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Contribuições da Semântica Lexical Cognitiva para o Estudo dos Sentidos

Seção 3 A representação da polissemia sob a ótica da Semântica Lexical Cognitiva

3.2 Por que escolher o olhar da Semântica Lexical Cognitiva?

3.2.2 Contribuições da Semântica Lexical Cognitiva para o Estudo dos Sentidos

O compromisso cognitivo da LC assumido a partir de uma concepção não- modular de mente, apresentado no primeiro postulado, reflete-se no estudo do significado lexical, que passa a ser entendido como a expressão de processos gerais de categorização do mundo (TAYLOR, 1995). Partindo da concepção de que um item lexical (assim como as demais unidades linguísticas) pode ser estudado em termos de uma categoria conceitual – uma categoria linguística –, refletindo os avanços da Psicologia Cognitiva, destacamos como “núcleo comum” da SLC nas últimas duas décadas os resultados de pesquisas relacionadas aos seguintes tópicos: (a) a estrutura interna das categorias lexicais (ex.: estrutura de protótipo, estrutura por semelhança de família, estrutura de redes); (b) a natureza polissêmica das unidades linguísticas e os princípios cognitivos motivadores das relações entre seus diferentes sentidos (ex.: metáfora, metonímia, transformações por esquemas imagéticos); (c) estruturas conceituais mais amplas (ex.: pesquisas sobre metáforas, semântica de frames) (TAYLOR et. al, 2003).

O segundo postulado, o de que a língua emerge no uso, gera implicações para entendermos qual é a natureza dos sentidos associados aos itens lexicais e direciona seu estudo no contexto da SLC. Nega-se a concepção de significado como um objeto reificado, que está fixamente implicado nos itens lexicais de maneira independente do contexto em que eles são encontrados (TAYLOR et. al, 2003). Entre as alternativas propostas a essa noção, está a concepção de “potencial de significado” (cf. ALWOOD, 2003; SLATEV, 2003; JANSSEN, 2003; CROFT e CRUSE, 2004), entendido como aquela informação (porção de conteúdo conceitual) que poderá ser acessada por um item lexical a partir de informações contextuais e restrições de convenção. Entende-se, assim, que o potencial de significado de uma unidade linguística resulta do conhecimento armazenado sobre como aquela unidade tem sido utilizada em suas ocorrências anteriores. De acordo com Alwood (2003), essa noção serve como uma alternativa à necessidade de distinguir entre sentidos relacionados armazenados na memória de longa distância (polissemia) e sentidos construídos no momento do uso (monossemia).

Nesse contexto, conhecer uma unidade linguística envolve aprender um conjunto (possivelmente grande e aberto) de usos estabelecidos e padrões de uso (cf. TAYLOR, 2008). O significado lexical não igualado à interpretação corresponde a um potencial de

informação a ser construído ao se fazer uso de determinado item; a interpretação, diferentemente, é entendida como o processo que se dá em tempo real e a partir da compatibilização da porção do conteúdo conceitual acessada pelas unidades linguísticas (sentido) com as informações contextuais da situação (contexto linguístico imediato e conhecimento enciclopédico) e o conjunto de restrições convencionais (padrões de uso). O conteúdo conceitual que um falante deseja simbolizar a partir de determinada porção linguística em uma ocasião particular não corresponde, portanto, exatamente aos recursos disponíveis em nossa memória de longo termo. Extensões, reduções, associações são alguns dos processos cognitivos realizados pelo falante e pelo interlocutor no momento de construir a interpretação. Na medida em que essas novas construções de significado vão sendo repetidas, elas se tornam “incrustadas” (originalmente, entrenched) na língua e se tornam conteúdos disponíveis para próximas situações de uso. O fato de uma mesma unidade poder designar situações muito diferentes, ou seja, o fato de que o conteúdo linguístico pode ser elaborado de diferentes modos em diferentes contextos (TAYLOR et. al, 2003) é um dos principais desafios enfrentados pela SLC e está diretamente relacionado ao tema deste trabalho. O que está em questão aí, na verdade, é a relação entre uma concepção de sentido fixo e estável versus sentido flexível e sensível ao contexto. Aquela porção do significado lexical mais fixa e estável expressa em uma língua é a que é registrada em dicionários tradicionais, mas é importante notar que ela não representa para a SLC o todo do conteúdo acessível por um item.

Ao ser abandonada a visão reificada do significado lexical, é preciso abandonar também a visão tradicional de armazenamento e representação desse conteúdo. A estratégia convencional de armazenamento de sentidos a partir de uma lista de itens lexicais com sentidos estáveis e independentes é conhecida em SLC como a visão de léxico como um “dicionário tradicional” (cf. TAYLOR et. al, 2003; CROFT e CRUSE, 2004). Taylor et. al (2003) propõem que a chamada “visão dicionária” seja substituída pela estratégia do “córpus mental”, perspectiva que é representativa daquela adotada em SLC como um todo. Entende-se que o córpus compreende a memória de registros previamente encontrados na língua especificados tanto em seus aspectos de conteúdo quanto estruturais, bem como em generalizações sobre eles. De maneira análoga à concepção de que o sistema linguístico não é inteiramente comparável ao sistema cognitivo (que é mais amplo), devemos entender que o córpus mental, sob essa ótica,

não é inteiramente comparável a um córpus de língua real, tal como aqueles construídos pela Linguística de Córpus. Os sentidos associados aos itens lexicais que constituem o córpus mental são acessados de acordo com seu potencial para contribuir à compreensão dos contextos reais da língua em que ocorrem, pois representam generalizações de suas ocorrências particulares (suas instâncias), e não as ocorrências propriamente ditas.

Significado lexical é conceitualização – essa é a versão da SLC para slogan de Langacker associado à tese simbólica da língua, apresentado no terceiro postulado geral. Essa versão do slogan pode ser justificada no contexto da SLC, e no contexto da LC como um todo, pela concepção de que o conhecimento que uma pessoa tem da língua reside precisamente no conhecimento dos itens lexicais e de suas propriedades (cf. TAYLOR, 1995). Por serem unidades simbólicas, os itens lexicais são entendidos como motivadores (prompts) de operações cognitivas responsáveis pela construção do significado (do inglês, construal of meaning) a ser registrado e atualizado no sistema conceitual humano a partir da sua experiência com a língua no mundo; por isso, diz-se que as estruturas semânticas são estruturas conceituais corporificadas (cf. FAUCONNIER e TURNER, 2003).

É frequente em SLC a posição de que são raras as situações em que um item é associado a apenas um sentido e, por essa razão, Langacker (cf. apresenta Taylor, 2002, p. 461) propõe que uma unidade linguística – “unidade simbólica”, nos termos do autor - não seja tratada como um composto que envolve uma relação de um-para-um, mas como a associação de uma rede de representações do conteúdo semântico a uma rede de representações da forma linguística (materialização do sentido). Taylor (2002) faz tal consideração em um capítulo dedicado ao tratamento de “categorias linguísticas complexas” e questões em torno do tema polissemia.

Essa visão panorâmica que apresentamos aqui sobre os objetos de estudo da SLC e sobre o modo com os princípios gerais da LC são instanciados no estudo do significado lexical foi importante para entendermos agora com mais completude os motivos pelos quais é a SLC o paradigma teórico que mais respostas tem a dar para um moderno estudo da polissemia. Para encerrar esta seção, retomaremos quatro das questões apresentadas em 3.1 por serem centrais ao tratamento da polissemia e trazerem respostas satisfatórias no paradigma da SLC:

(i) Qual é a natureza da representação dos sentidos? Tendo em vista que a categorização linguística é um fenômeno cognitivo, assim como outras capacidades cognitivas humanas, é importante estudar a relação entre essas capacidades. A partir daí, entende- se que informação linguística, informação enciclopédica e informação conceitual são estruturas integradas e interdependentes, de maneira que uma unidade linguística simboliza o conteúdo representado em estruturas conceituais a partir da interação do falante com o mundo. Desse modo, a língua não refere diretamente o “mundo real”, mas refere o que está representado no sistema conceitual humano, que é composto por estruturas conceituais que indiretamente refletem e interpretam o mundo por intermédio da experiência e da percepção humana (TYLER e EVANS, 2003).

(ii) Os sentidos são entidades estáveis e fixas? Acreditar que o sentido emerge do uso pressupõe negar que os sentidos sejam entidades estáveis e fixas. O conteúdo associado aos itens lexicais é, de acordo com a SLC, construído de maneira corporificada, sendo que é a experiência com a língua que o torna simultaneamente estável (estabelecido) e flexível, e é a frequência de uso que cria as regiões de maior estabilidade no conteúdo semântico acessível a um item. Questões como de que maneira tratar teoricamente essa relativa instabilidade dos sentidos, qual é o nível de generalidade de identificação e descrição dos sentidos, entre outras, são objetos de estudo da SLC e serão abordadas nas seções seguintes.

(iii) Como os sentidos podem ser enumerados? Vimos que, no contexto da SLC, foi abandonada a visão de léxico como dicionário e apresentada uma visão de léxico estruturado de maneira flexível e psicologicamente coerente. Além disso, vimos sugeridas estruturas de rede para a representação do conteúdo semântico associado a um item lexical.

(iv) Que tipo de unidade pode apresentar polissemia? Ao se adotar uma visão não- modular de mente, abandona-se a separação estrita entre léxico, sintaxe, morfologia, texto, etc. Por consequência, todas as unidades linguísticas são entendidas da mesma maneira, associadas a categorias cognitivas. Por essa razão, a polissemia não é um fenômeno restrito aos itens lexicais (palavras), mas que faz parte de unidades fonológicas, morfológicas, sintáticas, de expressões fixas, de unidades de entonação, etc.

Para finalizar, acrescentamos ainda que os sentidos ou os significados lexicais não são, em SLC, unidades atômicas. Podemos falar de sentidos plenos, subsentidos, facetas de sentido e, ainda, de microssentido (cf. CRUSE, 1995; 2000a; CROFT e CRUSE, 2004). Esses termos voltarão a ser tratados mais adiante, pois interferem no tratamento da polissemia. Agora, é importante que fique claro que, quando empregamos os termos sentido, significado lexical ou, de maneira mais neutra, leitura, não estamos pretendendo diferenciar sentidos plenos de subsentidos; quando essa for a intenção, usaremos os próprios termos sentido pleno, subsentido, faceta de sentido, microssentido – todos eles seguindo os mesmos princípios de fundo descritos nesta seção.