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2.3. Aspectos Sociais e Simbólicos do Uso do Crédito

2.3.1. Aspectos Sociais no Uso do Crédito

Oliveira e Jesus (2013) e Ribeiro et al. (2013) destacam que as pessoas consomem pela praticidade ou por razões simbólicas, culturais e dentro de um contexto em que amigos, família, grupos de referência e estratos sociais agem de forma interdependente. Todas as ações dos indivíduos são submetidas aos ditames sociais, por meio de uma mecânica social, e os aspectos simbólicos e a construção de identidade fazem parte dessa mecânica. A busca pela afirmação individual é característica marcante do consumo. Na busca por afirmação, a escolha individual e o estilo de vida definem as identidades pessoais e o comportamento, permitindo que cada pessoa construa a sua própria imagem (RIBEIRO et al., 2013).

As condições de vida das famílias explicam como algumas delas têm de recorrer a empréstimos mais do que outras e dão origem a diferentes tipos de comportamento. Essas diferenças permitem interpretar a natureza, a força e o papel de tais comportamentos com base nas representações sobre crédito. Garantem também importante função simbólica através da inserção dentro do universo dos conflitos sobre a aquisição ou a preservação da identidade social positiva e, de forma mais geral, do conflito relativo à apropriação ou conservação de posições dominantes na sociedade (VIAUD; ROLAND-LÉVY, 2000).

Segundo Santos et al. (2013), a perspectiva da economia política pode ser importante para entendimento de que o recurso do crédito vem da sociologia do consumo. A ideia do fetichismo da mercadoria, em que as relações sociais são transformadas em relação entre coisas; o conceito de emulação social, segundo o qual o consumo conspícuo tem como objetivo marcar pertença a uma posição social; e a proposta de expansão automática das necessidades à medida que novos padrões de vida são alcançados são formas para explicar o uso do crédito pelas famílias.

44 Entender o recurso ao crédito pela sociologia do consumo é entender que a posição que o indivíduo ocupa na sociedade depende da sua situação financeira e do padrão de vida imposto pela classe a que ele pertence. O uso do crédito reflete o contexto social em que os indivíduos se encontram e as respectivas normas de consumo. A busca pela emulação social direciona os estratos mais baixos a procurarem afirmação social, por meio da compra e uso de produtos e serviços associados às classes superiores. Na falta de rendimento, o recurso ao crédito torna-se ferramenta para essa afirmação social (SANTOS et al., 2013). Da mesma forma, indivíduos de classe social mais alta podem usar o crédito para manter seu padrão superior de consumo em períodos de perda de rendimento ou outros problemas.

A classe social influencia as práticas de consumo de tal forma que a busca por distinção ou pertencimento a determinada classe pode levar os indivíduos a recorrerem ao crédito, a fim de adquirir bens e serviços que simbolizem a inclusão almejada. Em se tratando de grupos sociais e consumo interclasse, merece destaque o conceito de sociabilidade da vizinhança. De acordo com esse conceito, existe homogeneização dos padrões de consumo entre grupos similares, a qual se pode chamar de emulação horizontal. Para que esta ocorra, o crédito é, muitas vezes, importante ferramenta (SANTOS et al., 2013).

As comparações sociais realizadas pelas pessoas são um indutor da busca pelo crédito. À medida que os indivíduos se comparam com outros – que porventura tenham mais recursos econômicos – e querem ter os mesmos produtos e serviços que eles têm, o crédito torna-se ferramenta para realização das compras desejadas. O estilo de gestão do dinheiro está correlacionado com o uso do crédito. Devedores graves referem-se como tendo pouca ou nenhuma gestão do dinheiro (LEA et al., 1995).

Nessa linha de pensamento, Christen e Morgan (2005) constataram que o grau de desigualdade de renda entre as famílias nos EUA é positivamente correlacionado com o uso do crédito ao consumidor. A proposição desses autores é de que as desigualdades de renda acentuam a necessidade das famílias de recuperar o atraso em relação às outras, em termos de consumo. Entretanto, os grupos de renda mais alta para os quais o rendimento foi

45 deslocado aumentam o seu consumo conspícuo, elevando, assim, as normas de consumo para todos.

Christen e Morgan (2005) relatam que o sucesso dos indivíduos e seus filhos dependem, em grande parte, da sua posição relativa em uma sociedade. Os indivíduos envolvem-se em uma competição social para atingir posição relativamente alta e aumentar a chance de sucesso. Nesse contexto, quando o rendimento de alguns consumidores aumenta mais rapidamente, outros consumidores recorrerem ao crédito para manter o consumo conspícuo em relação aos que tiveram os rendimentos aumentados. Assim, o aumento da desigualdade de renda aumenta não só a necessidade de mais crédito para manter o consumo conspícuo, mas também a recompensa de ter sucesso na sociedade.

Segundo Christen e Morgan (2005), o efeito da desigualdade de renda é mais forte sobre o crédito não rotativo (empréstimo em prestações), que é usado para financiar o consumo de bens duráveis, visto que esses tipos de bens são mais caros e mais visíveis socialmente e, portanto, muito mais adequados ao consumo conspícuo do que outros bens.

O uso do crédito ao consumidor é prática social aprendida, em que o que é socialmente motivado é a aquisição de um bem, no momento inacessível, no lugar de uso do crédito por si só. As influências sociais determinam o porquê de as pessoas usarem uma forma particular de crédito. Essa influência ocorre em vários níveis de aglomeração social; especificamente, no nível da sociedade e dos grupos de referência e no nível da família ou do agregado familiar. Assim como a propensão de um indivíduo para a comparação social influencia o uso do crédito, as normas, os padrões e as dinâmicas sociais, a partir das quais podem surgir tais comparações, também influenciam esse processo (KAMLEITNER et al., 2012). Para Kamleitner et al. (2012), a socialização financeira, no tocante a saber se o dinheiro foi usado como recompensa ou gasto imediato, foi aprovada pela família, afeta à probabilidade de experimentar dificuldades de reembolso no uso do crédito. Da mesma forma, é importante saber se a dívida é uma experiência comum dentro do grupo; por exemplo, o caso de estudantes do Reino Unido que se mostraram mais propensos a se preocuparem com o estar em dívida, mas eles foram capazes de atenuar essas preocupações por

46 estarem cientes de que a dívida é a norma entre os seus pares. Entre os jovens mutuários não estudantes, ansiedades relacionadas com a dívida foram observadas serem maiores, presumivelmente porque a dívida não era a norma entre os seus pares.

Além disso, Kamleitner et al. (2012) afirmam que a família é um agente de socialização ao uso do crédito. O conhecimento financeiro começa em casa quando as crianças conversam com seus pais sobre o dinheiro e o consumo e quando eles observam os parentes em suas tomadas de decisões e o seus padrões de consumo. Norvilitis e MacLean (2010), analisando a relação das famílias com o uso do cartão de crédito, identificaram em seus estudos que a variável facilitação parental é a que tem maior efeito sobre a dívida do cartão de estudantes universitários nos EUA. Esses autores sugerem ainda que os pais que se envolvem com a tarefa de ensinar os filhos a lidarem com dinheiro através de recursos desta natureza, ensinando-os a gerenciar um subsídio e, ou, como gerenciar contas bancárias, têm filhos que relataram níveis mais baixos de dívida de cartão de crédito na faculdade.

Em seu estudo, Pahl (2008) afirma que a forma como o crédito é usado depende da maneira como as famílias gerem o seu dinheiro e das relações entre os membros da família. Esse autor afirma também que existe individualização intrafamiliar com relação ao uso do dinheiro, acarretando separação no uso dos rendimentos. Essa individualização geralmente é motivada por um desejo de igualdade e autonomia, mas em agluns casos o efeito em algumas famílias pode ser criar desigualdade entre os parceiros. Nesse sentido, Pahl (2008) destaca que nos domicílios onde os membros têm contas bancárias separadas o crédito pode ser usado como forma de solucionar as diferenças de renda no nível intrafamiliar.

Segundo Kamleitner et al. (2012), considerando o impacto do crédito sobre as práticas cotidianas e que as questões sobre dinheiro são fontes mais frequentes de conversas e argumentações entre os cônjuges, pode-se dizer que o crédito tem influência forte sobre a extensão de conflito conjugal. Nesse sentido, Dew (2007), estudando cerca de 3.731 famílias nos EUA, afirma que as relações diferentes entre ativos financeiros, a dívida de consumo e os conflitos conjugais sugerem que os ativos financeiros e as dívidas de consumo significam coisas diferentes para o casamento. Os ativos exercem a função de

47 reduzir a sensação de pressão econômica, pois diminuem preocupações econômicas, dando segurança financeira à família. Já a dívida de consumo exerce pressão econômica sobre a família.

A dívida de consumo, medida ao longo do tempo, é preditora de mudanças na direção dos conflitos conjugais mais frequentes nas famílias. Essa relação reflete o reconhecimento pelos casais de que a dívida de consumo limita as tomadas de decisões futuras e que casais podem ressentir- se em relação ao tempo e ao dinheiro necessários para atendimento de uma dívida, especialmente se um dos cônjuges assume uma dívida sem o outro ou apesar das objeções do outro (DEW, 2007).

Um ponto interessante na pesquisa de Dew (2007) é que as dívidas também parecem ajudar indiretamente os casamentos, diminuindo a depressão, como um efeito supressor de pressão. A dívida de consumo pode diminuir a depressão por causa da comparação social e dos sentimentos de bem-estar associados a julgamentos da situação financeira em relação à de outros indivíduos. Para o citado autor, o bem-estar influencia positivamente os indivíduos que começam a usar dívida para consumir em níveis iguais ou excedentes ao seu próprio grupo de referência.

O processo interativo do uso do crédito também pode ser analisado pela interação entre credor e devedor, e nessa relação a confiança é uma questão importante, em particular para o crédito ao consumo, que na maioria das vezes não tem garantia como no caso do crédito imobiliário (KAMLEITNER et al., 2012). Segundo Moulton (2007), os credores, muitas vezes, têm de racionalizar suas decisões e, para isso, usam de proxies3 de relacionamento como apoio nas aprovações ou recusas sobre empréstimos, principalmente nas transações com clientes novos.

As proxies de relacionamento são partes de informações subjetivas que os credores buscam para indicar o potencial de confiabilidade dos mutuários. São sinais observados pelos credores, isto é, pistas comportamentais usadas como informação relacional na construção da confiança, que só pode se desenvolver ao longo do tempo através de encontros repetidos (MOULTON, 2007). São situações em que os credores olham para dentro e para além da

3 São variáveis para medição indireta de um constructo que o investigador pretende estudar. São usadas quando o objeto de estudo é difícil de medir ou de observar.

48 informação financeira apresentada pelos candidatos. O resultado é um processo de tomada de decisão em que a avaliação de risco e a avaliação de confiança desempenham papéis complementares e interdependentes (MOULTON, 2007).

Para Moulton (2007), os credores contam com três tipos de proxies de relacionamento: as impressões comportamentais, as informações sobre a reputação e as narrativas financeiras. Usam todos os três tipos para avaliar o caráter do tomador de crédito e, portanto, a sua confiabilidade. A impressão do comportamento é caracterizada por uma avaliação do comportamento do candidato ao empréstimo nas entrevistas e outras interações em todo o processo de negociação. As informações sobre a reputação são as referências formais e informais que os credores reúnem de pessoas com conhecimento pessoal dos potenciais mutuários. As narrativas financeiras são as experiências financeiras relatadas (narradas) pelos mutuários acerca do seu comportamento passado, principamente de problemas financeiros.

A importância da avaliação da pessoa é evidenciada no fato de que o mercado de crédito ainda envolve muita interação face a face, mesmo em uma era de tecnologia altamente desenvolvida. Estritamente falando, as pessoas precisam ver um ao outro quando se trata de operações de crédito. O contato pessoal continua a ser característica importante no processo de crédito, pois oferece um tipo mais qualitativo do fluxo de informações que podem ajudar a fomentar a confiança nos relacionamentos de longo prazo decorrentes de operações iniciais (MOULTON, 2007).

Segundo Moulton (2007), os credores de todos os tipos que participaram de sua pesquisa argumentaram que nenhuma quantidade de padronização, automação e outras formas de gestão de risco não elimina completamente o uso da avaliação subjetiva do processo de triagem dos clientes de crédito. A avaliação subjetiva ainda desempenha papel nas decisões de crédito.

As questões de interação e relacionamento também são importantes para os tomadores de crédito. Segundo Cho e Hu (2009), a qualidade do serviço prestado pelos credores é uma proxy para o relacionamento e fundamental para a escolha de um provedor de empréstimo. Esses autores argumentam que a qualidade do serviço prestado pelo credor desempenha papel essencial na formação e consolidação da confiança dos consumidores

49 em relação às instituições financeiras de que obtêm empréstimos. A empatia e confiabilidade percebidas exercem as influências mais significativas sobre a confiança do consumidor.

Sonenshein et al. (2011) relatam que existe uma contabilidade social que influencia as decisões dos credores sobre emprestar dinheiro para os mutuários. Essa contabilidade é baseada em duas abordagens narrativas usadas pelos candidatos ao crédito: a explicação-reconhecimento, em que os candidatos explicam a sua necessidade de empréstimo e, além disso, reconhecem que o seu próprio comportamento financeiro passado exigiu lançar mão desse recurso; e a explicação-negação (que refuta o problema financeiro), sugerindo que esse cadidato reconhece um erro (que pode ser visto como ato de honestidade) ou contesta a informação negativa no inuito de neutralizar a informação negativa.

Thorne (2010), estudando a desigualdade de gênero que pode resultar de dificuldades financeiras na família, verificou a existência de que o pagamento de dívidas quando é dividido igualmente entre maridos e esposas pode refletir a realidade das famílias financeiramente estáveis. Ao contrário, essa equidade pode ser menos provável em famílias que estão enfrentando dificuldades financeiras graves.

As mulheres que assumiram a administração das tarefas financeiras emergentes expressaram descontentamento sobre a carga de trabalho adicional adquirida. Segundo aquele mesmo autor, existem algumas explicações para esse descontentamento. E uma delas está no fato de que algumas mulheres queriam a ajuda de seus maridos e ficaram frustradas quando estes não estavam acessíveis. Algumas queriam protegê-los da tensão emocional advinda das dívidas e outras não queriam que seus maridos se envolvessem com as tarefas financeiras, porque acreditavam que seus cônjuges eram financeiramente irresponsáveis. De acordo com o citado autor, em alguns casos existe um desequilíbrio de poder entre os cônjuges, em que alguns maridos tinham o poder de vetar os pedidos de suas esposas para contornar a situação financeira. Outros maridos não justificavam seus vetos, declarando que não queriam ser incomodados impondo a suas esposas a tarefa de cuidar das coisas.

50 Segundo Thorne (2010), nem todos os maridos eram indiferentes à situação da dívida. Alguns pesquisados se encontravam ansiosos, irritados e embaraçados com a situação financeira e outros afirmaram que se reconheciam como falhos, porque se sentiam malsucedidos como chefes de família. Esse autor conclui que seu estudo fornece suporte para a conclusão de que a dificuldade financeira grave é a origem dos aumentos significativos do sofrimento emocional entre os cônjuges, mas principalmente para as mulheres, pois, apesar do aumento da angústia dos maridos, muitos escolheram evitar o trabalho e o desgaste de resolver a situação financeira desequilibrada, ficando isso a cargo das esposas.

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