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Seção 3 A representação da polissemia sob a ótica da Semântica Lexical Cognitiva

3.4 Aspectos estruturais e funcionais da dimensão semasiológica do léxico

As informações apresentadas em 3.1 e 3.2 nos possibilitaram dar mais um passo em direção ao equacionamento de nossos objetivos por prepararem o cenário para a descrição do fenômeno em foco no contexto da SLC. O olhar para a polissemia como um fenômeno categorial possibilita lançarmos mão do instrumental teórico disponível ao tratamento da semântica sob o viés cognitivo. A partir desta seção, analisaremos elementos necessários à representação de nominais polissêmicos sob a perspectiva da SLC. Iniciaremos dando destaque a duas questões implicadas na descrição do conteúdo lexical como um todo que interferem diretamente no tratamento a ser dado à polissemia, são elas: (i) as dimensões semasiológica e onomasiológica de estruturação semântica e (ii) seus aspectos qualitativos e quantitativos. As considerações feitas por Geeraerts (2006) e Soares da Silva (2006) guiarão o conteúdo aqui apresentado.

É frequente em SLC explicar a estruturação do conteúdo lexical lançando mão das noções comuns à Lexicografia, que são as dimensões semasiológica e onomasiológica do léxico. A reflexão sobre essas dimensões ajuda-nos a entender diferentes visões para o estudo do conhecimento lexical. As dimensões semasiológica e onomasiológica envolvem duas perspectivas inversas. Na dimensão semasiológica, o ponto de partida é a forma lexical, vai-se da forma para o conteúdo (nível intensional), ou o referente (nível extensional); por outro lado, na dimensão onomasiológica, o ponto de partida é o conteúdo, ou o referente, passando-se, então, para a forma lexical a ele associada. A polissemia é um fenômeno semasiológico típico, visto que seu estudo parte da forma para os sentidos (e referentes) que a ela se associam. Na dimensão onomasiológica, a estruturação lexical pode ocorrer por meio de relações semânticas (ex. sinonímia, antonímia, hiponímia, meronímia), campos semânticos, frames semânticos, etc. A sinonímia é o inverso onomasiológico mais direto da polissemia.

A descrição do conteúdo associado a uma categoria polissêmica deve também levar em consideração aspectos qualitativos e quantitativos das estruturas lexicais tanto do ponto de vista semasiológico quanto onomasiológico. Numa perspectiva semasiológica, estão envolvidos aspectos estruturais ou qualitativos do léxico que

remetem a entidades e a suas relações. Olhando especificamente para a polissemia, tratamos dos sentidos associados a um mesmo item e das relações entre eles. As questões fundamentais dessa dimensão são identificar os diferentes sentidos associados a uma mesma forma lexical e as relações que entre eles podem se estabelecer (ex.: especialização, generalização). Além de propriedades estruturais, aspectos funcionais do uso ou quantitativos, que remetem a diferenças de saliência, precisam ser considerados para a descrição do conteúdo lexical a partir da ótica semasiológica. Para a descrição de um item polissêmico, o que entra em questão nesse aspecto são diferenças de saliência entre os sentidos agrupados em uma categoria polissêmica (ex. saliência psicológica, saliência estatística, saliência referencial, etc. – que serão detalhadas em 3.7). A questão principal que se apresenta nessa dimensão é saber se os sentidos associados a um item têm o mesmo “peso estrutural” ou o mesmo poder de ativação em um contexto. As diferenças de saliência são entendidas também em termos de efeitos de prototipicidade entre os diferentes sentidos de uma categoria polissêmica. A definição do tipo de estrutura adotada para descrever um complexo polissêmico é também questão a ser tratada na dimensão funcional ou quantitativa de estruturação do conteúdo lexical. Tendo em vista os diferentes pesos estruturais dos componentes de uma categoria de sentidos, diferentes organizações podem ser pensadas. As mais populares são: a rede radial (proposta por Brugman e Lakoff), que prevê diferentes graus de centralidade para os sentidos, havendo um (ou mais de um) elemento prototípico que se relaciona radialmente com sua(s) extensão(ões); e a rede esquemática (proposta por Langacker), que prevê a representação de um sentido prototípico diretamente relacionado à sua extensão, estando ambos relacionados a um possível sentido esquemático (abstrato, englobante) – em foco na Seção 3.7.

Numa perspectiva onomasiológica, os aspectos qualitativos tratam dos variados conjuntos que podem ser formados com itens lexicais distintos que se relacionam por participarem de um mesmo campo lexical, de uma mesma taxionomia, de um mesmo frame, além de outros tipos de agrupamentos por meio de relações paradigmáticas, por exemplo, como sinonímia, antonímia, meronímia, hiponímia. Os aspectos quantitativos da dimensão onomasiológica envolvem as diferenças de saliência ou de “fixação”, o que remete à noção de entrenchment (termo apresentado em Langacker (1987) e traduzido

por Soares da Silva (2006) como “incrustamento conceitual”, para denotar o grau de fixação de um sentido em uma língua), entre diferentes categorias conceituais.

O quadro 3 sintetiza as informações reportadas aqui sobre o tipo de conteúdo semântico implicado na estruturação de uma categoria polissêmica. Por consequência, o quadro serve também como uma síntese do tipo de contribuição que uma descrição da polissemia fornece à estruturação do conteúdo lexical como um todo.

QUALIDADE: entidades e relações QUANTIDADE: diferenças de saliência SEMASIOLOGIA Polissemia

Sentidos e relações (rede) (generalização, especialização)

Polissemia Efeitos de saliência

ONOMASIOLOGIA (campos lexicais, taxionomias, Itens lexicais e relações frames, relações)

Incrustamento

Quadro 3 - A polissemia e a descrição da semântica lexical15

O quadro 3 põe em destaque questões semânticas que fazem parte da descrição da polissemia lexical e ajuda-nos a avaliar em que medida seu tratamento está relacionado com o tratamento do léxico como um todo. Um primeiro tópico a ser destacado, conforme Soares da Silva (2006), é o aparecimento de informações do tipo relações tanto na dimensão semasiológica quanto onomasiológica, numa perspectiva estrutural. O segundo ponto a destacar é a existência de implicações recíprocas entre semasiologia e onomasiologia, desse modo, a investigação das conexões entre sentidos associados a uma mesma forma não pode ocorrer de modo independente da investigação sobre conexões que esses itens lexicais estabelecem com outros semanticamente próximos (SOARES DA SILVA, 2006).

Tendo em vista que olhar para unidades linguísticas polissêmicas é olhar para a dimensão semasiológica do conteúdo lexical (cf. GEERAETS, 2006; SOARES DA SILVA, 2006), as informações apresentadas aqui foram importantes para revelar parte da complexidade da tarefa que nos propusemos: incluir uma representação que envolve a dimensão semasiológica do léxico em um recurso de base onomasiológica, como é uma wordnet. Um dos principais desafios está no fato de que a estruturação do léxico como um todo é diretamente afetada pelo tratamento que se dá à polissemia, razão pela qual não há como tratar da polissemia levando em consideração somente informações sobre relações semânticas em uma dimensão onomasiológica. Ao mesmo tempo em que a inclusão de relações semasiológicas em uma base de dados tipicamente onomasiológica pode parecer um empecilho, se levarmos em consideração o que defendem Geeraerts (2006) e Soares da Silva (2006), conforme apresentado ao longo desta seção, concluímos que essa integração de dimensões não só é possível, como é inevitável. Nas palavras de Soares da Silva (2006, p. 14), “condicionamentos recíprocos entre semasiologia e onomasiologia [são inevitáveis], pelo que ao estudo da polissemia de uma palavra ou de outra expressão não pode ser estranho ao estudo das relações entre essa palavra e outras semanticamente próximas”.