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1. APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS E ASPECTOS METODOLÓGICOS

1.3. Aspectos metodológicos

São vários os assuntos de ordem metodológica relativos ao desenvolvimento da presente tese que devem ser abordados neste momento. Eles serão aqui divididos entre questões relativas ao uso do marco teórico descrito nos itens anteriores e questões sobre a delimitação do escopo desta tese.

No que tange ao uso do marco teórico acima apresentado, cabe, em primeiro lugar, recordar o já mencionado na introdução desta tese sobre a obra de Ha-Joon Chang, ou seja, a necessidade de se relacionar as normas sobre investimento estrangeiro ao contexto no qual são criadas. Essa tarefa multidisciplinar é, em parte, realizada nos já citados “Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective” e “Foreign Investment Regulation in Historical Perspective: Lessons for the Proposed WTO Agreement on Investment”, onde o autor distingue entre as normas criadas na fase de “catch up” e na de “pulling ahead” dos Estados Unidos. Tal contextualização realizada pelo autor pode, no entanto, ser aperfeiçoada em, pelo menos, dois aspectos.

De um lado, Chang não considerou a existência de uma fase de transição entre o protecionismo idealizado e implementado por defensores do “Sistema Americano” e o

Opening America 's Market: US. Foreign Trade Policy Since 1776. Chapel Hill: The University of North

Carolina Press, 1995. No entanto, ambas não se concentram na análise das regras norte-americanas sobre investimentos estrangeiros.

liberalismo que os EUA aplicaram nas suas relações econômicas internacionais após a Segunda Guerra Mundial. Como se descreverá no próximo capítulo, a transformação do conteúdo das normas paulatinamente criadas sobre investimento estrangeiro não ocorreu automaticamente: antes de os Estados Unidos defenderem a adoção multilateral do tratamento nacional para tais temas, o país promoveu a criação, para esses assuntos, de regras que previam o princípio da “reciprocidade” entre os países signatários, assim como promoveu, no final do século XIX, tentativas de liberalização comercial com outros países das Américas, todos menos desenvolvidos e industrializados que os EUA117.

De outro lado, o autor não se concentrou, nas duas obras, na análise do fato de que as características econômicas do sistema internacional da época do “catch up” norte- americano eram diferentes das do período do “pulling ahead” desse país. Com efeito, como salientado por Robert Gilpin no já citado “U.S. Power and Multinational Enterprises: The Political Economy of Foreign Direct Investment”, a forma de expansão econômica internacional do hegemon inglês, no que tange aos investimentos estrangeiros, havia sido a aquisição de participações minoritárias (o investimento de portfólio) de caráter, em geral, especulativo; no caso dos EUA, tal expansão ocorreu, principalmente, por meio do IDE, ou seja, pela propriedade de ativos fixos e pela presença mais estável e duradoura de altos funcionários de empresas multinacionais no país de destino dos investimentos, características que costumam acarretar maior envolvimento diplomático do Estado de origem daqueles investimentos para a proteção destes.

Importante conseqüência daí decorrente é o fato de que o governo inglês apresentou pouca oposição ao fato de que os EUA impuseram controles e limites ao investimento estrangeiro durante grande parte do seu período de “catch up”. É isso o que se depreende da seguinte passagem de “The Great Transformation”, de Karl Polanyi:

“Canning ridiculed the notion of intervention on behalf of gambling investors and overseas speculators. The separation of politics and economics now spread into international affairs. While Queen Elizabeth had been loath to distinguish too strictly between her private income and privateer‟s income, Gladstone would have branded it a calumny that British

117 Um exemplo disso foi a I Conferência Internacional Americana, convocada por Washington e realizada entre 1889 e 1890. Entre os temas da reunião, que muitos países das Américas – como o Brasil – viam com desconfiança, estavam as propostas de criação de uma união aduaneira no continente e a unificação da legislação comercial. Segundo Amado Cervo, “As intenções do governo norte-americano visavam estabelecer, pela via do pan-americanismo, uma reserva de domínio continental, a exemplo de como procediam os colonialistas europeus em suas áreas de expansão. Com isso poderia manter o protecionismo diante das outras potências capitalistas e o liberalismo regional, em hábil manobra nacionalista”. Vide BUENO, Clodoaldo e CERVO, Amado. História da

foreign policy was being put at the service of foreign investors. To allow

state power and trading interests to fuse was not a nineteenth century idea;

on the contrary, early Victorian statesmen had proclaimed the independence of politics and economics as a maxim of international behavior. Only in narrowly defined cases were diplomatic representatives supposed to be active on behalf of the private interests of their nationals, and the surreptitious extension of these occasions was publicly denied, and if proven, reprimanded accordingly”118 (grifou-se).

Outra relevante conseqüência relacionada a esse ponto não levada em consideração por Chang é a de que os Estados Unidos se beneficiaram, em termos comparativos, de condições mais favoráveis para regular o investimento estrangeiro ao longo daquele período do que as que se apresentam hoje a países em desenvolvimento. De fato, como será evidenciado no quarto capítulo desta tese, as normas criadas pelos países ricos para as relações econômicas internacionais têm levado a uma clara diminuição do “development space” que países pobres poderiam utilizar na regulação de temas como investimentos estrangeiros, compras governamentais e propriedade intelectual119.

Isso não significa que se adotará aqui o entendimento de Ha-Joon Chang no sentido de que países ricos aplicaram uma estratégia deliberada e consciente para impedir, por meio do “chute da escada” o desenvolvimento de países pobres. Não há como se comprovar a intencionalidade e a premeditação na implementação dessa estratégia sem a realização de detalhada e extensa pesquisa em arquivos históricos que contenham documentos, no caso desta tese, a respeito das motivações particulares dos legisladores norte-americanos quando da criação de normas sobre controle de investimentos estrangeiros120. Além de não ter se

118 POLANYI, 1944/1957, p. 213. Como se verá no próximo capítulo, tal atitude dos governos com relação a investimentos no exterior começou a mudar com a depressão econômica iniciada em 1873.

119 Vide, nesse sentido, WADE, Robert H. What Strategies are Viable for Developing Countries Today? The World Trade Organization and the Shrinking of „Development Space‟. In: REVIEW OF INTERNATIONAL POLITICAL ECONOMY, vol. 10, n. 4, nov., 2003, pp. 621-644.

120 Aliás, muito dificilmente se encontraria um plano, e muito menos documentos, nesse sentido. Isso porque, segundo Andrew Bacevich, “…the defining characteristic of U.S. foreign policy at its most successful has not been idealism, but pragmatism, frequently laced with pragmatism‟s first cousin, opportunism”. Esse autor ressalta, então, que nunca houve um plano prévio sobre como alcançar a supremacia econômica: “What self-congratulatory textbooks once referred to as America‟s „rise to power‟ did not unfold according to some preconceived strategy for global preeminence. There was never a secret blueprint or master plan”. Vide BACEVICH, Andrew. The Limits of Power: the End of American Exceptionalism. New York: Metropolitan Books, 2008, p. 22.

proposto a cumprir essa tarefa, o próprio Chang relativizou aquele entendimento em obra posterior a “Kicking Away the Ladder”121.

Passando-se agora à delimitação do objeto da presente tese, deve-se ressaltar que não se pretende aqui realizar uma extensa pesquisa de arquivos nos moldes acima mencionados. Busca-se, neste trabalho, tão-somente contestar a conhecida visão de que a regulação do investimento estrangeiro pelos EUA ocorreu unicamente com base no liberalismo econômico, apresentando-se aqui normas federais sobre o tema e relacionando-as à história econômica e das relações internacionais dos Estados Unidos122.

Assim, antes de iniciar, no próximo capítulo, a análise da evolução da regulação do investimento estrangeiro nos Estados Unidos, cabe ressaltar que pelo menos quatro conseqüências decorrem da limitação, acima mencionada, do objeto desta pesquisa. A primeira é a de que não se entrará na permanente discussão de teoria do desenvolvimento econômico sobre qual seriam as normas (ou, no jargão dessa área, as “instituições”) “corretas” a serem aplicadas hoje em dia a investimentos estrangeiros; da mesma forma, também não se analisará se as normas criadas pelos EUA ao longo de sua história foram “corretas” ou não123.

121 Em obra recente, Chang continua a condenar países ricos pela aplicação consciente dessa estratégia, declarando que “Today, there are certainly some people in the rich countries who preach free market and free trade to the poor countries in order to capture larger shares of the latter‟s markets and to pre-empt the emergence of possible competitors”. Nessa mesma obra, entretanto, ele também passa a se referir a países ricos como “maus samaritanos”, que, apesar de possuírem condições e experiência para ajudar países pobres, acabam por dificultar-lhes o desenvolvimento ao atuar para que estes adotem políticas que seriam contrárias aos seus interesses e que não foram implementadas pelos países ricos durante sua fase de crescimento. Mais importante para os fins desta tese, ele admitiu a possibilidade de que os “maus samaritanos” venham a agir dessa forma em razão do desconhecimento da história dos seus próprios países. É isso o que se depreende do trecho a seguir: “The history of capitalism has been so totally re-written that many people in the rich world do not perceive the historical double standards involved in recommending free trade and free market to developing countries. (…) The result is that many Bad Samaritans are recommending free-trade, free-market policies to the poor countries in the honest but mistaken belief that those are the routes their own countries took in the past to become rich. But they are in fact making the lives of those whom they are trying to help more difficult. Sometimes these Bad Samaritans may be more than a problem than those knowingly engaged in „kicking away the ladder‟, because self-righteousness is often more stubborn than self-interest”. Vide CHANG, 2008, p. 16-17.

122 Para contextualizar essas normas no âmbito da história econômica norte-americana, principalmente no que tange às fases de “catch up” (1789-1913) e de transição (1913-1945) desse país, recorrer-se-á, nesta tese, às obras de Louis M. Hacker “American Capitalism: its Promise and Accomplishment” e “Major Documents in American Economic History”, publicados, respectivamente, em 1957 e 1961 pela editora Van Nostrand, de Nova Iorque. No que tange à história das relações internacionais dos EUA, far-se-á uso da obra de vários autores, como a dos já citados Walter Russell Mead e Walter McDougall.

123 As experiências nacionais são tão diversas que não há consenso acadêmico sobre quais normas levam ao desenvolvimento econômico. Vide CHANG, Ha-Joon e EVANS, Peter. The Role of Institutions in Economic

Change. Artigo apresentado na Conferência “The Other Canon and Economic Development,” Oslo, Norway, August 14-15th, 2000. Disponível em http://www.othercanon.org/uploads/CE4- The%20role%20of%20insitutions%20in%20economic%20change.doc#32;role of institutions in economic change.doc. Acesso em 07 mar. 2009. Não se pretende, enfim, entrar aqui na discussão teórica sobre desenvolvimento econômico. O enfoque aqui será sobre a história jurídica, econômica e das relações internacionais relacionada ao tema desta tese.

Isso porque, antes de se especular sobre quais “instituições” são boas ou más para o desenvolvimento econômico, cabe pesquisar quais foram as efetivamente criadas para regular o investimento estrangeiro nos Estados Unidos.

A segunda relaciona-se ao fato de que normas não são criadas no vácuo. Como salienta a bibliografia acerca do clássico conceito de “regimes internacionais”124, não

basta estudar o texto de uma regra, deve-se entender os princípios que inspiraram sua criação. Nesse sentido, ressalta-se, no próximo capítulo, que algumas leis norte-americanas sobre investimento estrangeiro foram instituídas com base no mesmo nacionalismo econômico que justificou a criação de altos impostos de importação que protegeram a nascente indústria norte-americana da concorrência comercial estrangeira nas mencionadas fase de “catch up” (1789-1913) e de transição (1913-1945) desse país. Em razão disso e do fato de que, durante esses longos períodos, o IDE ainda não possuía a importância de hoje, nem havia suplantado as exportações e importações como a principal forma de oferecimento de mercadorias estrangeiras, serão aqui mencionadas, subsidiariamente, normas sobre comércio internacional para demonstrar que o princípio que vigorou naquela época de “catch up”, foi, principalmente, o do nacionalismo econômico. Já na fase norte-americana de “pullling ahead”, os investimentos estrangeiros diretos já haviam aumentado sua participação na economia internacional, de maneira que não será necessária a freqüente menção a regras sobre comércio exterior para se comprovar o liberalismo econômico do período.

A terceira conseqüência da decisão de se restringir esta tese à história das normas federais sobre investimento estrangeiro nos Estados Unidos e de se estudar a evolução delas em conjunto com a história das relações internacionais desse país é a de que não se buscará aqui documentar as atividades econômicas e políticas nem de empresas norte- americanas no exterior, nem de empresasestrangeiras nos EUA. De um lado, essa tarefa já foi realizada, no que tange às atividades econômicas dessas empresas, por vários historiadores, entre os quais deve se destacar Mira Wilkins, da Universidade da Flórida, cuja obra será muito utilizada neste trabalho – ressalte-se, no entanto, que ela não se deteve longamente

124 Como se depreende da clássica definição de “regimes internacionais” formulada por Stephen Krasner, esse conceito confere importância, na explicação da implementação de políticas públicas (no caso, na área internacional) não só às regras propriamente ditas, mas também aos princípios que as fundamentam e aos processos de tomada de decisão que as criam: “Regimes can be defined as sets of implicit or explicit principles, norms, rules and decision-making procedures around which actor‟s expectations converge in a given area of international relations. Principles are beliefs of fact, causation, and rectitude. Norms are standards of behavior defined in terms of rights and obligations. Rules are specific proscriptions or prescriptions for action. Decision- making procedures are prevailing practices for making and implementing collective choice”. Vide KRASNER, Stephen. Structural causes and regime consequences: regimes as intervening variables. In: INTERNATIONAL ORGANIZATION, Cambridge, v. 36, n. 2, p. 185-205, spring 1982, p. 186.

sobre as normas relativas ao investimento estrangeiro, nem as estudou em conjunto com a política externa de cada época. De outro, entende-se que, para os fins acima mencionados, não é necessário detalhar como cada grupo de pressão articulou-se para aprovar normas sobre investimento estrangeiro que lhes favorecessem125. O próprio texto da norma será suficiente para se estabelecer a tendência dela em prol do nacionalismo ou do liberalismo econômico.

Em quarto e último lugar, deve-se ressaltar que, nesta tese, não se pretende nem comparar a evolução das normas norte-americanas e brasileiras sobre esse tema, nem se sugerir que um país deva (ou possa) desenvolver-se hoje com os instrumentos que os EUA utilizaram ao longo do século XIX. De um lado, não faria sentido traçar hipóteses sobre como teria sido o desenvolvimento do Brasil se o país tivesse adotado normas sobre investimento estrangeiro similares às dos Estados Unidos. A ex-colônia – fundamentalmente de exploração – na América do Sul não possuía, em geral, as condições que tornaram possível, na ex-colônia de povoamento na América do Norte, a criação de normas nacionalistas já no início do seu período de “catch-up”126. De outro, o mundo está hoje muito mais integrado economicamente

do que estava no século XIX. Com isso, a perda de competitividade decorrente, por exemplo, de reservas de mercado a empresas nacionais tecnologicamente atrasadas é, atualmente, muito mais custosa para o conjunto da sociedade do que foi para os EUA em seu período de “catch up”. Hoje a principal questão passa por se regular a atividade das subsidiárias de empresas multinacionais de maneira que estas continuem lucrativas, ao mesmo tempo em que contribuam da melhor forma possível para o fortalecimento do país em que atuam.

125 Em artigo de edição especial da revista International Organization, David Lake – professor que se especializou em temas da política de comércio internacional norte-americana, o que inclui a questão da regulação dos investimentos estrangeiros – explica como os grupos de pressão domésticos são importantes, mas não os principais agentes, na definição das normas sobre comércio internacional. Tal papel pertence ao Estado, que mantém certo grau de autonomia nessa seara. Vide LAKE, David A. The State and American Trade Strategy in the Pre-Hegemonic Era. In: INTERNATIONAL ORGANIZATION, vol. 4, n. 1, winter, 1988, pp. 33-58.

126 Ricardo Bielschowsky resume entendimento de Celso Furtado nesse sentido. Vide BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento (1930-1964). 4. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, pp.167-168. É interessante, entretanto, mencionar que, a partir de 1844, quando já havia algumas condições técnicas para o desenvolvimento da indústria brasileira, empreendedores como o Barão de Mauá não receberam apoio governamental para tanto – ao contrário, foram até prejudicados por um governo que desconfiava de indústrias. Para uma explicação sobre a criação e desperdício da janela de oportunidade – descrita como o “Projeto de 1844” – para a industrialização durante o Segundo Império, vide CERVO e BUENO, 2002. Para um triste relato das ações do Segundo Império que levaram à derrota do esforço industrialista da época, vide CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

2. A REGULAÇÃO DOS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS SOB O