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Localização dos grupos indígenas da capitania e província de Goyaz

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2.3 Nas vias do parentesco: ocupação, uso comum e economia Kalunga

Nos dizeres de Oliveira (1998), o território Kalunga se constitui como o fundamento mais imediato de sustento econômico e de identificação cultural de um grupo. A população que hoje designa o povo Kalunga foi então formada por escravos fugidos que se aquilombaram, escravos alforriados, índios e posseiros que, em períodos diferentes, se fixaram nas terras que compõem o atual território. O passado escravocrata, apesar de não ser elemento central na identidade atual do Kalungas, ainda se faz presente na memória de muitos por meio de causos contados pelos mais velhos:

Meu pai e minha avó contavam que aqui tinha os senhores e tinha os escravos, e meu pai falava que as pessoas que tinham mais condição comprava mais escravos, eles vinham da Bahia, eles trazia pra vender pra cá, como vende gado, como vende cavalo. As pessoas que compravam era pra trabalhar, pra servir o senhor. Era muito ruim, uma lembrança péssima, de tanta judiação, comida mau feita, tinha escravo que era tratado pior que porco no chiqueiro, os senhores mandava fazer comer pros escravos era do farelo que eles não iam comer, era da casca da abóbora, muita judiação. As negras que tinham filho ela não tinha direito no filho, era tirado quando mais grandinho pra vender. Dona Getúlia, Kalunga do Engenho II.

Há relatos de que a ocupação inicial partiu de um vale entre as Serras Geral e da Ursa, acompanhando o percurso do rio Paranã e chegando à Serra da Contenda, uma serra menor situada entre as duas anteriormente citadas. O Vão da Contenda, também conhecido como Kalunga18, é referenciado como um dos núcleos de ocupação mais antiga,

acompanhado pelo Vão de Almas, situado na margem oposta ao rio Paranã, uma comunidade de difícil acesso até os dias atuais e reconhecida como a mais tradicional dentre as comunidades Kalungas.

Somando uma população numerosa de mais de cinco mil pessoas, os Kalungas se reconhecem como formado por um número reduzido de famílias que descendem de alguns ancestrais fundadores. A partir de uma dada região, estes ancestrais formaram troncos familiares e a reprodução desses grupos domésticos ampliou a ocupação primordial devido aos percursos migratórios internos, criando uma rede de localidades que une as muitas comunidades sob um único pertencimento (Jatobá, 2002).

As principais famílias Francisco Maia, Paulino da Silva, Santos Rosa, Cesário Torres e Fernandes de Castro agregaram novas pessoas por trocas matrimoniais – sendo evitados

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Assim batizada devido a um rio de mesmo nome que ali passa e devido a uma planta em abundância na região.

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os casamentos entre parentes próximos e de linhagem materna - e relações de afinidade, compondo uma organização social autônoma, de base campesina e em relativo isolamento. A família é a unidade que compõe a organização social e econômica dos Kalungas, os relatos atestam relações de parentesco entre as várias comunidades, sendo estas relações bilaterais, os parentes são considerados ora por consangüinidade materna, ora, paterna.

O território Kalunga (Mapa 4) se divide em núcleos, ou “municípios”, como são chamados localmente, sendo eles o Vão da Contenda ou Kalunga – na margem direita do rio Paranã – o Vão do Moleque, Vão de Almas (ambos na margem esquerda do Paranã, porém divididos por duas serras), e o Ribeirão dos Bois (na margem esquerda do Paranã e separado do Vão de Almas pela Serra do Funil). Há também o povoado do Engenho II que não se enquadra nessa divisão, mas que é por vezes identificado com o Vão de Almas (Jatobá, 2002).

O rio Paranã nasce próximo a cidade de Formosa e desemboca no rio Tocantins, cortando todo o território Kalunga. Seus afluentes - o Rio do Prata, Rio Bezerra, Rio das Almas, Maquiné, Ribeirão dos Bois – e os córregos que deságuam neste últimos – Gameleira, Capivara, Vargem Grande, Bananal, Palmeira, Limoeiro, Boqueirão e Ouro Fino – foram determinantes para a permanência e a conseqüente reprodução social do grupo. A abundância de recursos hídricos favoreceu a ocupação e fixação dos Kalungas numa região incrustada no cerrado goiano e considerada relativamente inóspita, pois composta de mares de serras, chapadas e sertões (Baiocchi, 1999).

A resistência, não a resistência militar ou política, mas a resistência enquanto uma contrariedade ao sistema dominante é a característica central do território Kalunga. Afastados dos arraiais e das fazendas, construíram uma forma de vida dispare da estrutura dominante, onde podiam realizar o exercício da liberdade e da solidariedade. A autonomia é uma característica sempre acentuada pelos mais velhos ao relatar o tempo dos antigos, grande parte dos bens necessários para a sobrevivência eram produzidos internamente, a relação com a cidade existia enquanto uma relação de troca ou venda:

Naquele tempo as mulheres nem em Cavalcante não iam, era os homens que iam pra vender mantimentos. Aqui a gente vendia o arroz, vendia o feijão, vendia o arroz limpo, limpava o arroz no pilão, fazia farinha pra levar pra cidade pra vender, fazia rapadura pra vender, vendia o inhame, a batata... Era com dificuldade, mas vendia. Comprava o pano fino que naquele tempo o pano era muito difícil aqui pra gente, que era feito nas mãos, as mulheres fiava e tecia, então era pouca roupa, muito pouca roupa, que as mulher era pouca pra fazer roupa pra todo mundo da casa, e ainda fazer coberta, rede, né, era um serviço muito enjoado. E sabão tudo era feito aqui, as mulher mesmo que fazia, do jeito que ela sabia fazer, fazia da mamona, do tingui”. Procópia, Kalunga da Contenda.

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A compra do sal era o motivo para as viagens às cidades mais distantes, primeiro até Barreiras – cidade a extremo oeste da Bahia, próxima à fronteira do estado de Goiás - e depois em Formosa, já no estado de Goiás. Aqueles que tinham animais iam à cavalo levando mantimentos para trocar por sal. De volta à comunidade o utilizavam como moeda, pagando diárias de trabalho19:

A gente vivia isolado mesmo, tinha relação com a cidade, sim, mas vivia isolado. Naquele tempo eu mesmo conheci gente que vinha lá do sertão pra comprar sal em Formosa. E meu avô contava muito de gente saindo daqui pra Barreiras pra comprar sal, quarenta dias pra ir e quarenta pra voltar. Levava feijão, toucinho, carne de sol, couro e ouro, porque nesse tempo ainda garimpava muito, tudo pra trocar por sal. Depois que o pessoal trazia o sal de lá pra aqui, era um quilo de sal por uma diária de serviço, capinando o dia todinho, cortando na enxada, machado e na foice. Albertino, Kalunga do Vão de Almas.

A ocupação espacial nas localidades utilizou a invisibilidade como estratégia de sobrevivência, à exceção do povoado do Engenho II20, não há aldeamentos ou vilas, as

casas distam um das outras entre 500 m e 2 km, sempre erguidas de forma a não serem avistadas nas estradas. As redes de parentescos influem na ocupação das localidades, é por meio das unidades domésticas e entre elas que se dá a cooperação para a produção de alimentos. As unidades produtoras estão dispersas no território em decorrência do processo de expansão da comunidade, impulsionado pela distribuição desigual de solos férteis propícios aos cultivos.

A economia Kalunga consiste na agricultura de subsistência e na criação de gado para corte e venda. A criação de gado, conforme relatos dos mais velhos foi primeiramente introduzida por intermédio do velho Boa, Boaventura dos Santos Rosa, ele tinha sido vaqueiro e tropeiro nas cidades de Palma (atualmente Paranã) e Porto Nacional, e ao tornar-se dono de tropa ocupou-se da comercialização dos produtos Kalungas nas cidades de Formosa e Barreiras.

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A etimologia da palavra “salário” vem do latim salarium, significando 'do sal'. (Machado, 1977).

20O processo de aldeamento do Engenho II é inclusive recente, sendo uma reordenação espacial motivada, num

primeiro momento, pelos constantes alagamentos das casas construídas próximas aos córregos e, num segundo momento, pela chegada da energia elétrica.

Mapa 4 – Território Kalunga