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2.1. Trissomia 21

2.1.3. Aspectos Socioculturais

Os mitos que provocavam a exclusão na Grécia antiga e as crenças que levavam ao isolamento na idade Média parecem estar presentes em roupagens modernas, ainda impedindo a convivência com o diferente (…) (Casarin, cit. por Castro, 2006, p. 161)

Ornelas e Souza (2001, p. 78) encontraram em Amiralian indicadores de que desde o começo da História os homens procuraram explicar os comportamentos incaracterísticos como sendo consequência de forças sobrenaturais, acreditando mesmo que, em certas situações, tinham origem demoníaca (algumas civilizações praticaram rituais, abrindo orifícios na cabeça de indivíduos, a fim de permitir que os espíritos malignos saíssem do corpo).

Apesar de não existirem evidências científicas, parece-nos ser razoável assumir que a T21 tenha surgido em tempos longínquos. Esta linha de pensamento encontra suporte nos escritos de Pueschel (cit. por Castro, 2006, p. 40), relativos ao historial biológico da espécie humana. No seu entender, ao longo do processo evolutivo, aconteceram inúmeras mutações genéticas e alterações ao nível dos cromossomas, razões pelas quais as doenças genéticas e desordens cromossómicas conhecidas, entre as quais a T21, talvez tenham ocorrido há muitos séculos. Ainda segundo o mesmo autor, o achado antropológico relativo à T21 com uma datação mais distante, mais concretamente do século VII dC., diz respeito a um crânio que apresenta alterações estruturais usualmente associadas à referida alteração genética.

Na perspectiva de fenómeno cultural, vários autores (Costa, 2009, p.53; Castro, 2006, p. 91; Serrão, 2006, p. 27) relacionam as esculturas dos Olmec, povo que habitou no México entre os séculos XVI aC. e IV dC., com o fenótipo usualmente associado aos portadores de T21 inferindo serem estas demonstrações artísticas das primeiras evidências da existência da cromossomopatia em estudo. Desse momento em diante, são raras as evidências e existe polémica em torno de algumas pinturas dos séculos XIV e XVI que alguns estudiosos consideram retratar portadores de SD. Apesar do exposto, e com o conhecimento que se tem hoje da sua frequência e do seu fenótipo característico, torna-se difícil acreditar que ela só tenha sido identificada no século XIX embora seja possível que a ausência de evidências se deva às altas taxas de mortalidade infantil da época (Costa, 2009, p. 54).

A primeira descrição da SD surge em 1846 por Seguin, médico e educador francês, quando descreve um tipo particular de atraso mental (MacLean, 2000, p. 76; Oliveira, 1999, p. 30) sendo a sua base genética estabelecida em 1959 por Lejeune, Gautier e Turpin (cit. por Roizen e Patterson, 2003, p. 1281; MacLean,

2000, p. 76) quando descobriram a associação entre as características fenotípicas e a existência de um terceiro cromossoma 21.

Ainda assim, a principal referência relativamente a esta “condição menor” provém de Langdon Down e do seu trabalho de 1866 em que, ao apresentar uma descrição clínica da síndrome, de acordo com a tendência da época, influenciada por um pendor racista (Costa, 2009, p. 54; Serrão, 2006, p. 23), estabelece, erroneamente, associações com caracteres étnicos, designando os portadores de T21 como “idiotas mongolóides”. Não podemos deixar de achar curioso que, apesar destas imprecisões, ainda hoje a designação mais comum para a síndrome derive, precisamente, do nome deste clínico.

Para melhor espelhar o que atrás é descrito, apresentamos um excerto da obra onde se pode ler: “A grande família Mongólica apresenta numerosos

representantes e pretendo neste artigo chamar a atenção para o grande número de idiotas congénitos que são Mongóis típicos. O seu aspecto é tão marcante que é difícil acreditar que são filhos dos mesmos pais... O cabelo não é preto, como num Mongol típico, mas de cor castanha, liso e escasso. A face é achatada e larga. Os olhos posicionados em linha oblíqua, com cantos internos afastados. A fenda da pálpebra é muito curta. Os lábios são grossos, com fissuras transversais. A língua é grande e larga. O nariz, pequeno. A pele, ligeiramente amarelada e com elasticidade deficiente. É difícil acreditar que se trate de um europeu, mas pela frequência com que estas características são observadas, não há dúvida de que estes aspectos étnicos resultam de degeneração. O tipo de idiotia Mongólica ocorre em mais de 10% dos casos que tenho observado. São sempre idiotas congénitos e nunca resultam de acidentes após a vida uterina. Eles são, na maioria, exemplos de degeneração originada de tuberculose nos pais” (Moreira, El-Hani e Gusmão, 2000,

p. 96).

Felizmente, a evolução cultural e os valores emergentes das novas formas de encarar “as diferenças”, conduziram à discordância quanto ao termo “mongolóide”, considerado ofensivo tanto por pesquisadores orientais como por pais de pacientes no ocidente, bem como pela delegação da Mongólia junto à Organização Mundial de Saúde (OMS). Assim, a denominação mongolismo foi excluída da Revista Lancet em 1964, das publicações da OMS em 1965 e do Index

Medicus em 1975, sendo hoje considerada arcaica (Flores et al., cit. por Serrão,

2006, p. 23) embora ainda seja recorrentemente utilizada, mesmo por técnicos de saúde, para designar a T21.

A este propósito, não podemos deixar de concordar com Ornelas e Souza (2001, p. 78) quando referem que, apesar de conceitos e tratamentos relativos aos “deficientes” terem mudado bastante, ainda continua a haver muita descriminação.

Deficiência mental, atraso mental, deficiência intelectual, muitos são os termos (talvez mesmo apodos) utilizados para caracterizar indivíduos com uma prestação cognitiva e/ou social diferente daquele que é o padrão considerado normal. A este propósito, não podemos deixar de referir que consideramos a normalidade um conceito empírico que se tornando, por vezes, limitador da individualidade do ser humano. Assim, esta categorização, para além de ser desnecessária, pode mesmo caucionar a organização de um processo de intervenção pois coloca, desde logo, um “rótulo menor” a que está intrinsecamente ligada uma expectativa de sucesso muito baixa.

Ademais, o desconforto social e da comunidade científica com estas designações começa a sentir-se ao ponto da própria American Association on

Mental Retardation, instituição internacionalmente reconhecida e conceituada

(Santos, 2007; Varela, 2006, Barbosa, 2005; Campos 2002; Morato e Santos, 2002) pela longa história (foi fundada em 1876) e pela grande difusão da sua definição de deficiência mental, ter alterado o nome para American Association on Intellectual

and Developmental Disabilities (AAIDD), conforme pode ser verificado na página

oficial da instituição na Internet: http://www.aamr.org/ e em http://www.aamr.org/content_1.cfm?navID=2 (consultado em 03 de Abril de 2009).

As últimas evidências por nós apresentadas remetem para uma alteração no posicionamento social relativamente aos portadores da SD, algo que é corroborado por Escribá (2002, p. 13) quando afirma que em poucos anos a nossa perspectiva e as nossas expectativas relativamente a estas pessoas mudaram de forma radical.

Assim, começa a assistir-se a uma mudança de atitude ao nível da elaboração dos normativos que regulam o funcionamento das instituições (vejamos o caso da CIF – OMS e DGS, 2003) no sentido de serem asseguradas melhores oportunidades de desenvolvimento e de integração aos portadores de SD/T21. Esta evolução, contudo, ainda está distante de uma perspectiva que se baseie na procura da normalidade, ou seja, na formação de cidadãos autónomos, independentes, socialmente integrados e úteis à sua comunidade.

Tantos mitos cercam o mongolismo que, quando digo que os mongolóides podem ser normalizados, as pessoas literalmente gritam

que tal coisa é impossível. Como se vê, o maior problema é que estamos programados para esperar a derrota… (Véras, 1993, p. 168)

Pensamos ser também razoável supor que o preconceito ditado por milhares de anos de segregação cavou fundo na nossa consciência social levando ainda a atitudes, talvez inconscientes, desenquadradas das reais capacidades, direitos e necessidades das pessoas com SD.

Nesse sentido, Rangel (cit. por Castro, 2006, p. 91) remete para o poder que as representações sociais têm de influir em percepções e comportamentos e de interferirem na constituição do real, na medida em que as percepções consubstanciam-se em ideias, expressas em conceitos e imagens, que podem determinar estigmas e preconceitos que orientam comportamentos, comunicações e relações humanas e sociais.

Campos (2005, p. 20), aponta a produção dos sinais sociais como problemática para as crianças com SD. A atribuição errónea de uma personalidade estereotipada como amistosas, felizes e afectivas, com jeito para a mímica e gosto pela música é muitas vezes referida até por profissionais. No entanto, não há estudos empíricos que confirmem estas características. Pais e professores que lidam com crianças com síndrome de Down refutam rapidamente este estereótipo, uma vez que essas crianças são tão peculiares como qualquer outro grupo de crianças, respondendo de diferentes formas em diferentes situações (Pitcaim e Wishart, 2000; Bautista, 1993). Castro (2006, p. 160), vai mesmo mais longe e afirma que ultrapassando estereótipos e coincidências aparentes encontramos uma rica variedade de temperamentos, como em qualquer indivíduo.

Tais asserções são encontradas também em Roizen e Patterson (2003, p. 1287) ao narrarem escritos de autores sobre pais que afirmam serem os portadores de T21, relativamente a outras crianças, mais felizes e carinhosos; algo não comprovado cientificamente pois, como alertam, os resultados das investigações demonstram não existirem diferenças de temperamento relativamente aos grupos de controlo.

Como podemos constatar, as representações sociais relativas à SD estão fortemente relacionadas com a forma como os portadores, familiares e profissionais envolvidos no seu acompanhamento (terapêutico ou educacional) apreendem os acontecimentos quotidianos, os dados da comunidade em que se inserem e as informações aí veiculadas. Por outras palavras, o conhecimento construído pelos sujeitos sociais envolvidos reporta, sobretudo, a conhecimentos provenientes do

senso comum (experiências vivenciadas, informações, saberes e modelos de vida transmitidos através da tradição e da comunicação social) e opõem-se, em grande medida, ao pensamento científico mais recente.

Damasceno (cit. por Ornelas e Souza, 2001, p. 78) quando diz que a concepção de um ser estático, imutável, incurável conduziu a uma ideia distorcida em relação à educabilidade dos indivíduos com alguma deficiência, sintetiza o poder das representações sociais erradas e enquadra o facto de em pleno século 21, e apesar da evolução científica e educacional, ainda se construírem muros em torno das possibilidades de desenvolvimento integral das crianças com esta alteração cromossómica.

… a ignorância não consiste tanto em não saber alguma coisa, como em saber tantas coisas que não são verdadeiras”. (Doman, 1989, p. 35)

Esta categorização, começa desde o nascimento pois, segundo Véras (2006, p. 26), os pais ouvem dos médicos a explicação de que a criança com T21 será diferente das outras crianças e nunca terá condições de frequentar uma escola regular e terá também um atraso mental-motor que a fará dependente por toda a vida.

No âmbito social, Chevallier (cit. por Serrão, 2006, p. 35) relata que o desempenho do portador desta cromossomopatia é influenciado pelo seu meio ambiente, podendo o resultado dessa interacção restringir ou ampliar as oportunidades de desenvolvimento e as possibilidades de integração social.

Considerando válidas as asserções anteriores, o estudo de Serrão (2006, p. 72) remete-nos para uma realidade preocupante pois conclui que familiares e profissionais de saúde que acompanham os portadores da cromossomopatia evidenciam representações sociais da SD em que aspectos psicossociais, e consequentes configurações mentais, remetem para uma orientação/postura negativa.

Tais abordagens estereotipadas acabam mesmo por ter reflexos profundos até no relacionamento mãe-filho, como apontam estudos da interacção parental onde as progenitoras de crianças com SD reagem de forma distinta, no relacionamento com os seus filhos (quando comparadas com as mães de crianças com um desenvolvimento típico), ao ponto de poderem condicionar o desenvolvimento da linguagem e de integração de conceitos, razão pela qual são

sugeridas técnicas de intervenção destinadas a melhorar a qualidade destas primeiras interacções (MacLean, 2000, p. 77).

During the first years of life a child surroundings are an essential part in the development of this potentials. There is no doubt that this environment is provided almost exclusively through its parents. However, when a child is born with some genetical or perinatal damage, the environment is disturbed and its possibilities of learning may be reduced. (Sanz e Menéndez, 2003, p. 557)

As investigações sugerem ainda que a interiorização das experiências relacionais com os cuidadores primários (normalmente os progenitores), durante a infância, é transportada para as relações posteriores, podendo as ligações construídas ser qualitativamente diferentes consoante o tipo de cuidados prestados. Deste modo a relação do bebé com os seus cuidadores assume extrema importância no desenvolvimento e, muitas vezes, na possível psicopatologia da criança (Zeanah et al., 1997, pp. 182-184).

Aqui chegados, sentimo-nos obrigados a reflectir sobre as possíveis implicações dos factos atrás aduzidos no “autoconceito” dos portadores da cromossomopatia e tomamos como referência para tal a definição proposta por Shavelson, Hubner e Stanton (cit. por Marsh e Shavelson, 1985, pp. 107-108): “Person’s perceptions of him or herself”; segundo os autores, esta percepção constrói-se pela experiência e interpretação do meio ambiente, sendo particularmente influenciada pelas avaliações/reforços dos outros significativos e ainda pelas atribuições do próprio comportamento.

Assim sendo e com base na revisão realizada anteriormente torna-se evidente estarem as crianças com T21 sujeitas a uma grande desvantagem desde o nascimento em relação aos demais bebés. Quais as razões para tal afirmação?

Desde logo, o facto das representações sociais associadas à alteração genética serem negativas, o que se deve em grande parte à influência do, universalmente aceite, rótulo de “deficiência mental”. Estes aspectos, para além de todo o preconceito que encerram, ao condicionarem as expectativas dos “outros significativos” (pais, familiares próximos, terapeutas e médicos) relativamente às potencialidades das crianças, conduzem a interacções parentais caracterizadas por reforços reduzidos, negativos e/ou desajustados e influenciam a forma como a criança percepciona o mundo e a sua actuação nele; aspecto que Marsh e

Shavelson (1985, p. 121) destacam como tendo implicações significativas no desenvolvimento psicológico dos jovens.

Também importante no que diz respeito à autopercepção dos portadores de deficiência em Portugal, é o facto de Campos (2005, pp. 95-101), ter encontrado, em consonância com Corredeira, valores inferiores aos apresentados por investigações realizadas fora do território nacional o que leva a autora a alvitrar a possibilidade de existir um efeito cultural nas autopercepções de competência percebida e de aceitação cultural.

E como se pode observar nas conclusões da Declaração de Salamanca (1994), "por um tempo demasiado longo as pessoas com deficiência têm sido marcadas por uma sociedade que acentua mais os seus limites do que as suas potencialidades" (Conselho Nacional de Educação, Parecer n.° 3/99, p. 2378). (Pinheiro, 2001, p. 34)

Em resumo, pensamos ser aceitável inferir que todos estes ingredientes se “misturam” desde muito cedo na ontogenia da criança com trissomia 21 portuguesa assegurando “uma receita de insucesso”.

Torna-se então premente promover uma alteração de mentalidades e de procedimentos; parafraseando Véras (2006, p. 32): é necessário acreditar em resultados, acreditar que o indivíduo, através de um trabalho intenso durante alguns anos, pode desenvolver-se e chegar à normalidade, ou bem próximo disso; é urgente pôr de parte a ideia de ensinar a criança a viver com as suas deficiências sem problemas de maior de modo a não condicionar a vida da família.

Finalmente, deve ser realçado pela positiva o facto de se começar a encontrar na bibliografia mais recente um posicionamento menos determinístico da SD:

A constatação da trissomia não tem valor no prognóstico, nem determina o aspecto físico mais ou menos pronunciado, nem uma maior ou menor eficiência intelectual. Há um consenso da comunidade científica de que não existem graus da SD e que as diferenças de desenvolvimento decorrem das características individuais que são decorrentes de herança genética, estimulação, educação, meio ambiente, problemas clínicos, dentre outros. (Silva e Kleinhans, 2006, p. 125)