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3. CUIABÁ COMO CENÁRIO DE ANÁLISE: HISTÓRIA, POLÍTICA E

3.4. O associativismo comunitário

As organizações comunitárias no Brasil possuem raízes no processo de urbanização do país e a expansão das periferias nos grandes centros. A vivência de pobreza e exclusão impulsionou lutas e resistências nas relações conflituosas com o Estado. Segundo Moisés (1978), na década de 1950 essas organizações populares surgiram como expressão das reivindicações sociais e cobrança da ausência do Estado em tarefas originalmente de sua competência. Foram “[...] uma tendência um tanto espontânea e difusa das populações periféricas e carentes expressarem as suas reivindicações por mínimas condições urbanas e sociais de vida” (MOISÉS, 1978, p. 76).

As Sociedades de Amigos de Bairro (SABs) foram formas associativas iniciadas em São Paulo com características majoritariamente populares. Não havia ligação direta com partidos políticos e sindicatos de trabalhadores e, nesse sentido não tinham compromissos com transformações estruturais da sociedade. O campo de luta era demarcado e imediato, por tratar de questões urgentes de manutenção das condições de vida nas comunidades. A relação com o Estado nas negociações e alianças não encontrava ressonância em outros tipos associativos que buscavam mudanças mais amplas na conjuntura política.

[...] As SABs surgem então como organizações formais para reivindicar melhorias urbanas e sociais dos bairros. A maioria delas surge em áreas consideradas carentes. [...] o período em que surge a maioria das SABs – 1955 a 1970 – corresponde à fase de maior expansão industrial e de aceleramento do processo migratório, como aprofundamento das contradições [...] (MOISÉS, 1978, p. 76).

131 Todavia com o regime militar esses espaços se tornaram locus de resistência, articulados a outras organizações coletivas de contestação da ordem (GOHN, 1982). De acordo com Sader (1988), as mobilizações sociais surgidas nos anos de 1970 possuíam características fragmentadas pela própria condição de resistência à opressão dos militares sobre qualquer organização coletiva. A emergência de organizações marcadas pela pluralidade sociopolítica tinha com pontos unificados o resgate da participação e da expressão coletiva sobre as mazelas sociais e os passivos das políticas públicas implementadas pelos governos autoritários. As mobilizações conjunturais foram paulatinamente direcionadas para projetos políticos autônomos nos anos de 1980. Para Cardoso (1984), as associações de moradores de bairros passaram a adquirir novos contornos, se afastando majoritariamente de questões mais ampliadas, voltando-se aos problemas diretamente ligados às localidades.

Esse processo foi constituído pela própria organização das comunidades em território nacional. Em janeiro de 1982, na realização do 1º Congresso Nacional das Associações de Moradores, foi fundada a Confederação Nacional das Associações de Moradores – CONAM. Num cenário de oportunidades políticas o associativismo comunitário criou uma rede articulada de associações e definiu seus repertórios de ação caracterizados pela relação direta com o Estado.

A redução dos protestos e as conquistas políticas começavam a indicar a finalização dos ciclos democratização. Assim, foi iniciado um deslocamento de objetivos para as organizações comunitárias que passaram a ter um caráter mais institucional (BOSCHI, 1987). Mesmo que não fosse objetivo inicial, a institucionalização tornou-se necessária na medida em que os as formas de mobilização foram alteradas.

De certa forma, as coalizões parciais com a esfera governamental produziram uma formalização das atividades e hierarquização interna, legitimando as lideranças nas frentes de luta/negociação/alianças e consolidando as inovações internas, num momento histórico marcado pela abertura política. As diferenças mais claras foram no funcionamento das associações de bairro, que assimilaram elementos organizacionais definidos formalmente em seu desenho legal. A burocratização das associações, com definição de funções e objetivos dentro de uma estrutura interna, foi importante para a incursão nas arenas institucionais nas últimas décadas.

Ammann (1991, p. 125) afirma que o associativismo comunitário vê o Estado como adversário – não um inimigo – num campo de disputas e interesses. “Ele não questiona a

132 existência do Estado, não quer destruí-lo, como o fazem os anarquistas, mas afirma sua necessidade e exige que ele cumpra as funções de sua competência”. Ressalta que a busca pela representatividade parlamentar pelas lideranças é uma forma de ocupação de espaços políticos tradicionais para a defesa de direitos e obtenção de poder.

Mesmo com uma visão pessimista em relação ao Estado, Ammann (1991) percebeu que o associativismo comunitário se aparelhou e profissionalizou para adentrar as arenas tradicionais de disputa eleitoral e pleitear novas inserções políticas nos espaços institucionais128.

A criação da CONAM tornou o associativismo comunitário mais articulado, com representatividade definida nas esferas municipal, estadual e federal. Isso disseminou a proliferação de associações de moradores em todo o país. A entidade congrega atualmente 22 Federações Estaduais e tem presença em 23 estados e no Distrito Federal. As Federações possuem filiadas as Uniões Municipais, que por sua vez, articulam-se às associações comunitárias. Não existe um número exato de associações, no entanto estão presentes em quase todos os municípios do país. Com números representativos, o associativismo comunitário vem sendo fortalecido pela parceria com a Frente Continental de las Organizaciones Comunales (FCOC), que reúne entidades de toda América Latina.

Historicamente, a participação do associativismo comunitário vem sendo importante, desde a contestação do regime militar até mobilizações, reivindicações e participação na construção de políticas públicas e reformas importantes, como a urbana – a CONAM é membro permanente do Fórum Nacional de Reforma Urbana. Mesmo com essa trajetória o associativismo é criticado por se ater, nas bases, aos problemas cotidianos da comunidade.

Desde que romperam o formato de mobilização mais temático por uma estrutura de mobilização territorial e articulista, as associações comunitárias vêm sendo apontadas como entidades clientelistas cooptadas pelo poder público (AMMANN, 1991). Uma possível generalização incorre num equívoco, pois da mesma forma que existem organizações coletivas combativas, outras são mais ligadas ao Estado ou constroem alianças com diferentes tipos de organizações; são as pluralidades inerentes aos arranjos sociopolíticos. A diversidade

128 Numa perspectiva diferenciada, Evers (1983) destaca a busca pela autonomia das organizações coletivas e a

independência programática em relação ao Estado. Sader (1988) corrobora com essa vertente analítica que dava às mobilizações sociais emergentes um lugar de destaque no cenário político da época. O Estado aparecia como opositor a ser combatido e transformado profundamente por organizações autônomas e protagonistas. Cardoso (1984) destacou que no período de redemocratização essas organizações coletivas passaram a ter uma proximidade maior como o Estado. Isso se deu pela própria natureza da abertura política, que desenvolveu canais de comunicação novos e autênticos. A mobilidade e flexibilidade presentes estavam fundadas no próprio contexto, e os arranjos institucionais posteriores conduziram a consolidação de estruturas de mobilização bastante diferenciadas das existentes no final da década de 1970 e início dos anos de 1980.

133 de formas de ação, ideologia e organização demonstram a diversidade organizativa existente no país.

Uma característica importante do associativismo comunitário é sua crescente inserção nos espaços participativos constituídos predominantemente a partir dos anos de 1990 (PAOLI, 1992; DAGNINO, 1994). Os conselhos municipais se tornaram um espaço consolidado de participação de associações comunitárias e outras formas de organização coletiva. Resultado das mobilizações populares durante o processo de redemocratização, eles imprimiram uma dinâmica participativa institucionalizada129 na gestão e controle de políticas públicas (TATAGIBA, 2002; 2004; TÓTORA; CHAIA, 2004; FLEURY, 2006). Nesse contexto, o associativismo comunitário passou a se relacionar com o Estado de forma a canalizar em espaços institucionais as principais demandas da população130.

A organização das associações comunitárias em Cuiabá é bastante difusa e cercada por rivalidades políticas. A expansão do associativismo, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, refletia o cenário político nacional e o processo de urbanização experimentado pela cidade na década anterior. Na capital, o associativismo é mais robusto em relação ao interior do estado, seja pela diferença demográfica e quantidade de bairros ou pela relação direta com a Federação Mato-grossense de Associações de Bairro (FEMAB)131 sediada na cidade.

A FEMAB foi criada em 1978, agregando 42 Uniões Municipais de Mato Grosso e coordenando as atividades realizadas por associações comunitárias nas diversas regiões do estado. No entanto, é na capital que se concentram os espaços de confronto, pela discussão direta com o governo estadual sobre suas principais demandas. A aproximação com a FEMAB deveria ser fator de fortalecimento para as associações locais devido à soma das mobilizações nas esferas municipal e estadual. Os últimos anos vêm demonstrando mais uma desagregação e conflitos de interesses, do que a confluência de ações em favor das comunidades.

A defesa dos interesses dos moradores do bairro é um objetivo difuso de uma associação comunitária. Ele pode ser traduzido como a busca pelos benefícios proporcionados

129 Segundo Tótora e Chaia (2004), as prerrogativas dos conselhos municipais em controlar e fiscalizar o poder

público são novas no país e o modelo participativo é um processo em construção, pois envolve uma gama de questões técnicas e políticas que, em grande parte das vezes, foge a análise crítica dos membros desses espaços. A própria condição institucional dos conselhos não permite caracterizá-los como órgãos autônomos de poder.

130 O associativismo teve um papel fundamental na constituição e perenidade do Orçamento Participativo em

Porto Alegre (SILVA, 2001). Para Avritzer (2003) a falta de uma base associativa em experiências participativas torna os processos altamente dependentes dos governos.

131 A articulação institucional da FEMAB com o governo do estado de Mato Grosso cresceu tanto nos últimos

anos que foi criada, em 2008, a Secretaria Adjunta de Assuntos Comunitários, ligada à Secretaria de Estado de Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (SETECS-MT).

134 por políticas públicas setoriais em uma base territorial delimitada. Uma característica organizacional importante é a dimensão territorial das associações, que se consubstancia na criação de um vínculo com a localidade e a formação de uma identidade político-cultural. Outra dimensão significativa é a reivindicativa, operacionalizada por embates e, principalmente, negociações com agentes políticos. Isso gera coalizões e alianças que são sistematicamente dissimuladas pelo tabu de não filiação partidária de lideranças comunitárias. Na prática, essa problemática repercute de outra forma, com disputas internas geralmente ligadas às questões político-partidárias. Isso tem um peso na eleição de lideranças em associações, pois as alianças com agentes políticos podem abrir canais de diálogo com o poder público e estabelecer convergências, com possibilidades concretas de melhoria para a comunidade. Da mesma forma, essa relação pode produzir desvios como a cooptação de lideranças em cargos públicos pela sua importância em determinado nicho eleitoral; uma prática recorrente nessa complexa trama de conveniências políticas.

A participação em associações comunitárias é voluntária e constitui-se numa atividade de interesse público da própria localidade. Não existe uma regularidade nessa participação, salvo encontros ou outras formas de reuniões e eventos que atraiam a comunidade e formem espaços reivindicativos e dialógicos. Estes, relacionados essencialmente com as ações indutoras do poder público para a participação popular.

Essa convivência se estende desde capacitações, audiências de prestação de conta, projetos setoriais e discussões orçamentárias – como o OP e a Governança Integrada de Base em Cuiabá. As negociações normalmente envolvem as lideranças que têm uma função mais ativa nesse extenso arco de alianças e enfrentamentos políticos. As coalizões são formadas por trocas de posições que variam entre o apoio da comunidade ou sua oposição.

Em problemas recorrentes e imediatos a representação de um local circunscrito prevalece nas disputas cotidianas. Isso aparece frequentemente em meios de comunicação que apresentam matérias sobre os passivos existentes nos diferentes bairros. Esses canais são bastante utilizados para expor as dificuldades enfrentadas e pressionar as autoridades públicas por melhorias nas localidades.

Em Cuiabá esses espaços também explicitam certos desentendimentos locais, expressos nas disputas entre as Uniões de Associações de Moradores. Na capital existem 241 associações comunitárias132 filiadas a duas uniões diferentes. As territorialidades formadas

132 O número de associações é superior ao número de bairros – 118 no total – pela divisão de alguns destes

devido ao tamanho da área e o número de habitantes. Também loteamentos não reconhecidos como bairros e comunidades na Macrozona Urbana possuem suas associações, regulamentadas ou não.

135 com a regionalização administrativa imprimiram um processo de tensões entre o associativismo comunitário, que redefiniu suas bases e se organizou a partir dessa referência.

A territorialidade133 nos bairros se ampliou para pólos, regiões e uniões produzindo um complexo relacional dinâmico. “[...] daí a territorialidade poder ser definida como um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo [...]” (RAFFESTIN, 1993, p. 160). Ela é desenvolvida nas relações dos atores sociais com seu meio de referência e as externalidades, institucionais ou não, podendo ser simétricas e assimétricas, com variações no tempo, de acordo com as mudanças nos cenários sociopolíticos a que pertencem. “Entretanto, não é possível compreender essa territorialidade se não considerar aquilo que a construiu, os lugares em que ela se desenvolve e os ritmos que ela implica” (RAFFESTIN, 1993, p. 162).

A territorialidade envolve elementos muito complexos das relações sociais colocados num plano espacial transformado historicamente. Nesses lugares é possível ver a afirmação do pertencimento e o engajamento na legitimação das diferenças, algumas vezes moldadas relacionalmente por agentes políticos autorizados.

As regionais administrativas que dividiram o espaço urbano referenciaram a polarização das associações comunitárias, divididas nas regiões Norte, Leste e Oeste de um lado, e a Sul de outro. No primeiro caso as associações ficaram ligadas à União Cuiabana de Associações de Moradores de Bairros (UCAMB); no segundo se vincularam à União Coxipoense de Associações de Moradores (UCAM).

Tabela 10 - Organização das Uniões por Regiões Administrativas.

UCAMB UCAM

Norte Leste Oeste Sul Total

População 113.774 157.105 115.739 131.025 517.643*

Associações 56 67 52 66 241

* Cuiabá (2010).

As Uniões utilizaram as regiões administrativas para se organizarem, elegendo para cada uma delas um coordenador regional ligado diretamente à diretoria. Também realizaram subdivisões dentro das regionais em Pólos, aglomerando certa quantidade de associações de bairros de uma mesma área e com características próximas. Nesses Pólos são designados, da

133 “A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as

relações e seria possível dizer que, de certa forma, é a ‘face vivida’ da ‘face agida’ do poder” (RAFFESTIN, 1993, p. 162).

136 mesma maneira, coordenadores, que são um dos elos criados na estruturação hierárquica do associativismo comunitário na capital134.

Tabela 11 - Organização das associações comunitárias por pólos dentro das regionais administrativas.

UCAMB UCAM

Pólos Norte Leste Oeste Sul

I 06 19 12 13 II 07 11 13 08 III 15 18 12 11 IV 13 10 15 09 V 15 09 - 09 VI - - - 10 VII - - - 06 Total 56 67 52 66

A UCAMB foi fundada em 9 março de 1981 como a primeira União de associações comunitárias da capital, num momento histórico em que Cuiabá possuía 50 bairros, prescindindo de uma organização do associativismo comunitário local. Atualmente ela concentra a maior representatividade com 175 associações filiadas em três regiões da Macrozona Urbana.

Com a expansão urbana, o crescimento de perímetro abarcou o Distrito de Coxipó da Ponte, que passou a integrar a malha urbana e ter seu território fracionado por loteamentos e povoado significativamente. Com o aumento da população e dos bairros subjacentes foi criada a UCAM em 29 de agosto de 1985. Por estar referenciada apenas na região Sul, a quantidade de associações ligadas a ela é menor do que na outra União.

Tabela 12 - Número total de associações por União e percentual de representatividade.

Associações %

UCAMB 175 72,5

UCAM 66 27,5

Total 241 100

134 Com a reconfiguração territorial do associativismo comunitário em Cuiabá um novo panorama organizacional

foi construído. Assim, da base até a entidade que congrega todo o movimento nacional foi criada uma cadeia de entidades que demandam políticas públicas em seus territórios de reivindicação e se articulam a partir da localidade. Teoricamente, as demandas surgem a partir de associações comunitárias (bairro), Pólos (conjunto de bairros), Regiões (regionais administrativas), UCAMB/UCAM (município), FEMAB (estado), podendo chegar à CONAM.

137 A divisão territorial acarretou certa animosidade entre as uniões, expressa por suas lideranças comunitárias. Essa questão deu início à disputa por interesses políticos e benefícios para as regiões integradas nos limites das uniões. Pela diferença na quantidade de associações filiadas também existe uma demarcação nas demandas remetidas ao governo local.

As contendas são agravadas pelas críticas presentes nos meios de comunicação empreendidas pela liderança da UCAMB à FEMAB – a qual tem uma relação positiva com a UCAM –, provocando uma verdadeira contenda política nos veículos de mídia. Mesmo nesse turbilhão político o associativismo comunitário vem adentrando os espaços participativos oportunizados na relação com o governo municipal. Mesmo com uma estrutura de mobilização fragmentada, o associativismo é referência em Cuiabá sendo, essencialmente, a principal forma de ação coletiva em atividade.

A participação de associações comunitárias em arenas institucionais converge com a perspectiva relacional da democratização no Brasil, a qual esteve imersa na articulação entre o aparato governamental e a sociedade, em novos arranjos políticos complexos e diversificados, que incluem/excluem, agregam/desagregam na busca pela construção de inovações e experimentos diferenciados.