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Multipli-Cidade: a diversidade linguística e cultural urbana

aproximações ao espaço público da paisagem linguística

1.3 A globalização e a multipli-cidade: a paisagem de (des) encontros da/na diversidade linguística e cultural

1.2.2 Multipli-Cidade: a diversidade linguística e cultural urbana

In certain versions of city living, diversity is taken to be not only an urban fact but a principal urban value (Tonkiss, 2005, p. 89).

A globalização, como vimos atrás, é enunciadora da presença de algumas línguas no meio urbano, exercendo uma influência ambivalente que modela esta presença: se por um lado, eleva a presença de línguas pertencentes a poderes político-económicos superiores, como é o caso da língua inglesa, por outro contribui para atribuir outros e novos espaços a línguas provenientes de múltiplas realidades socioeconómicas que convergem para o espaço público urbano e que, talvez, de outra forma não estariam disponíveis, ou antes visíveis para a população. Para além de serem enunciadores da presença das línguas na cidade, os processos da globalização têm implicado e possibilitado um aumento da mobilidade e da migração, sobrelevando o carácter multilingue urbano, tornando-o mesmo o mais comum, assim como as possibilidades de contactar com as línguas e com a diversidade linguística e cultural (Hélot, Janssens, Barni & Bagna, 2012). A globalização ao intensificar o encontro da diversidade também é geradora de diferenciação da população, o que, na posição das Nações Unidas (UN-Habitat, 2004), contribui para a emergência de culturas urbanas polimórficas e diversas, o que pode enriquecer e fortalecer as cidades mas também pode constituir-se como uma fonte de divisão, criando bases para a exclusão. Quanto ao conceito de cultura urbana podemos dizer que engloba “ (…) material aspects such as the physical infrastructure, public spaces, buildings and other artefacts of the urban environment. It also consists of nonmaterial aspects, such as the values, attitudes, beliefs

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and lifestyles of urban residents” (UN-Habitat, 2004, p. 4). Destacamos, no discurso do relatório das Nações Unidas “The state of the world´s cities 2004/2005” (2004), a ênfase atribuída à cultura urbana não só como instrumento promotor do desenvolvimento económico mas também como um instrumento político nas sociedades plurais que concorre para dar forma às identidades culturais,

(…) with important implications for languages used and permitted in schools, the courts and official documentation, placing certain population groups in positions of privilege, while disadvantaging or excluding others. In this connection, the development of planning for multicultural cities that are inclusive of diverse populations takes on special significance (UN-Habitat, 2004, p.5).

A migração e a crescente mobilidade são dois impulsionadores e caracterizadores da diversidade linguística e cultural urbana, representando uma mudança e reconstrução do espaço onde ocorrem. Estamos no âmbito da ecologia social, nomeadamente nas consequências inerentes aos processos de segregação socioespacial e na criação de comunidades urbanas (étnicas, por exemplo) e do ordenamento do território, designadamente nas políticas de nobilitação ao nível residencial e na criação de zonas comerciais étnicas no setor do comércio, revelando a forma como a população imigrante tira partido das oportunidades económicas da cidade.

Lado a lado com a exploração das oportunidades económicas oferecidas pela cidade, surge o papel da cultura nos processos de globalização, nomeadamente nos processos particulares que ocorrem ao nível da gestão e (re)criação da diversidade cultural no espaço e paisagem urbana decorrente dos movimentos migratórios. A construção desta recriação não consiste numa transferência ou colagem de elementos culturais de um local para o outro. Com isto queremos dizer que na viagem que é realizada pelos grupos migrantes há toda uma reconfiguração cultural estimulada pelo novo espaço, também ele reconfigurado, que estes grupos ocupam (cf. Dailey-O´Cain & Liebscher, 2011). Assim, “ (…) cultures have multiple meanings not just across space, but also in particular places because of the social processes involved in their reconstitution” (Faulconbridge & Bearverstock, 2008, p. 339). Os processos de apropriação e de significação da cidade e seus espaços urbanos por parte da população imigrante étnica mas também por parte de outros tipos de migração, nomeadamente a migração interna e o turismo, são influenciados pelo ecletismo cultural, o que do ponto de vista da paisagem cultural urbana se pode descrever como um cenário

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composto por memórias e por vivências presentes, resultado de uma composição de diversos atores.

Na opinião de Fernandes (2009), as alterações introduzidas por estes fluxos migratórios relacionam-se com a necessidade de afirmação funcional, política e simbólica dos grupos minoritários, que está na origem da circulação de constituintes de identificação através de estruturas migratórias organizadas de que são exemplo as diásporas:

Estas definem-se por um centro difusor, origem a partir da qual divergem as correntes migratórias, e por vértices de acolhimento e recepção desses fluxos. Estes dispersam-se por espaços geográficos descontínuos que, apesar da sua diversidade em dimensão e natureza, se posicionam sobretudo em espaços urbanos. Por esta estrutura migratória - um forte instrumento de difusão espacial, circulam pessoas e diversas formas de capital, mas também elementos culturais de identificação como a língua, a religião e outros factores de filiação, como a gastronomia e a música (p. 205).

A procura de um contexto que possibilite o acesso a melhores condições para o desenvolvimento económico tem sido um dos motivos primários para a explicação da migração para as cidades de países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A cidade, ao conter na grande maioria das vezes uma maior e melhor oferta laboral, continua a ser um atrativo para milhões de pessoas de todo o mundo. Dados relativos à migração internacional, com destino a áreas urbanas, revelam mesmo que esta é uma tendência que tem vindo a crescer. De acordo com a UN-Habitat, em 1990 existiam 154 milhões de migrantes internacionais, número que aumenta em 2004 para os 175 milhões, incluindo refugiados mas sem contabilizar os migrantes clandestinos; em 2013 o número passa para 232 milhões, valor que representa 3,2% da população mundial (UN-Habitat, 2004; http://esa.un.org/unmigration/wallchart2013.htm).

Na sua alusão à cidade, Louis Wirth (1938) diz-nos que “It has not only tolerated but rewarded individual differences. It has brought together people from the ends of the earth because they are different and thus useful to one another, rather than because they are homogeneous and like-minded.” (p.10) Esta visão de Wirth está inserida na lógica da Escola de Chicago, fundadora da sociologia urbana no século XX, sobre a divisão espacial e diferenças sociais, representando uma visão sobre a divisão do trabalho nas sociedades modernas que possibilitava o mapeamento das diferenças sociais através de divisões funcionais do espaço urbano, e que, segundo Wirth, era permitida e promovida pela vida urbana (Wirth, 1938; Tonkiss, 2005). Destacamos no trabalho de Wirth a referência à

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diversidade social e também à diversidade cultural existentes na cidade, percebidas como uma mais-valia criadora de interdependências (económicas) resultantes da diferenciação de funções e que, por sua vez, originam padrões de segregação espacial na cidade, de que são exemplo os guetos e as Chinatowns. Importa esclarecer que a segregação espacial não resulta apenas de uma ´triagem´ socioeconómica ou de uma imposição (legal). Como esclarece Wirth (1928), existe uma segregação voluntária e o gueto20 “is not so much a physical fact as it is a state of mind” (p. 287). Assim, a segregação espacial pode estar relacionada não apenas com o espaço físico da cidade mas também com espaços imateriais, como os afetos e identidade sociocultural. Esta ideia da criação de uma distância afetiva entre diferentes grupos dentro da cidade reforçada pela segregação espacial tem origem no pensamento de Robert Park (1967), sendo teorizada como uma opção defensiva ou de reforço e/ou manutenção de práticas culturais e de laços económicos e sociais (Tonkiss, 2005).

As cidades apresentam-se, então, como espaços de crescente superdiversidade (Vertovec, 2007; Blommaert & Rampton, 2011) que é visível, num expoente máximo, através da formação de bairros étnicos, como exemplo a Chinatown de Nova Ioque, a Chinatown no distito de Soho,a Bayswater (onde reside a maior comunidade de brasileiros em Londres, mas também comunidades árabes, gregas e americanas), a Edgware (ou a Londres árabe, onde o Médio Oriente tem uma forte presença), a Brick Lane, todas elas em Londres. A globalização, novamente, tem vindo a mudar a configuração destes bairros, desde a sua localização dentro do perímetro urbano até, e em estreita relação, ao tipo de atividades socioeconómicas que caracterizam a população que lá habita. Estas alterações conduzem à formação do que Li Wei intitulou etnobúrbios (ethnoburbs), lugares distintos dos subúrbios. Este conceito surge em 1997 no Symposium on Cultural Approaches in

Geography, com a comunicação de Li intitulada Ethnoburb versus Chinatown: two types of urban ethnic communities in Los Angeles. Na sua proposta, Li Wei justifica a

necessidade de um novo aporte conceptual aos locais onde vivem as populações, o etnobúrbio. O conceito surge devido à influência da geopolítica internacional e da reestruturação económica global, devido também às alterações às políticas nacionais de

20 O termo «gueto» surge em Veneza, na Itália do século XVI, quando os judeus foram forçados a viver no

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imigração e de comércio, e aos contextos políticos, económicos e demográficos locais que propiciam a emergência de um novo tipo de concentração étnica suburbana. O autor explica que os etnobúrbios não são o resultado de uma segregação forçada como os guetos, constituindo antes “ (…) a voluntary relative concentration of ethnic people to maximize ethnic personal and social network, as well as business connections; and to have a place with familiar language and culture” (Li Wei, 1997, parágrafo 8). A proposta conceptual em torno dos etnobúrbios descreve-os como lugares onde residem comunidades multiétnicas nas quais um grupo minoritário étnico tem uma concentração significativa (o que não significa que compreende a maioria), sendo este grupo que cria deliberadamente o etnobúrbio. Paralelamente, os etnobúrbios coexistem com os tradicionais guetos e enclaves étnicos nos interiores das cidades contemporâneas da sociedade americana, privilegiando os subúrbios das principais áreas metropolitanas para aí se estabelecerem. Li Wei refere ainda que este tipo de aglomerado é criado por pessoas de outras etnias, incluindo novos imigrantes e gerações anteriores, funcionando autonomamente e tendo mesmo as suas próprias estruturas internas socioeconómicas integradas no ambiente nacional e internacional, o que é revelador da continuidade da sua expansão socioeconómica e difusão espacial depois da sua formação.

A emergência dos etnobúrbios, remetendo para um novo quadro conceptual que explica um tipo de aglomerado populacional contemporâneo e que se caracteriza pela sua multietnicidade, é reveladora também de diferenças ao nível do uso das línguas no espaço público urbano, e relaciona-se, por isso, com o aparecimento de um outro conceito, o de

superdiversidade. A um determinado momento Li Wei refere inclusivamente que as

diferenças entre as duas comunidades que estudou em Los Angeles, Chinatown e Monterey Park, dizem respeito à proveniência dos habitantes, ao tipo de empregos que têm, ao tempo de permanência no país de acolhimento, à classe socioeconómica a que pertencem e às línguas que falam, assumindo que, do ponto de vista pessoal, se sentia alienado em Chinatown devido a dificuldades linguísticas uma vez que não compreendia nem falava o cantonês, sentindo-se mais confortável na área de Monterey Park onde o mandarim é falado frequentemente.

Os etnobúrbios descritos por Li Wei acabam por constituir formas de organização demográfica perante contextos de superdiversidade, também amplamente influenciados pelos processos de globalização.

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A superdiversidade é caracterizada por um aumento significativo do tipo de migração que difere não apenas quanto à nacionalidade, etnia, língua e religião, como também em relação às causas que a movem e aos seus padrões, aos processos de inserção no mercado de trabalho e de residência nas sociedades de acolhimento (Vertovec citado por Blommaert & Rampton, 2011). Existe, portanto, toda uma conjuntura que torna os contextos urbanos verdadeiros epicentros de uma variada multiplicidade. Não é redundante descrever-se desta forma a realidade urbana uma vez que esta multiplicidade apresenta não só variadas dimensões, tais como, a demográfica, cultural, económica, etc., como também estas dimensões apresentam características também elas muito pouco homogéneas e cujo contacto entre os seus constituintes esbate fronteiras. Conclui-se que o estudo das línguas, dos grupos linguísticos e da comunicação no lugar de se relacionar com contextos de homogeneidade, estabilidade e delimitações, estão agora forte e crescentemente associados a conceitos como a mobilidade, mixing, dinâmica política e contextualização histórica (Blommaert & Rampton, 2011). No próximo ponto retrataremos o lugar das línguas como parte fundamental dos processos de globalização, destacando aspetos como o papel de língua globalizada e globalizadora, as práticas discursivas ligadas às práticas sociais, a comodificação das línguas e da linguagem, a primazia da língua inglesa e as perspetivas relativas ao futuro da diversidade linguística.