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Aspetos fundamentais: multimodalidade, “caos e gestalt”, contacto de línguas

aproximações ao espaço público da paisagem linguística

Capítulo 2 – A paisagem linguística

2.2.3 Caracterização e expansão dos linguistic landscape studies

2.2.3.1 Aspetos fundamentais: multimodalidade, “caos e gestalt”, contacto de línguas

As línguas, no seu registo oral e escrito, estão em permanente renovação, o que lhes permite continuar a cumprir a sua função mais ancestral, comunicar mundos. Ao invés de serem percebidas como sistemas finitos e estáticos, a visão expandida da linguagem, decorrente da sua multimodalidade, leva-nos a uma conceção ampla de língua e de cultura. Por este motivo, a paisagem linguística é também uma paisagem semiótica onde outros elementos, para além das palavras escritas, produzem significados. Estes outros elementos, como, por exemplo, as imagens, a música, as embalagens de produtos alimentares, a moda,

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os gráficos, os ícones, quando não surgem isolados, estão muitas vezes associados ao texto escrito, gerando combinações de sentidos que concorrem para a produção de significados. Aqui reside então o carácter multimodal da paisagem linguistica (Shohamy, 2006; Cenoz & Gorter, 2008; Shohamy & Waksman, 2009; Blommaert & Huang, 2010; Juffermans & Coppoolse, 2012; Clemente, Martins, Vieira, & Andrade, 2014). A multimodalidade, percebida como a mistura de códigos verbais e visuais que veiculam significado, qualifica uma variedade de tipos de textos, desde os jornais, a publicidade, aos filmes, livros de histórias infantis até às páginas da internet (Saraceni, 2001). A proliferação de contextos multimodais deve-se à evolução dos meios e formas de comunicação e à influência da tecnologia (como é o caso da internet, das telecomunicações ou da televisão digital) que permite a coexistência de som, imagem e movimento, entre outros símbolos semióticos, para além da língua, intervenientes na produção de significados oriundos da combinação texto verbal-imagem. As características tipográficas, as cores, os símbolos e os ícones colocados lado a lado com o texto verbal (ou que o substituem), os links de páginas da internet, os códigos QR (sigla de “Quick Response”) e/ou as hashtags34, entre outros elementos que integram a paisagem linguística, constituem exemplos do seu caráter multimodal. Assim, os sentidos que atribuímos ao mundo não provém exclusivamente das línguas, existindo outros símbolos semióticos que contribuem para a produção de significados (Clemente, Martins, Vieira, & Andrade, 2014). Tal como referem Cenoz e Gorter (2008), a língua não é o único veículo que transporta significados numa situação comunicativa, devendo outros modos ser tidos em consideração. De acordo com o modelo de triangulação de Pierce, os elementos da significação incluem o signo, o interpretante e o objeto, sendo que o signo está dividido em diferentes categorias também esquematizadas triangularmente: ícone, índice e símbolo. Esta distinção é importante na análise dos objetos que compõem a paisagem linguística e auxilia a construção de interpretações/leituras em complementaridade ou simultaneidade com os significados dos textos verbais. Assim, um ícone é um signo que denota ou representa um aspeto do próprio

34 O estudo de Caleffi (2014) analisa os hashtags (símbolo do cardinal ou cerquilha) como uma nova forma

de formação de palavras em contextos online e offline, explorando as implicações morfossintáticas e a exploração pragmática e semântica deste novo recurso, reportando ainda a sua crescente popularidade na paisagem linguística. Este símbolo começou a ser utilizado na formação de comunidades online, sobretudo, em redes sociais, originalmente no Tweeter e depois no Facebook, Instagram e Google+ (Cunha et al., 2011; Caleffi, 2014).

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objeto como é o exemplo de :) que corresponde ao smiley face ou sorriso; o símbolo é um signo que constituiu uma representação arbitrária de algo no mundo, como é o caso das cores dos semáforos; o índice é um signo que significa algo devido à sua localização no mundo, como por exemplo as placas direcionais pedestres, sendo esta uma propriedade de todos os signos (Scollon & Scollon, 2003; Lillis, 2013). Importa ainda chamar a atenção para o facto de poder ser feita uma distinção entre indexalidade e simbolismo como duas formas distintas de um signo (ou uma fonte tipográfica) produzir significado, como por exemplo, o uso de chinês no nome de uma loja pode remeter para uma comunidade que fala chinês ou para a oferta de serviços em chinês e o uso de uma caligrafia (fonte) de inspiração oriental que pode simbolizar o estrangeiro (foreignness), de uma forma mais ampla, ou a Ásia, de uma forma mais particular (cf. Scollon & Scollon, 2003; Lillis, 2013; ver os exemplos da paisagem linguística de Aveiro, nomeadamente na fonte do texto escrito em português na fotografia 20 e 24 em contraste com a fonte do texto das fotografias 21 e 22).

Notoriamente, como avançam Blommaert e Huang (2010), os estudos em paisagem linguística beneficiam da perspetiva que olha para as produções no espaço público como signos multimodais localizados em contextos concretos, e acrescentam que

(…) it is through concentrated attention to semiotization – concretely, attention to multimodal signs – that we can turn space into a genuinely ethnographic object, full of traces of human activity, interactions, relations and histories. A whole new story of social and historical analysis could begin from there (p. 13).

Fazem então parte da realidade urbana contemporânea a introdução constante de novas produções, o frenesim de imagens e palavras que se complementam e se sobrepõem e que revelam o dinamismo da atividade humana. As imagens e palavras da paisagem linguística não são perenes, e, por isso, vão-se renovando ou desaparecendo, por vezes a um ritmo diário, do cenário da cidade, como é o caso dos anúncios publicitários, cartazes de eventos culturais ou acontecimentos públicos/políticos, mas também com o encerramento de espaços comerciais. Portanto, parece que a paisagem linguística se compõe num espaço ordenado por múltiplos atores, sendo ela própria instável e caótica. É nesta aparência de uma ordem caótica que o campo de estudos surge caracterizado como estando situado entre

o caos e a gestalt (Ben-Rafael et al., 2006; Ben-Rafael, Shohamy & Barni, 2010). Na

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aparente na configuração do espaço urbano, físico e imaterial, levada a cabo por diferentes atores com diferentes formações, diferentes gostos, diferentes motivações, diferentes línguas e competências linguísticas, desde a abertura e encerramento de lojas, à apresentação de novos produtos, à mudança de gestão e de atividade de espaços comerciais, ao protesto, aos jogos de palavras, às cores e aos tipos de letra utilizados, à formação de palavras, etc. À medida que os elementos caóticos se vão tornando recorrentes tornam-se mais familiares para os atores que os compreendem como padrões. Assim, a

gestalt caracteriza-se pela contribuição incoerente e independente para a totalidade da

paisagem linguística que pode ser apreendida pelos atores como um todo (de que são exemplo as ideias de ´baixa´, ´centro´, ´zona financeira´, ´subúrbios´, ´zona nobre´, etc.). O caos e o reconhecimento de um cenário percebido como um todo, ou um padrão composto por diferentes objetos – a gestalt – são, portanto, provenientes da dinâmica e imprevisibilidade dos contextos urbanos contemporâneos, do contacto multicultural, do fluxo e do movimento de pessoas a uma escala global, que configuram estes contextos e dão vida à paisagem linguística (Clemente, Martins, Vieira, & Andrade, 2014).

O caos e a gestalt tornam-se, assim, os desenhadores e as montras das situações de

contacto de línguas que se verificam de forma muito particular na paisagem linguística

urbana (Clemente, Martins, Vieira, & Andrade, 2014). O fenómeno do contacto de línguas ocorre desde o surgimento da humanidade e faz parte do desenvolvimento das línguas, resultando do encontro entre falantes que têm línguas diferentes e repertórios linguístico- comunicativos diversificados, sendo os resultados deste encontro influenciados por fatores de natureza diversa, como é o caso da educação, da política e economia, da imigração ou da localização geográfica, entre outros fatores demográficos que conduzem a situações linguísticas e a variações na estrutura linguística que mudam em função do espaço e do tempo (Andrade, 1997; Thomason, 2001; Ann, 2001; Sankoff, 2001; Bell, 2014). Logo, o contacto de línguas é um fenómeno heterogéneo, que pode ocorrer entre línguas relacionadas ou não relacionadas (Bowern, 2008).

O contacto de línguas resulta principalmente de dois eventos que permitem que as línguas se encontrem: a mobilidade de pessoas e a influência dos media (Bell, 2014). A mobilidade torna possível que os falantes de uma língua se encontrem com falantes de outra língua, originando diferentes tipos de situações de contacto de línguas: de exploração, comércio, conflito, migração do meio rural para o urbano/de um país para outro na procura de

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melhores condições de vida; colonização; trabalho; religião, educação; turismo (Bell, 2014). A heterogeneidade que caracteriza os diferentes tipos de contacto de línguas origina consequências diversas que se resumem à escolha de línguas (escolha da língua que se utiliza, onde e em que contextos), estratificação (as línguas tornam-se socialmente estratificadas), mudança nas línguas (ao nível dos empréstimos linguísticos, por exemplo), troca de línguas (uma língua é adotada no lugar de outra), perigo de desaparecimento,

code-switching, criação de línguas (pidgins e crioulos) e de dialetos (Thomason, 2001;

Bell, 2014).

A paisagem linguística, e em particular a tónica na dimensão linguística, oferece um leque variado de situações de contacto que podem aumentar o conhecimento sobre a língua e sobre o multilinguismo. Do ponto de vista teórico, o estudo de Huebner (2006), por exemplo, enfatiza precisamente o contexto da paisagem linguística como manifestação de situações de contacto linguístico, code mixing e mudança nas línguas a partir das quais emergem questões sobre os limites das comunidades linguísticas (speech communities) e até mesmo sobre o que integra a constituição de uma língua.

Dada a evidência do alastramento da presença do inglês na paisagem linguística um pouco por todo o mundo, destacando-se os nomes dos espaços comerciais, das marcas e das várias formas de publicidade de rua (Friedrich, 2002; Khosravizadeh & Sanjereh, 2011), importa perceber o que contém esta língua que a torna a opção mais frequente por parte das pessoas. Friedrich (2002) apresenta uma síntese que explica a que se deve posição única do inglês no contexto publicitário e empresarial (nomes dos negócios). Assim, o uso da língua inglesa relaciona-se com fatores como: simbolizar a modernidade; ser suficientemente compreensível; ter propriedades linguísticas que a tornam atraente, como, por exemplo, o tamanho das palavras; estar conotada como a cultura ocidental; fornecer material linguístico adicional que incentiva a criatividade linguística.