camisa calça social, sapato preto e gravata. Bem uniformizado mesmo. E tinha que ir assim. E tinha alunos que não tinha condições. Eles pensavam que eu tinha dinheiro, vários uniformes...Às vezes tinha problema com isso na escola. É. Social. Eles pensavam que eu tinha dinheiro, mas eu não era, eu nem andava com dinheiro na escola.Onde eu morava era como se fosse um distrito bem longe da cidade. Era perto do quartel ainda. Minha rua era do quartel. Era tudo cara do campo, que tinha vaca, pasto, tinha as casa deles e vendiam leite, queijo...Só assim que eles viviam. Onde eu morava não fazia nada. Meus avós também... Era só na aposentadoria. (Gavilan)

Nos apresenta Gavilan, um certo deslocamento no período que estudou nessa escola em Cochabamba, à medida que estava situada em um espaço social carente e, sua situação social destoava da maioria dos colegas de classe, e até dos professores. Relata-nos que o capital cultural e econômico que possuía não o estimulava a ser diferente, contudo, o habitus que possuía revelava as diferenças e distinções entre os indivíduos que compartilhavam o seu cotidiano na escola.