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Apesar de parecer recente, Psicologia e Direito apresentam um histórico de relações estreitas de cooperação, de quase cento e quarenta anos. Segundo alguns pesquisadores, a aproximação entre a Psicologia e judiciário, bem como a sua convocação para atender às demandas do mundo jurídico, podem ser entendidas a partir do estabelecimento da Psicologia como ciência.

De acordo com Machado (1998), onde o poder é exercido temos concomitantemente, um lugar de formação do saber. Dessa forma, podemos considerar o campo jurídico, como um local onde os efeitos do exercício do poder são visíveis e onde os saberes são constituídos.

Nesse sentido, Foucault (1995) demonstra que o poder é exercido nas relações com os outros, consistindo esse exercício na “condução de condutas” e no ordenamento de probabilidades. Dessa forma, o exercício do poder é um conjunto de ações sobre ações possíveis, onde os comportamentos dos sujeitos serão inscritos num determinado campo de possibilidades, que

indicam o quanto estes podem agir ou o quanto são suscetíveis de agir, caracterizando o que ele chamou de governo.

Ainda segundo Foucault (1995), o exercício de poder se transforma, se elabora, se organiza e dota-se de procedimentos mais ou menos ajustados. Esses procedimentos seriam o que ele nomeou de estratégias de poder, ou seja, os meios implementados para fazer com que os dispositivos de poder funcionem ou se mantenham.

No caso do judiciário, as estratégias para que ele funcione e se mantenha foi por meio da incorporação de saberes que possibilitam sua instrumentalização, servindo de suporte para a busca da verdade e consequente prolação da sentença, como a Medicina, a Psiquiatria e a Psicologia.

Assim, a Psicologia com suas técnicas de observação, classificação, escuta e interpretação é convocada como sendo mais um instrumento de produção de verdades, constituindo-se como mais um ponto de exercício de poder e campo de produção de saber no judiciário (FOUCAULT, 2002).

Brito (2012a) aponta que a convocação da Psicologia pelo campo jurídico possibilitou que ela se estabelecesse como ciência no final do século XIX. Segundo a autora, isso foi possível a partir de solicitações de pesquisas que tinham o intuito de aferir fidedignidade de testemunhos que eram relatados à justiça. Essa demanda de aferição foi a responsável para que os laboratórios de Psicologia Experimental, como o fundado por Wundt em Leipzig, na Alemanha, fossem organizados e conduzissem estudos sobre memória, sensação e percepção, dentre outros temas pertinentes ao estudo do testemunho (BRITO, 1994). É nesse sentido que podemos falar em uma Psicologia do Testemunho, que tem como objetivo, verificar a fidedignidade de um depoimento por meio de estudos dos processos psicológicos, baseados na percepção e na memória de um sujeito arrolado como testemunha em um processo jurídico, isto é, verificar se os “... processos internos propiciam ou dificultam a veracidade do relato” (BRITO,1993 apud OLIVEIRA; VICENTIN, 2012).

Os laboratórios de Psicologia Experimental como o de Wundt buscavam dar um ar de cientificidade para a Psicologia por meio dos parâmetros estabelecidos pelo Positivismo (Brito, 2012a). Parâmetros, como a neutralidade científica, reprodução dos dados experimentais em laboratório e de que o conhecimento a ser produzido deveria ser cumulativo, ajudaram a Psicologia a trilhar um caminho consolidado dentro dos marcos de

sua especificidade, afastando-a das áreas que até então mantinha relações estreitas como a Filosofia, a Medicina e a Fisiologia (BOCK, 1990; CARROY; PLAS, 2008; SOARES, 2010).

Para pesquisadores como Silva (2005), a emergência da Psicologia e das demais ciências humanas com status de cientificidade foi proporcionada pelo Fenômeno das Multidões10 que sacudiu a Europa no decorrer do século XIX. Para a autora, a emergência de novos corpos de conhecimento não podem estar dissociadas de características presentes dentro da própria configuração social, isto é, dos movimentos e arranjos que conformam uma sociedade.

Nesse sentido, o fenômeno se torna foco de investigação devido a seu potencial de romper os equilíbrios sociais estabelecidos pela ordem política e econômica. É no sentido de manter uma coesão social e preencher o hiato entre economia e política, que todo um sistema de regulações é organizado. Segundo Foucault (2002), o rearranjo da distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola é que fomentou os novos controles sociais.

Os sistemas de controles sociais vão agir sobre os indivíduos de forma a promover sua adaptação social através de todo um conjunto de técnicas que visam normatizá-los, para que se adaptem às normas e valores definidos pela sociedade. Essa adaptação é mediada por instituições como a escola e a fábrica, por exemplo. Nesse aspecto, a Psicologia, “dotada” de cientificidade, desenvolverá métodos de adaptação de crianças à escola e de pessoas ao mundo do trabalho por meio de seleção e orientação profissional, indicando que os princípios que regem essa nova ciência produziriam conhecimentos baseados na normatividade (SILVA, 2005). Os conhecimentos produzidos baseados nas normas, nas médias e padrões vão caracterizar o que Foucault (2002, p. 86) nomeou de Sociedade Disciplinar ou Idade de Controle Social e vão fortalecer uma série de poderes laterais como as escolas, as fábricas, os hospitais, os asilos e as prisões.

O aparecimento de uma psicologia científica e o estabelecimento de suas práticas com fortes tendências adaptacionistas nessa nova configuração social, na qual o controle dos indivíduos se exerce sobre a virtualidade de seus comportamentos e a vigilância é mais interessante que a punição, propiciarão que ciências como a criminologia desenvolvam teorias que visem comprovar a existência de um criminoso nato.

10De acordo com Chiara (2011), o Fenômeno das Multidões ou a Primavera dos Povos ocorreu em 1848 e se

espalhou por parte do continente europeu. Esse fenômeno foi desencadeado, entre outros motivos, por uma crise industrial que gerou escassez de empregos, por grande descontentamento com os regimes políticos que estavam no controle dos países e também por uma quebra na produção de alimentos.

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