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A Associação do Quilombo Kalunga (AQK), chamada de Associação Mãe, é a entidade representativa de todo o território quilombola, composta por presidente, vice-presidente, secretário, tesoureiro e conselho dos mais velhos. Os cargos são preenchidos de forma paritária buscando uma representatividade dos três municípios. Estes, por sua vez, possuem associações próprias com relativa autonomia, à exceção de decisões que afetem o quilombo como um todo, casos estes subsidiados à decisão da AQK. A nova composição do associativismo local foi pensando para dinamizar o processo participativo:

A associação é uma ferramenta de trabalho da comunidade. A gente achou por bem fazer dessa maneira, a mãe, as municipais e comunitárias por que fica mais fácil de trabalhar, agrega mais pessoas pra tocar o barco pra frente, tendo mais gente participando, não da aquela imagem ruim, né, a gente faz questão de engrupar todos, pra saber o que tá passando, tem que tá dentro. Val, Kalunga de Teresina de Goiás.

No intervalo de oito anos até a assinatura do Decreto 4887 que regulamenta o artigo 68, as principais lideranças Kalungas tomam a dianteira do processo de organização comunitária, afirmação da territorialidade Kalunga e participação política:

Associação do Quilombo Kalunga AQK Associação Kalunga de Cavalcante Associação Kalunga de Teresina de Goiás Associação Kalunga de Monte Alegre Associação Comunitária do Vão do Muleque Associação de Guias do Quilombo Kalunga

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Mal das comunidades se não é as lideranças mesmo que pega no chifre do boi, com garra mesmo pra ir atrás, porque senão, se depender dos políticos, a comunidade volta à estaca zero. Na base da educação e da saúde, a gente tem que tá implorando. Pra isso foi incentivado pra gente criar a associação pra gente ter mais força pra pedir as coisas, reivindicar não só na prefeitura, mas nos ministérios. E reivindicar não só pela terra, mas pelas políticas públicas, né, estrada, saúde, educação, transporte, energia, encanação de água, tudo que tá faltando. É um jogo de cintura arrochado, mas tá indo. Cesariano, Kalunga do Engenho II.

São subseqüentes o envolvimento em discussões acerca das políticas de identidade, pelas quais, são garantidos direitos de cidadania diferenciados para populações étnicamente diferenciadas (Oliveira, 2006).

Em 2002, a Fundação Cultural Palmares emite o certificado de reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombo, utilizando-se do laudo antropológico realizado para a criação do Sítio Histórico e, a partir de 2003, com o advento do decreto 4887, se intensifica a ação política das lideranças. Comitivas são organizadas à Fundação Cultural Palmares e à Administração Regional 38 do INCRA, responsável pelo procedimento de regularização fundiária dos territórios quilombolas do Distrito Federal e entorno. Os representantes da AQK pressionam às autoridades competentes dos referidos órgãos quanto à continuidade do processo de titulação do quilombo, uma demanda considerada emergencial diante das tensões vividas protagonizadas pelos proprietários de terras contrários à anunciada titulação.

Por outra via, a mobilização política das lideranças - centrando a cultura e a territorialidade Kalunga nos seus discursos e articulações – findam por ganhar voz na arena política local. Esse momento é caracterizado pela reconfiguração das relações políticas com o poder local, uma relação historicamente espinhosa, permeada por conflitos, negligências e desrespeitos. A presença das comunidades Kalungas passa de estorvo à trunfo das administrações municipais – principalmente em relação à cidade de Cavalcante, onde se situa grande parte do território Kalunga. O apelo turístico da cidade de Cavalcante, devido à localização na microrregião da Chapada dos Veadeiros, se amplia com a publicização do maior quilombo do Brasil, cujo território é composto por atrativos naturais diversos.

Se a princípio os políticos locais conferem ao quilombo uma importância estratégica para o crescimento turístico das cidades, posteriormente, a relação é perpassada por ambigüidades e tensões haja vista o crescente protagonismo das lideranças Kalungas. No momento em que discurso dos direitos quilombolas das lideranças passam à ação, por meio de demandas concretas e articulações com as secretarias de agricultura, educação e turismo; e, principalmente, com a secretaria de promoção da igualdade racial, os políticos locais passam a enxergar o quilombo de forma competitiva:

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No começo tinha uns prefeitos que até ajudavam, que escutava a gente, as nossas necessidades, mas de um tempo pra cá isso mudou muito. Quando a gente começou a pedir reuniões com os secretários pra pensar projeto de melhoria na agricultura e na educação, eles só falavam que isso, que aquilo outro, só desculpa, sabe. Aí a gente viu que o interesse deles era ganhar dinheiro em cima da gente, os turistas vinham, e vinham pra visitar a gente, mas já vinham com pacote fechado da cidade, guia, almoço, hospedagem, tudo. Foi aí que a gente se organizou pra fazer projeto de capacitação de guias turísticos Kalunga, os de fora apoiaram a gente, e capacitamos o pessoal que já andava bastante aqui, que conhece tudo mesmo, pra guiar os visitante. Tempo depois a gente resolveu criar a associação de guias, aí que o negocio arrochou mesmo, eles não gostaram, não. Falaram que tinha que ser um movimento só, mas eles mesmo que nunca quiseram trabalhar junto. Eles não acharam que a gente ia conseguir se organizar e conseguir as coisa por fora, sem a ajuda deles. Foi aí que pegou. Argemiro, Kalunga do Vão do Moleque.

Quando ocorrem as primeiras contestações quanto às condutas políticas locais seqüenciadas pela busca por outras parcerias e, principalmente, quando as comunidades resolvem exercer o poder que lhes é conferido sobre seu território – afinal, a noção primordial de território nada mais é que o exercício do poder sobre determinado espaço físico ocupado (Santos, 1996) – criam-se animosidades entre os políticos locais e as lideranças Kalungas.

A referência à formação de guias e a criação de uma associação que normatiza tal atividade32, figura uma tomada de poder, mesmo que pontual, até então nunca imposta. O

novo ofício de guias Kalunga é pensado sob duas perspectivas, a saber, complementar a renda familiar e realizar o controle e acompanhamento da entrada de pessoas dentro do quilombo. Tal mobilização e organização comunitária geraram um mal estar entre lideranças Kalungas e políticos locais. Estes últimos, argumentam o imediatismo que tomou conta dos Kalungas após o reconhecimento do sitio histórico e o subseqüente processo de titulação enquanto quilombo:

Os Kalungas estão no direito deles de correrem atrás do que eles querem, passaram muito tempo esquecidos e agora chegou a hora deles, mas não há um entendimento da máquina da administração pública, não dá pra demandar uma coisa e querer ela efetivada no ato, nós ainda estamos elaborando procedimentos administrativos para atender tanta demanda. Mas o nosso intuito é fazer parcerias com eles, pra quê recorrer por apoio externo se a gente pode crescer juntos. O que é bom pros Kalungas é bom pra Cavalcante, Teresina e Monte Alegre. Vereador de Cavalcante

Os posicionamentos são muitos diversos quanto se trata dos Kalungas, e aqui não cabe esmiuçá-los, mas há uma preocupação que perpassa todos os segmentos da

32 A Associação de Guias do Quilombo Kalunga é criada de modo a ordenar a atividade turística,

arrecadando uma porcentagem do valor cobrado nos passeios para serem revestidos em manutenções das trilhas.

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sociedade dominante local de que a titulação do quilombo irá contribuir para o arrefecimento da economia local. As cidades de Teresina de Goiás e Cavalcante acreditam serem mais prejudicadas pelo fato de já comportar em sua jurisprudência a Área de Proteção Ambiental do Pouso Alto. E a cidade de Cavalcante, com a titulação do quilombo, perderá uma área significativa que poderia ter usos múltiplos; conforme relato da promotora de Cavalcante: “estamos cercados, de um lado tem a APA, do outro, os Kalungas, qual será o futuro da nossa cidade sem oportunidades e espaços pra aqueles que querem produzir?”.

A titulação do quilombo representa para grande parte da elite local uma real ameaça ao desenvolvimento da região, se tal visão repercute diretamente nos desandes entre lideranças Kalungas e políticos locais, não é o objetivo aqui tratar. Fato é que, diante dos entraves encontrados - seja por inoperância da máquina pública, seja por falta de vontade política - a estratégia encontrada pelas lideranças Kalungas para a efetivação de suas demandas foi a busca por interlocução e alianças com agentes externos, sejam representantes do governo federal, agências de apoio, organizações não governamentais ou fundações internacionais.

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