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4 1 3 Assentamentos estavéis Kadiwéu

No documento subsistência e cultura material (páginas 129-140)

As informações pertinentes ao padrão de assentamento Kadiwéu, da antiga tribo dos Cadiguegodis, referem-se à última década do século XIX, produzidas por Boggiani (1975 e 1929) e Rivasseau (1936). Estes são os últimos e atuais remanescentes das tribos Mbayá-Guaicurú.

A área habitada pelos Kadiwéu no século XIX, na margem oriental do rio Paraguai, encontra-se entre os rios Nabileque, Niutaque e a Serra da Bodoquena, no sul do atual estado brasileiro do Mato Grosso do Sul.

O viajante e etnógrafo Boggiani esteve entre a tribo dos Kadiwéu por duas vezes: uma em 1892 e outra em 1897. Quando empreendeu a primeira expedição visitou três aldeias dos Kadiwéu: a do Morrinho do Capitão Nauwilo, a de Nabileque e a de Etóquija. Tratava-se de aldeias mais sedentárias. Os Kadiwéu naquela época eram semi- sedentários, possuíam uma agricultura rudimentar e criavam alguns animais. Continuavam a caçar, a pescar e coletar produtos silvestres para completar a sua subsistência.

Boggiani (1975, p. 86) descreveu a aldeia Morrinho do Capitão Nauwilo, que estava localizada às margens do rio Nabileque, da seguinte forma:

... era formada por uma fila de cabanas unidas uma à outra como uma só grande cabana aberta para o rio e coberta por um teto com duas calhas para as chuvas, feito em parte de folhas de palmeira e em parte de palha.

Outra cabana, um pouco afastada, mais à direita, menor e mais bem construída, era a habitação do capitão Nauwilo e da sua augusta família. Na ponta dum alto mastro se viam as insígnias do grande homem: um galo branco muito bem feito.

A aldeia de Nalique, conforme Boggiani (op. cit., p. 110-112) estava situada ao pé de uma série de colinas, sendo composta:

... duma longa fila ligeiramente curva de cabanas, ou, para melhor dizer, de vastos telhados de palha com dupla vertente unidas uma a outra sem ser muito iguais na altura, de modo a formar um longo corredor de que a parte que está sob a vertente anterior, a qual é um pouco mais estreita que a posterior, é livre e forma uma passagem coberta debaixo da qual se pode transitar ao abrigo do sol e da chuva, de uma a outra extremidade da tolderia.

Figura 16: Esboço em aquarela da aldeia do Capitão Nauwilo à margem do rio Nabileque

(Fonte: Boggiani, 1975).

A casa do Capitão de Nalique, segundo Boggiani (op. cit., p. 113):

... está situada no centro da fileira e é mais alta e mais vasta do que as outras. Além disso tem na parte posterior uma parede de troncos mal justados que abrigam muito bem dos aguaceiros oblíquos e das correntes de ar muito violentas.

A disposição das casas numa longa fila ligeiramente curva mencionada pelo autor poderia ser entendida como um semicírculo aberto nas pontas, registrado também por Labrador (1910) e Castelnau (1949).

Figura 17: Esboço em aquarela da aldeia de Nalique. Esplanada diante das casas (Fonte:

Boggiani, 1975).

A aldeia de Etóquija, “cerca de uma légua [5 a 6 quilômetros] ao sul de Nalique, é composta de uma única cabana grande não muito bem conservada, sob a qual vivem quatro ou cinco famílias” (Boggiani, op. cit., p. 180). Segundo o autor (ibid., p. 196) veio

a saber, a aldeia de Etóquija “é uma espécie de domicílio obrigatório, no qual são relegados aqueles da tribo que demonstram ter caráter perigoso”.

Além da aldeia, que era o núcleo residencial principal, também possuíam alguns acampamentos temporários. Boggiani (op. cit., p. 179) encontrou em março de 1892 dez mulheres de Nalique e seus filhos acampados em uma pequena cabana improvisada com teto de folhas de etchate ainda verdes. Haviam construído essa cabana provisória com o intuito de estarem vizinhas ao bosque em que abundavam os frutos de etchate ou acuri (Scheelea phalerata) e namocolli ou boacaiúva (Acrocomia aculeata).

Em julho de 1897, quando Boggiani (1929, p. 525) navegava no rio Nabileque, registrou um acampamento provisório numa das ilhas de bosques do rio, quando a inundação do rio era expressiva. Parte dos membros da aldeia de Nalique encontravam-se ali acampados aproveitando a época das grandes caçadas de veado. Tratava-se da ocupação regional de aterros em áreas inundáveis.

Em várias dessas ilhas de bosques do riacho Aléccan-Ayáccol e do rio Nabileque, nos aterros, Boggiani (1929, p. 6) realizou observações arqueológicas. Descreveu um dos sítios explorados no riacho navegado:

No sé cómo me vino la luminosa idea de cavar un poco el suelo una vez que ví en la superficie una catidad de conchas de caracol. Pronto encontré, mezcladas com numerosas conchas, una cantidad de labores en tierra cocida [cerâmica] interesantísimas. Era evidente que esa pequeña elevación había servido durante largo tiempo de residencia a los indígenas que debían de tener algunos puntos de contacto con las costumbres de los que habitaban Puerto 14 de Mayo. Estos son de factura bastante más grosera y no me fué posible descubrir signos de pintura, aunque es verisímil que la tuvieran de color rojo, negro y blanco, como todos los vasos de esta región.

Un examen más detenido me dará ocasión de encontrar algunas huellas. Mientras tanto, he podido observar iguales procedimientos de modelado de la arcilla e igual ornamentación a impresión a cuerda sobre arcilla fresca, aunque ésta es bastante más grosera que de costumbre. Encontré también fragmentos de hueso que me parecieron humanos y que habian sido quemados. Descubiertas las primeras labores, he seguido las investigaciones

en otros puntos del terreno y en todas partes encontré algo junto con conchas de caracol y huesos.

O autor (1898, p. 6) em outro artigo, entende que as ilhas de bosques como chamou se tratava de ...

... antiguos paraderos de indios, evidentemente menos adelantados en sus industrias que los modernos Caduveos, y he recogido unos cuantos pedazos de terrallas bastante toscas, pero de evidente parentezco com la de los Caduveos. Terrallas semejantes he encontrado también en Puerto 14 de Mayo y en Corumbá, siendo la de 14 de Mayo más bien labrada y al parecer más moderna.

Boggiani (op. cit., p. 5) caracterizou o ambiente que propiciava a formação dessas ilhas de bosques, os aterros à beira do rio Nabileque que poderiam ser ocupados quando o nível das águas subia e inundava a região:

La costa izquierda del Nabiléque limita más altas, que las inundaciones no alcanzan á cubrir sino en muy pequeñas localidades. Son generalmente campos de enorme extensión, abiertos y sin árboles, menos á lo largo de los cursos de los ríos, á orillas de los cuales se levantan pequeñas elevaciones de terrenos cubiertos de exuberante vegetación muy variada, cuyo nivel sobresale de las regiones circunstantes de unos tres á cinco metros poco más ó menos, y parecen islas de un archipiélago en un mar de verdura. Y como no existen sino á orillas de los cursos de agua, desde muy lejos se puede distinguir la existencia y la dirección de estas aguas, formando una hilera de pequeños bosques que se juntan y se pierden azulados en el horizonte.

Esta elevaciones boscosas se encuentran casi siempre situadas en la parte exterior de las curvas de los ríos, donde la corriente es más fuerte y donde han ido á parar amontonándose los grandes camalotes y troncos y otros detritus arrastrados por el agua en tiempo de inundación.

No espaço físico da aldeia de Nalique, além das casas, agregam-se outras áreas que Boggiani (1975, p. 112) descreveu:

Na frente das cabanas os Caduveo limparam o terreno de todas as ervas ou arbustos num espaço de trinta ou quarenta metros, formando assim, uma pracinha bastante cômoda que se estende por todo o comprimento da tolderia.

Por trás das cabanas o terreno é conservado com menos cuidado e é utilizado nos trabalhos domésticos de cada família, para amarrar as cavalgaduras, estender os couros ao sol, cozinhar, etc.

Ultrapassando o terreiro o terreno baixa subitamente, formando uma bacia que acaba num charco, o qual recebe o escoamento de várias nascentes de água que gorgolejando sai do solo a meia encosta, justamente defronte das cabanas.

Os Caduveos escavaram pequenos reservatórios nos quais a água se recolhe limpa antes de descer à planície, e neles fazem as suas freqüentes abluções homens, mulheres e crianças, com as roupas mais simples, (...).

Esta citação permite observar alguns itens importantes na organização do espaço da aldeia Kadiwéu. A aldeia era constituída de um espaço limpo em frente das casas, a praça da aldeia conforme figura 17. Este espaço era utilizado coletivamente para atividades sociais, como festas, jogos, cerimônias e lutas.

Outra informação é a utilização do terreno dos fundos, contíguo às casas para realizar as tarefas domésticas e outras atividades. Entre as atividades mencionadas, é referido o ato de cozinhar, que entende-se como a preparação e transformação dos alimentos através da ação do calor do fogo. Neste caso, o lugar em que cozinhavam revela onde se localizava a fogueira.

O viajante italiano mencionou a existência de uma engenhoca (moenda) para a extração de caldo de cana-de-açúcar e de uma caldeira para a condensação do caldo de cana. Essas foram obtidas, provavelmente, junto a sociedade nacional. A engenhoca encontrava-se ainda na aldeia que havia sido abandonada, mas seria transportada para a nova residência. Mesmo estando fora da aldeia atual, era utilizada pelos Kadiwéu da aldeia de Nalique.

Quando os Kadiwéu utilizaram a moenda para espremer a cana-de-açúcar, com a finalidade de extrair o suco para fabricar dois garrafões de melado para Boggiani, este registrou o seu funcionamento:

Na operação intervém toda a família do Capitãozinho e mais algum amigo, como a uma festa campestre.

E enquanto giravam pesadamente os bois em torno do edificio de traves do engenho, obra de Antônio Alves, e os presentes se afanavam em espremer a cana de açúcar, eu me pus a aquarelar debaixo de um sol cada vez mais ardente.

O caldo fluiu abundante e dulcíssimo, e recolhido primeiro em grandes terrinas postas debaixo do engenho, foi depois derramado em dez garrafões dos quais se separarão as duas de melado a mim destinadas, se tanto se obtiver. (Boggiani, 1975, p. 211)

Figura 18: Aquarela do engenho para extração de caldo de cana-de-açúcar (Fonte:

O tacho para a transformação do caldo de cana-de-açúcar em melado era de cobre. Boggiani (loc. cit.) acredita que havia sido adquirido através de compra ou troca de couros de cervos em Corumbá. Podia conter cerca de cento e cinqüenta litros de líquido.

Figura 19: Aquarela do tacho para condensação do caldo de cana (Fonte: Boggiani,

1975).

Conforme Boggiani (op. cit., p. 211-12):

Num trecho de terra bem batida foi enterrada esta caldeira quase até a orla e depois lhe escavaram debaixo uma espécie de forno para o fogo.

O caldo de cana obtido pela manhã foi posto a ferver e, como a operação devia durar muitas horas e ser continuamente fiscalizada para que não faltasse o fogo e o xarope não passasse do cozimento, lá se puseram alternativamente de guarda várias pessoas práticas no mister.

O etnográfo francês Rivasseau (1936) visitou duas aldeias dos Kadiwéu: Tuyuyú e Aldeia Grande, entre fins do século XIX e início do XX. O autor fez uma descrição da aldeia do Tuyuyú:

Para descrever em que consistia a Aldeia do Tuyuyú, não levarei muito tempo. Tal descrição, forçosamente tem de ser curta e resumida como o era a própria aldeia, vista no seu conjunto.

Em primeiro lugar, a aldeia se reduzia ao que chamei o rancho de Joãosinho e, a uma dezena de metros dela, há um outro rancho, um ranchão, quatro a cinco vezes maior, um verdadeiro phalansterio.

Havia ainda mais dois outros ranchos muito pequenos, espécie de paióis. Era tudo !

Estas construções muito rústicas, não ofereciam diferenças sensíveis com as que fazem os próprios brasileiros nos campos. (ibid., p. 76)

Rivasseau (op. cit., p. 78) observou que a aldeia do Tuyuyú era composta somente por duas casas, uma a do capitão Joãozinho com cinco metros de comprimento por seis metros de largura; outra de tamanho bem maior que tinha uns 20 metros por 6,5 metros. Nestas duas casas se alojavam todos os habitantes da aldeia. Os outros dois ranchos menores, citados anteriormente segundo o próprio autor, estavam desocupados, não tendo sido verificado o seu uso.

O etnográfo francês (ibid., p. 138) menciona que a aldeia do Tuyuyú:

... se achava à beira de um brejo que era a cabeceira, ou melhor uma das cabeceiras, a mais alta do corrixo ‘Tuyuyú’; isto é, uma das nascentes onde principiava.

A água, em muito pequena quantidade corria entre altas ervas do brejo, e só podia apanhar-se em buracos feitos mais perto possível da parte firme do chão, o mais próximo dos ranchos, e em lugar limpo.

A aldeia do Tuyuyú, assim como a aldeia de Nalique registrada por Boggiani (1975, p. 112), localizavam-se próximas de nascentes ou vertentes de água, locais onde o grupo se abastecia de água.

Quando Rivasseau (1936, p. 111) realizou uma caçada com os Kadiwéu, passou por uma roça do grupo, conhecida como a roça grande, que ficava a quase seis quilômetros da aldeia do Tuyuyú. Relatou que ali “havia um rancho para abrigo, em caso de mau tempo e para pouso, à noite, na época de plantar ou de fazer a colheita; muitas mulheres e crianças iam lá para ajudar a tomar parte nestes trabalhos”.

Figura 20: Vista parcial da aldeia do Tuyuyú (Fonte: Rivasseau, 1936).

Com base nas informações de Boggiani (1975 [1892] e 1929 [1897]) e Rivasseau (1936), quanto à forma do assentamento dos Kadiwéu, pode-se concluir que se trata de outro modelo de ocupação do espaço, distinto daquele referido para os Guetiadeo e dos assentamentos migratórios chaquenhos dos Mbayá-Guaicurú.

A forma de assentamento Kadiwéu em fins do século XIX consistia em aldeias semi-sedentárias, com a ocupação paralela de acampamentos temporários, conforme as necessidades subsistenciais dos mesmos. Estes acampamentos temporários eram ocupados em determinados períodos do ano, especialmente na época das caçadas de veados, no período da colheita de frutos maduros e também nos casos em que a roça ficava distante da aldeia, servindo para o pouso nos períodos que exigiam maior dedicação nas atividades agrícolas, tais como a preparação do solo, semeadura e colheita.

Os locais em que estavam assentadas as aldeias Kadiwéu, com exceção de Morrinho, à margem do rio Nabileque, eram áreas protegidas de inundações, fora do Pantanal. Geralmente, estavam localizadas em encostas de morros e serras e próximas a fontes de água, como pequenas vertentes. Os acampamentos temporários, à beira do rio Nabileque, eram feitos sobre locais seguros, que possuíam elevações naturais do terreno ou aterros arqueológicos, que formavam ilhas de bosques.

Os assentamentos Kadiwéu diferiam da tribo dos Guetiadeo devido à estabilidade das aldeias e das habitações, que chegavam a ser ocupadas por vários anos. Os Kadiwéu não migravam atrás de alimentos e pastagens para os animais, como aqueles realizavam sazonalmente. Determinado número de indivíduos da aldeia realizava pequenas viagens para caçar animais ou então coletar frutas, mel, raízes ou palmitos, entre outros mais, a fim de abastecer a aldeia.

No documento subsistência e cultura material (páginas 129-140)