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3 A ETNOPESQUISA CRÍTICA COMO BASE DAS ITINERÂNCIAS

3.1 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA ETNOMETODOLOGIA

A Etnometodologia é a teoria do social que trabalha com e valoriza a voz do sujeito pesquisado. Isto implica que o etnopesquisador compreende e interpreta as situações do fenômeno em questão a partir da compreensão e interpretação desse mesmo fenômeno pelos agentes sociais que dele fazem parte.

Lidar com a compreensão do outro é valorizar a subjetividade do ser, é atentar para as vozes do sujeito construídas a partir de suas vivências e interpretações, que são sempre demarcadas a partir dos contextos. A subjetividade é, assim, a forma como o ser se percebe, compreende e interpreta o mundo, o seu ser-e-estar-no-mundo. É, pois, um processo de autoconhecimento.

Na Fenomenologia de Husserl, tudo é subjetividade e intersubjetividade. Referencia que a raiz do conhecimento é a subjetividade, isto é, a consciência é a origem de todo o conhecimento. Nesse sentido, propõe a redução fenomenológica, que é a suspensão do mundo natural: cotidiano, juízos de valor, preconceitos, de forma momentânea, para se chegar à consciência, que, com a redução, é um receptáculo vazio que vai recebendo novas informações, construindo novos conhecimentos livres das influências anteriores, porém sempre em interação com outra subjetividade. Desta forma, o ser humano apresenta consciência que se projeta para a subjetividade e, quando se projeta, percebe a presença do outro: o mundo se constrói na intersubjetividade.

No que se refere a essa interação simbólica, é a vida cotidiana que se mostra como o grande lugar/contexto em que os agentes sociais desenvolverão suas ações e, consequentemente, interações, porque o outro também estará presente neste cenário. Nesse contexto, os conhecimentos (compreensão e interpretação) são construídos intersubjetivamente. Isto quer dizer que os sujeitos perceberão a realidade, a partir de seu olhar subjetivo, na troca com outros olhares subjetivos, e darão um significado para ela, ou

32 A hermenêutica é a arte de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos textos etc. Segundo Mühl (2004, p.

38), “a hermenêutica, em sentido lato, busca compreender as leis gerais pelas quais a compreensão humana opera. Trata-se de uma ciência ou de uma arte que procura entender e interpretar os textos, com base nos contextos e nas circunstâncias de sua produção e recepção. A preocupação hermenêutica é buscar descobrir o sentido que os autores deram a suas obras, os conteúdos que quiseram transmitir, os destinatários que tinham em vista por ocasião da produção do texto e o contexto em que produziram a obra. A hermenêutica tem como desafio maior explicitar como os objetos se dão e quais são as condições de possibilidade para se chegar a compreender a verdade dos fatos na recepção da obra”.

seja, externarão, através de ações, falas, gestos, posturas e posicionamentos, suas formas de sentir e ver o mundo que os cerca. Há, portanto, uma afirmação de que não se nega o mundo cultural, evidenciando que é impossível compreender as ações humanas sem ligá-las à sua cultura. Desta forma, o mundo é sempre construído por um conjunto de sentidos e significações pela interação; é, pois, segundo as ideias fenomenológicas, impossível se construir conhecimentos fora das questões existenciais. É por isso que:

[...] como uma prática de pesquisa que se quer rigorosa, a pesquisa fenomenológica, ao ver que o fenômeno se ilumina dentro de si, reconhece que o pesquisador está ligado ao sujeito pesquisado por uma relação dialética entre seu horizonte conceitual e a experiência do sujeito, na qual, mediante a intersubjetividade, a coexistência, estabelece seus resultados (MACEDO, 2006, p. 19 – Grifo do autor).

Assim, o pesquisado deixa de ser visto apenas pelo olhar daquele que o observa, descreve, compreende, interpreta e explica, mas, também, e principalmente, passa a ser visto pelas suas descrições, compreensões, interpretações e explicações, que são construídas a partir de seus contextos reais, de sua vida cotidiana.

No tocante a essa cotidianidade, entrelaçam-se os processos de relações entre os sujeitos, tanto de pessoas comuns (simples, iletradas) quanto o de pessoas cultas, bem como a inter-relação entre essas pessoas. Esse é o mundo social que Alfred Schütz se propõe a estudar, porque, para ele, “o estudo dos procedimentos interpretativos [deve se dar] a partir das interações entre as pessoas em seu cotidiano” (MACEDO, 2006, p. 21). Assim, segundo Schütz, a realidade social é:

A soma total dos objetos e dos acontecimentos do mundo cultural e social, vivido pelo pensamento do senso comum de homens que vivem juntos numerosas relações de interação. [...] Desde o princípio, nós, os atores no cenário social, vivemos o mundo como um mundo ao mesmo tempo de cultura e natureza, não como um mundo privado, mas intersubjetivo, ou seja, que nos é comum, que nos é dado ou que é potencialmente acessível a cada um de nós. E isso implica a intercomunicação e a linguagem (SCHÜTZ, apud COULON, 1995, p. 12).

Os pensamentos dos sujeitos são, dessa maneira, compartilhados através da linguagem, mesmo a do senso comum, para, na relação dialética e dialógica entre a questão conceitual e a experiência do sujeito, serem construídos novos conhecimentos a partir da compreensão e interpretação do cotidiano pelos diversos agentes culturais. Importante ressaltar que ninguém percebe a realidade da mesma forma e, nesse caso, as percepções subjetivas são

compartilhadas através da comunicação, da linguagem, de modo a serem compreendidas, interpretadas, explicadas por outros agentes a partir das vivências de interação.

Desta maneira, Garfinkel, partindo da base teórica de Parsons33, mas promovendo modificações nela, e com base nas referências teórico-conceituais trazidas por Husserl e Schütz, diz que o sujeito não é “um idiota cultural”. O sujeito pensa, reflete, compreende, interpreta. É assim que discorda da ação do sujeito motivada pela norma, referenciando que:

Os símbolos utilizados para nossa comunicação não se encontram estabelecidos em conjuntos de regras e normas de comunicação preexistentes, mas são construídos e produzidos por processos de interpretação. [...] passagem de um paradigma normativo (parsoniano) para um interpretativo (etnometodológico)” (GUESSER, 2003, p. 152).

Nessa perspectiva, de um paradigma interpretativo, o contexto34, a definição da situação35, o lugar36 são imprescindíveis para que o pesquisador faça uso de um dos princípios da fenomenologia que é a valorização do ponto de vista do sujeito pesquisado, em sua subjetividade, para poder, a partir desse posicionamento, do contexto e da definição da situação, realizar, também, suas compreensões, interpretações, explicações para o fenômeno em estudo.

Nesta tarefa de produção de conhecimento, os etnopesquisadores necessitam, como ponto fundamental, da descrição das situações pelos agentes sociais, inclusive realizadas por eles próprios, para melhor compreender e interpretar os contextos, que não se fazem engessados, imutáveis, mas, ao contrário, são mutáveis, relativos, provisórios. É desta forma que a Etnopesquisa, preocupada em produzir conhecimentos a partir da cotidianidade dos sujeitos, valoriza os processos que constituem o ser sujeito em seu contexto/cultura, compreendendo que este é fundamental para definir qualquer ação humana.

33 Segundo Guesser (2003, p. 151), “Talcot Parsons exerceu forte influência sobre o pensamento de Garfinkel.

[...] Para Parsons, o ator submete-se às normas sociais, que por sua vez determinam as ações”.

34 Macedo (2006, p. 33) explicita que o contexto é “concebido como o conjunto de todos os elementos que

formam uma cultura, tecido relacional e conjuntamente”.

35

Referencia Macedo (id., p. 65) que “o indivíduo age em função do ambiente que ele percebe e das situações que ele enfrenta. Suas atitudes e percepções preliminares informam sobre o ambiente, permitindo-lhe interpretá- lo e compreendê-lo. Portanto, a ordem social e a história pessoal fazem as mediações necessárias para que o indivíduo/ator defina situações”.

36

“No lugar, encontramos as mesmas determinações da totalidade, sem com isso se eliminar as particularidades. Cada sociedade produz seu espaço, determina os ritmos, os modos de apropriação. O lugar, portanto, guarda o âmbito prático-sensível, real e concreto” (id., ib., p. 35-36).