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aproximações ao espaço público da paisagem linguística

Capítulo 2 – A paisagem linguística

2.2.3 Caracterização e expansão dos linguistic landscape studies

2.2.3.2 Dimensões da paisagem linguística

No início deste ponto foi indicado um conjunto de dimensões da paisagem linguística que resultam da articulação do estudo da cidade com os enfoques atribuídos à investigação da paisagem linguística: a dimensão espaço-material, a dimensão linguística, dimensão

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histórica, a dimensão política, a dimensão económica, a dimensão sociocultural e também a dimensão educativa, representadas na figura 1. Estas dimensões podem ser analisadas separada ou conjuntamente. O tracejado que rodeia cada dimensão representa o facto de que estas dimensões não são estanques nem existem isoladamente. Pelo contrário, é impossível separá-las dos contextos complexos, instáveis e dinâmicos, onde ocorrem e dos múltiplos fatores que contribuem para o desenho e estruturação da paisagem linguística. Assim, as características e implicações de uma dimensão acabam por intersectar sempre outras dimensões. Estão, portanto, imbricadas e são permeáveis à influência de uma(s) noutra(s), exercendo, contudo, papéis distintos na paisagem linguística.

Figura 1: Dimensões da paisagem linguística

A dimensão espaço-material, repetimos, pertence à cidade material, composta pelas ruas, pelos muros, pelas praças e avenidas, pelos edifícios e residências, e por outros espaços e infraestruturas físicas onde as produções da paisagem linguística são criadas. Esta dimensão é uma herança da semiótica social ou material, diz respeito à língua no mundo

material, utilizando a expressão de Scollon e Scollon (2003), dimensão amplamente

influenciada pelo trabalho pioneiro destes últimos investigadores e pelos estudos da comunicação visual de Kress & van Leeuwen (2006). A tendência de deixar os materiais

falarem por eles próprios (Kress & van Leeuwen, 2006), isto é, de ver os materiais como PAISAGEM LINGUÍSTICA Dimensão histórica Dimensão económica Dimensão política Dimensão educativa Dimensão linguística Dimensão espaço- material Dimensão sociocultural

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veículos de significados, nasce do mundo das artes, designadamente da pintura, da escultura e da fotografia. Como já referimos atrás a propósito dos materiais onde se inscrevem os itens da paisagem linguística, a escolha por um material é uma parte importante na criação de significados para além do texto verbal ou de uma imagem produzida. Kress e van Leeuwen (2006) explicam esta aceção do seguinte modo:

It is no accident that the statues erected to commemorate heroic figures are made of durable materials, or that tombstones are still carved: the durability of the materials makes them usable signifiers for the meanings of permanent feelings we intend to produce (p. 225).

Assim, a materialidade diz respeito a uma produção material que envolve recursos semióticos de superfície, substância e instrumentos de produção que se interrelacionam, acrescendo o princípio de que “Each has its own semiotic effects, and in their interaction they produce complex effects of meaning” (Kress & van Leeuwen, 2006, p. 225). Integrada nesta dimensão dos estudos da paisagem linguística está, conjuntamente, a componente espacial que se divide no espaço físico onde as produções são realizadas e no espaço social que as influencia, que lhes dá significado social e semiótico e de onde resultam relações esperadas entre as produções e os espaços (cf.Blommaert & Huang, 2009; 2010; Scollon & Scollon, 2003). Este último aspeto, permite-nos desenvolver a análise no sentido normativo do espaço, ou seja, da existência expectável de alguns signos em determinados locais, algo que quando não se verifica, ou seja, quando há uma transgressão na colocação de um signo num espaço que não é esperado, gera outros significados (Scollon & Scollon, 2003; Blommaert & Huang, 2009; 2010). É o caso dos menus cuja presença é expectável na frente de um restaurante ou de painéis publicitários em zonas comerciais, e, do ponto de vista da transgressão, o caso das tags ou determinado tipo de graffiti nos muros de edifícios residenciais habitados. Note-se que o graffiti é associado à transgressão, como algo que está “fora do sítio” (Blommaert & Huang, 2009) pese embora uma emergente mudança no modo e intenção da sua produção e na sua interpretação como forma de arte urbana, sendo utilizado de forma consentida em locais da cidade como forma de a redecorar ou modernizar (ver, como exemplo, o projeto da Travessa do Tenente Rezende e a pintura da escadaria no Cais da Fonte Nova, em Aveiro) e até mesmo a sua adaptação da rua para as galerias, como é o caso da exposição de André Saraiva, inaugurada em 2014 no Museu de Design e Moda (Lisboa).

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Sublinhe-se ainda que a tematização e análise da componente do espaço é uma mais-valia de relevo na sociolinguística contemporânea e que é trazida pelos estudos da paisagem linguística com cariz etnográfico35 através da valorização da localização específica dos fenómenos sociais e semióticos (Blommaert & Huang, 2010; Blommaert, 2012). Deste modo, e para proceder à análise da complexidade da atividade humana, caminha-se para o que Blommaert (2012) designa por a high-octane variety of linguistic landscapes.

A abordagem etnográfica do espaço integra-se num eixo maior, o eixo geográfico, do qual faz parte a dimensão sociocultural e a económica. Relativamente à dimensão

sociocultural, esta integra os aspetos demográficos, como por exemplo, os movimentos

migratórios, o fenómeno da urbanização e também a organização espacial das cidades, nomeadamente através dos processos de gentrificação. Como vimos antes, é a dimensão que diz respeito à cdade onde existem desigualdades económicas e de género, onde ocorrem os movimentos sociais, os protestos e motins, a segregação, ou seja, a cidade do espaço público e da vida quotidiana. Esta dimensão está em estreita articulação com a

dimensão económica onde se incluem aspetos como a influência do poder, estratégias e

condicionantes económicas, de lógicas de mercado e de marketing na definição quer das opções governamentais, quer das opções do cidadão comum. É a vertente da cidade

económica cuja paisagem linguística reflete questões como a divisão do trabalho, a escala,

a produção e consumo, o comércio e a comodificação da cultura.

Resta ainda a componente cultural que a paisagem linguística deixa perceber através das culturas e tradições próprias de um grupo social, das artes e dos espetáculos, dos símbolos, da estética e da religião.

Quanto à dimensão política, esta encontra-se relacionada com as políticas linguísticas de um determinado local e com o planeamento linguístico que daí advém, sobretudo, ao nível da relação top-down e bottom-up, transformando as produções da paisagem linguística em verdadeiros objetos políticos (Blommaert & Huang, 2010) mas também em objetos politizados, ambos ao serviço do poder. Esta dimensão relaciona-se com uma das

35 A expansão teórica e metodológica que a proposta etnográfica de Blommaert (2012) traz é extremamente

relevante uma vez que permite dirigir os estudos em paisagem linguística no sentido da compreensão da complexidade das suas estruturas, propondo a descrição de forma detalhada e sincrónica de bairros, das pessoas que lá vivem e da forma como se organizam. A demografia e presença social é orientada nesta proposta por questões como: quem vive ali?, que formas de organização se observam?, de que forma se organizam?, que vestígios de mudança ou transformação se detetam?

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principais funções das produções da paisagem linguística no espaço público: a função demarcadora de espaços e de audiências (Blommaert & Huang, 2010).

A dimensão histórica da paisagem linguística envolve os múltiplos layers, as camadas sobrepostas de textos no espaço público, sua visibilidade e evolução ao longo do tempo. Gorter (2006c) considera que a dimensão histórica da paisagem linguística ainda não foi explorada em profundidade, sendo uma perspetiva analítica em aberto. Contemporâneos desta constatação, destacam-se os contributos de Huebner (2006) e de Backhaus (2007). Backhaus (2007) utiliza a expressão “layering” para se referir à perspetiva histórica que a análise da paisagem linguística pode assumir e que permitem contar a história da cidade do ponto de vista dos diferentes estados da presença das línguas ao longo de um período específico de tempo. Sobre a coexistência abundante de diferentes signos36 no espaço público, Blommaert e Huang (2010) esclarecem que esta realidade não reflete um padrão caótico e desordenado “but reflects a form of order which begs investigation” (p. 11), o que nos recorda a discussão sobre a paisagem linguística como um campo entre caos e a

gestalt. Assim, as produções podem estar cruzadas, sobrepostas e ser contraditórias e

conflituantes, formas de presença que derivam ou da interação de diferentes ordens sociais que competem pela pertença/propriedade de um lugar e/ou contestam as produções dos outros, como acontece com as tags, graffiti ou cartazes e autocolantes, ou da “historical

layering of signs” onde as produções mais recentes alteram ou apagam as mais antigas

(Blommaert & Huang, 2010, p. 11).

Huebner (2006), por sua vez, explica que a perspetiva diacrónica, ao considerar a evolução ao longo do tempo dos padrões de utilização das línguas em bairros novos e bairros antigos, fornece um retrato longitudinal dos padrões de mudança na utilização das línguas. No caso do estudo de Banguecoque, o autor verificou que existiu uma alteração ao longo do tempo do chinês para o inglês como língua de comunicação da cidade. Huebner (2006) insere esta questão da perspetiva histórica dentro de uma categoria mais ampla a que designou dimensão sociocultural.

Para além destas dimensões, Huebner (2006) aponta ainda a dimensão linguística na qual inclui a identificação de casos monolingues e multilingues, constatando que os últimos são marcados por formas de language mixing decorrentes do contacto linguístico (por

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exemplo, um elemento da paisagem linguística pode estar redigido na escrita tailandesa mas as palavras e/ou a sintaxe estarem em inglês). A dimensão linguística acaba por ser a primeira dimensão dos estudos em paisagem linguística, ocupando-se da identificação e contabilização das línguas num determinado local, e descrevendo aspetos relacionados com a gramática, o léxico e/ou a sintaxe.

Por fim, a dimensão educativa da paisagem linguística que oferece múltiplas possibilidades de aprendizagem da leitura do espaço geográfico urbano e da escrita do quotidiano, dos seus habitantes, da história, dos costumes, línguas e tradições, enfoques educativos que constituem oportunidades contextualizadas geográfica e socialmente para o desenvolvimento de competências em várias áreas curriculares, desde a aprendizagem de e

sobre línguas, à geografia, cidadania, ciências naturais e matemática.

Em síntese, o estudo da paisagem linguística proporciona dados importantes relativamente à situação sociolinguística de um ou vários locais, fornecendo uma imagem sobre o comportamento linguístico da população, isto é, elucida sobre os padrões de utilização da(s) língua(s) e dos sistemas de escrita, sobre a implementação de políticas linguísticas atuando como um mecanismo destas (Shohamy, 2006), sobre as atitudes linguísticas prevalentes numa determinada comunidade, sobre as relações de poder entre grupos linguísticos distintos e entre os membros de uma comunidade no geral, provendo um panorama da gestão e consequências do contacto linguístico urbano, incluindo situações de conflito e de mudança social (Backhaus, 2007; Gorter, 2012; Hélot et al., 2012; Nelde citado por Marten, Van Mensel & Gorter, 2012; Van Mensel & Darquennes, 2012). Para além destes aspetos, a paisagem linguística oferece um retrato complexo e multimodal de outras formas de comunicação que coexistem com as línguas, espelhando a diversidade das interações humanas no espaço público e contribuindo para a construção de espaços sociais e geográficos no interior das cidades.

A investigação tem, pois, vindo a tratar a paisagem linguística como um processo e/ou um resultado da existência de multilinguismo no espaço público, dependente de diferentes interesses, e como uma metodologia da sociolinguística para analisar a presença das línguas na sociedade (Cenoz & Gorter, 2006; Hult, 2009; Huebner, 2009).

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