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CAPÍTULO 2 – O debate sobre a democratização do acesso à educação superior

2.1 Aspectos relativos à democratização do acesso à educação superior

Na sociedade do conhecimento e da globalização, a educação superior tornou-se um elemento primordial para o fortalecimento e desenvolvimento de um país, pois é responsável por produzir conhecimento e tecnologia de alto nível e formar profissionais qualificados para todos os setores da sociedade.

Dentro da diversidade do sistema de educação superior, a universidade se destaca pelo seu papel na preservação da identidade e dignidade nacionais, pela valorização da cultura, por ter o melhor ensino disponível na graduação e ser quase exclusivamente responsável pela pesquisa (ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, 2004).

Esses fatores, aliados ao crescimento da demanda por educação superior nas últimas décadas e aos problemas de acesso no nível superior, explicitados mais adiante, explicam a necessidade de democratizar a universidade pública no Brasil.

A democratização do acesso à educação superior pode ser traduzida, principalmente, em dois conceitos: simplesmente como sinônimo de ampliação da oferta ou a expansão vinculada a mecanismos de seleção e diversificação do ingresso, entendimento que tem diversos desdobramentos.

O primeiro conceito tem como base o princípio liberal da universalidade, pelo qual todos os níveis educacionais, inclusive o superior, estariam disponíveis a todos, independentemente de origem sócio-econômica, diferenças de status ou de nascimento, apenas condicionado a questões de mérito individual. Essa idéia ganhou relevância com o aumento da demanda por vagas nas universidades do país e passou a ser discutida mais intensamente a partir da década de 1960, quando o tema da democratização assumiu

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diferentes feições nos trabalhos. “Fala-se em democratização do ensino, democratização de oportunidades, democratização de vagas, democratização de carreiras” (FRANCO, 1985, p. 20).

Considerando essa perspectiva, a democratização do acesso passa necessariamente pela expansão de vagas, independente de ser no setor público ou privado. Todavia, encontramos posicionamentos a favor do incremento de vagas exclusivamente nas instituições públicas e outros essencialmente nos estabelecimentos privados.

A justificativa para o crescimento das IES públicas se baseia na compreensão da educação como atividade social, gratuita e de responsabilidade do Estado; na melhor qualidade do ensino ofertado; no desenvolvimento do país por meio da realização de pesquisas e projetos de extensão e na dificuldade da população de baixa renda em custear o ensino privado.

A esse respeito Ristoff (2008) argumenta que, nos últimos dois anos, o país ofertou vagas em número superior ao de concluintes do ensino médio, todavia, 42% ficaram ociosas no setor privado. Logo, embora esse setor represente 90% das instituições, deixa quase metade de suas vagas ociosas. Além disso, seus altos índices de inadimplência e evasão ameaçam até mesmo os cursos de alta demanda.

A expansão pela via privada, apoiada pelos organismos multilaterais, acredita que o governo deve concentrar investimentos na educação básica, pois abrange uma parcela maior da população e propicia mais retorno financeiro. Outro argumento para o crescimento de vagas privadas decorre do elevado custo das instituições de educação superior públicas e da melhor capacidade da iniciativa privada de gerir recursos.

O segundo conceito, por sua vez, defende que democratização do acesso é mais complexa e leva em consideração as desigualdades sociais, econômicas e raciais da sociedade. Essa idéia envolve, além da expansão da oferta de vagas, a utilização de mecanismos de inclusão de minorias sociais na educação superior, de forma que não há como falar em mérito acadêmico, na forma como é tradicionalmente entendido34.

Para Moehlecke (2004a) o mérito deve ser medido pela capacidade dos estudantes em condições adversas superarem as dificuldades encontradas por meio do esforço realizado,

34 O Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Dr. Aloísio Teixeira, em entrevista ao Jornal Virtual da UFRJ (2004), afirmou: “[...] não há possibilidade de você fazer uma comparação de mérito entre um estudante que percorreu os melhores colégios da Zona Sul, foi duas vezes à Europa e três aos EUA, com o estudante que veio da rede pública, não teve professor de física, química, matemática e acesso ao aparato cultural. A ele, por sua própria origem, foi negada a boa educação, e o vestibular é um sistema que reproduz isso. Então eu digo que, simultaneamente ao processo de expansão, devemos criar uma forma de acesso diferente”.

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mesmo que o resultado não seja o mesmo de estudantes em condições mais favoráveis. O mérito seria a medida justa do empenho de cada um.

Esse segundo conceito de democratização tem algumas variações na literatura. Alguns estudiosos acreditam que os estudantes de minorias étnicas ou sociais devem ser incluídos na educação superior na mesma proporção que existem na sociedade. Outros pesquisadores focalizam a inclusão igualitária nos cursos de maior prestígio social (GOUVEIA, 1968; FORACCHI, 1965; CASTRO, 1968; CASTRO; RIBEIRO, 1979), visto que existe uma hierarquização social e econômica das carreiras dentro das universidades

Em outra concepção, o nível superior apenas reflete a desigualdade existente na educação básica. Portanto, a democracia no ingresso aos cursos superiores depende do desenvolvimento dos níveis de ensino antecedentes, principalmente do ensino médio. Conforme Sampaio et al (2000, p. 55) “é neste nível de ensino que se definem as possibilidades de ingresso dos jovens nos diferentes estabelecimentos de ensino superior no país”35.

No Brasil, o acesso à educação superior é ainda condicionado por questões sócio- econômicas. Em razão de haver uma correlação entre a cor e a renda no país percebe-se que essa exclusão se repete na composição étnico-racial da educação superior. Para os autores, as possibilidades de ingresso no nível superior estão relacionadas à renda familiar e ao nível de escolaridade dos pais. “Poucos são os jovens que, oriundos de famílias com baixa renda e/ou com pais de baixa escolaridade, logram ingressar em um curso superior público ou privado” (p. 54).

Corroborando com o quadro de exclusão descrito, os jovens que conseguem concluir o ensino médio e disputar uma vaga na educação superior36 são majoritariamente de famílias mais ricas, predominantemente mais brancos, filhos de pais com maior nível escolaridade do que a média e residentes no sudeste e sul do Brasil.

A seletividade persiste dentro dos estabelecimentos de educação superior e entre os egressos, porquanto, “existem diferenças sócio-econômicas significativas distinguindo jovens que estudaram em cursos diurnos ou noturnos, instituições públicas ou privadas, cursos de

35 De acordo com esses autores, o problema da ampliação do acesso a educação superior não é mera questão de aumento da oferta de vagas no sistema, mas, está diretamente relacionado a elevada taxa de exclusão de jovens pertencentes aos segmentos mais pobres da população, sendo o nível superior o corolário desse processo de exclusão.

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No Brasil, a despeito da universalização do ensino fundamental, pouco mais da metade dos estudantes que entram conseguem concluí-lo. Dos que conseguem chegar ao ensino médio, cerca de 30% terminam o curso e uma taxa menor ainda disputa o acesso à educação superior, sendo a maioria dos candidatos oriundos de escolas públicas (NEVES et al 2007).

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Engenharia, Medicina ou Letras, entre outros aspectos” (SAMPAIO et al, 2000, p. 27).

No conjunto das universidades públicas, o cenário de desigualdade é também acentuado. Apesar de representarem apenas 12% da oferta de vagas (INEP 2008), o vestibular para essas instituições é o mais concorrido no sistema brasileiro e, em geral, elas são as IES com melhor qualidade nos cursos de graduação e pós-graduação.

O acesso ao sistema público, se compararmos à demanda, ainda é muito restrito, bem como concentrado em jovens pertencentes às faixas de renda mais altas, principalmente nas universidades federais brasileiras. Ainda segundo Sampaio et al (2000, p. 34):

O perfil dos formandos das universidades públicas, em seu conjunto de cursos, ainda apresenta um perfil mais clássico, que corresponde, em grande medida, à imagem tradicional do estudante universitário. Eles são em sua maioria homens, mais jovens e solteiros. Perfil oposto apresenta os formandos das faculdades e escolas privadas: grande proporção de mulheres, de indivíduos com mais de 25 anos e de pessoas casadas.

Entretanto, de acordo com esses autores, a composição social e étnica do setor privado é mais elitista do que a do público, ao contrário do que pensa o senso comum. Dessa forma, embora as características sócio-econômicas dos estudantes permaneçam atreladas aos cursos, a possibilidade de estudantes desfavorecidos socialmente ingressarem em cursos de alto prestígio social só ocorre em instituições públicas.

Dados do PNAD (2006) atestam que 1,8% dos estudantes da educação superior pública fazem parte dos 20% mais pobres da população brasileira, ao passo que 1% dos estudantes da rede privada pertencem a esse grupo. É preciso considerar que a proporção de estudantes no sistema público é menor que a do setor privado, representando 54,3% e 64,2%, respectivamente.

Levando-se em conta esses resultados tem-se que, independentemente do curso, a maior proporção de formandos de minorias sociais tais como negros e estudantes de baixa renda, geralmente provenientes de escolas públicas37, está nas universidades públicas, embora representem a minoria dos alunos dessas instituições.

Uma pesquisa sobre o perfil sócio-econômico das universidades brasileiras38 realizada pelo Fórum de Assuntos Comunitários e Estudantis das universidades

37 De acordo com Cunha (2007), nas duas últimas décadas, registrou-se um aumento de 250% no número de estudantes que concluem anualmente o ensino médio, fortemente concentrado no setor público. Em 1965, os concluintes desse setor representavam 41,2% do total de estudantes, enquanto em 2005 esse índice era de 87,8%.

38 A pesquisa intitulada “O II Perfil Socioeconômico da IFES” contou com a participação de 47 IFES

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brasileiras/FONAPRACE (2004) revelou que: 37,5% dos alunos estudaram o ensino médio exclusivamente em escolas públicas; 65% pertencem a famílias cuja renda média mensal varia entre R$ 207,00 e R$ 2.800,0039; 59,4% são brancos e há uma acentuada presença de auto- declarados pretos e pardos nas classes socioeconômicas C, D e E (cerca de 43%), reforçando a vinculação entre a exclusão que a nossa sociedade desigual produz entre pobreza e etnia.

Diante deste perfil, a universidade brasileira vive uma contradição entre excelência e democracia, termos utilizados por Catani (2006), ou entre massificação e elitização. As IFES são naturalmente elitistas e seletivas já que um de seus principais objetivos é gerar conhecimento de alta qualidade para o desenvolvimento econômico, social e político do país. Contudo, a pressão por vagas na educação superior aumentou demasiadamente nos últimos anos, principalmente de candidatos pobres. Em contrapartida, a expansão das vagas aconteceu predominantemente no setor privado que já apresenta sinais de saturação, com mais da metade das vagas ofertadas não preenchidas (INEP, 2008).

Tendo em vista esse panorama, o vestibular, principal mecanismo para selecionar os melhores e os mais capacitados candidatos ao ingresso na educação superior, foi tema de inúmeras críticas ao longo das últimas décadas. Questões macro-sociais foram pauta importante nessa discussão, apontando a influência da origem sócio-econômica do candidato na participação e nos níveis de desempenho da seleção. Para Oliveira et al (2008):

Mesmo numa sociedade marcada pela heterogeneidade cultural e pela diferença de classes prevalece a competição livre e aberta entre os desiguais, o que, infelizmente, faz aumentar o gap cultural, historicamente em construção, entre os atores sociais, reforçando a reprodução social. Dessa maneira, a instituição do exame vestibular, eliminatório e classificatório, para o acesso a um número limitado de vagas em cursos de graduação é, também, uma estratégia velada de reprodução das elites (p. 82).

Até o final do século XX, o vestibular tratava igualmente candidatos de diferentes grupos étnicos e classes sociais, por meio de um exame formal e neutro para avaliar estritamente o mérito e a capacidade do candidato de ingressar na educação superior, mas foi se modificando à medida que o número de vagas diminuía e tornava-se insuficiente, se comparado à demanda. Assim, foi adquirindo características discriminatórias que beneficiavam um grupo seleto e propiciava a reprodução das elites.

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Desse percentual, 43% têm renda familiar mensal de no máximo R$ 927,00 (correspondente às classes socioeconômicas C, D e E), índice que não se alterou desde a pesquisa anterior. Essa situação se agrava nas regiões Norte e Nordeste, alcançando taxas de 64% e 48% dos alunos, respectivamente (FONAPRACE, 2004, p. 22).

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É importante considerar que a seleção nas instituições públicas exclui candidatos com notas acima da média necessária ao ingresso, visto que muitos estudantes que atingiram a pontuação exigida na seleção não são selecionados porque não existem vagas suficientes. Para Velloso (2005), o ponto de corte que separa futuros alunos é estabelecido em função das vagas disponíveis e não das condições intelectuais de freqüentar uma universidade.

Por outro lado, não se pode garantir tecnicamente que o modelo de vestibular utilizado afere igualmente o mérito acadêmico. Segundo Vianna (1987), a elaboração de um instrumento de avaliação deve passar por uma série de procedimentos que possibilitem analisar a eficiência dos testes. Mas, as provas do vestibular, em geral, não são testadas, o que torna a sua capacidade de medir o conhecimento adquirido pelo indivíduo ainda mais questionável.

De fato, o vestibular, apesar das inúmeras transformações sofridas desde a sua criação, não consegue garantir democracia no acesso, reproduzindo as desigualdades do sistema educacional brasileiro. Quanto à eficácia deste instrumento, Pinho (2001) argumenta:

O concurso vestibular é um espelho fiel das distorções e das iniqüidades que caracterizam a sociedade brasileira. Ele é um instrumento neutro e, sendo seu objetivo precípuo é selecionar os candidatos mais bem preparados para preencher as poucas vagas oferecidas, não poderia ser outro o resultado. Tal resultado só não é mais desastroso porque a marcada hierarquização das numerosas carreiras oferecidas, determinada pelas expectativas de emprego e remuneração após a conclusão da graduação, abre algum espaço para candidatos menos bem preparados e conformados com um horizonte mais modesto. Não há qualquer surpresa no que se constata e, face aos compromissos da Universidade com a sociedade quanto ao nível dos graduados que ela deve fornecer num prazo economicamente suportável, seria um descalabro tentar usar o concurso vestibular como instrumento de justiça social. Perderiam todos, sem que se pudesse minimamente corrigir as deformações que marcam os primeiros anos da educação das crianças e dos adolescentes do país (p. 359).

As chances de ingressar na educação superior estão relacionadas ao nível social do candidato, de forma que quanto menos favorecida for a sua classe social menores serão as chances de participar do vestibular e de obter aprovação no exame.

Existe também a pré-seleção no vestibular ou auto-exclusão no acesso (MOEHLECKE, 2004; CASTRO e RIBEIRO, 1979; PINHO 2001; TESSLER 2007; AVENA 2004; SOARES e FONSECA, 1968; VELLOSO, 2007), de forma que os estudantes pobres têm predisposição a procurar cursos de baixa demanda e prestígio social, enquanto os de melhor renda procuram cursos de maior prestígio social e retorno financeiro. As desigualdades sociais são, assim, perpetuadas na escolha da carreira, pois estudantes pobres

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têm mais propensão a se decidirem por profissões de baixa remuneração.

Nessa perspectiva, existem carreiras que atraem candidatos muito melhor preparados que outras. Para Pinho (2001), trata-se do reflexo da tradição e de expectativas dos candidatos ou de suas famílias a respeito das oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho. Conseqüentemente, nelas a competição é mais acirrada do que na média: a relação candidato/ vaga é freqüentemente muito superior e o sucesso requer dos candidatos uma sólida formação escolar.

Entre os fatores determinantes no processo de auto-exclusão, Avena (2004) destaca: a disponibilidade de tempo para estudo, a habilidade, a capacidade de transformar horas de estudo em escores no vestibular, a história familiar e escolar pregressa e o maior ou menor pendor ou gosto por certa profissão.

Outrossim, muitos jovens do ensino médio público não têm a universidade pública como uma meta alcançável, por isso, em muitos casos, nem sequer chegam a se candidatar a uma vaga nessas instituições. E, quando se candidatam, procuram cursos de menor retorno financeiro.

Por fim, sobressai-se a necessidade de pensar estratégias para modificar o cenário de desigualdades apontadas, como, por exemplo, a expansão e descentralização da oferta de vagas públicas (interiorização) e a diversificação dos processos seletivos, incluindo-se mecanismos que tornem a seleção mais igualitária ou menos discriminatória. Muitas dessas estratégias foram traduzidas em políticas educacionais de âmbito nacional.

2.2 Políticas de democratização da educação superior brasileira implantadas a partir de

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