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Asterión, Teseu e o fluxo da consciência

77 certos acontecimentos já haviam sido vividos antes

94 É importante recordar que em suas entrevistas, Borges adota uma posição de desprendimento com o que já escreveu, como se estes textos já não tivessem importância ou

2.3. Asterión, Teseu e o fluxo da consciência

Como a narração de Asterión parece se caracterizar como um processo de recuperação do passado pela rememoração presente, como já apontado anteriormente ao se analisar a distância espacial entre este narrador e os fatos que conta, pode se estar tratando aqui de um modo específico de focalização da narrativa denominado fluxo de consciência116.

Este recurso pode ser definido como um meio de fazer “a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais personagens”(Carvalho 1981: 51), principalmente através do uso da corrente

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fluida de pensamento baseada na memória ao invés de relatada por um narrador.

Asterión está constantemente rememorando seus atos cotidianos e meditando sobre eles:

Finjo que viene a visitarme y que yo le muestro la casa. Con grandes reverencias digo: “Ahora volvemos a la encrucijada anterior” o “Ahora desembocamos en otro patio” o “Bien decía yo que te gustaría la canaleta” o “Ahora verás una cisterna que se llenó de arena” o “Ya verás cómo el sótano se bifurca”. A veces me equivoco y nos reímos buenamente los dos. No sólo he imaginado esos juegos; también he meditado sobre la casa. (Borges 1997: 79).

115 Op. Cit. pp. 213-214.

116 William James criou o termo stream o f consciousness em seu livro Principies o f Psychology, Chicago, Willian Benton, Publisher, 1955, p. 155, sendo que para ele o termo significa lembranças, pensamentos e sentimentos que existem fora da consciência primária e aparecem para a pessoa não como uma cadeia mas uma corrente ou fluxo.

Robert Humphrey define a ficção do fluxo da consciência como aquela “em que a ênfase principal é posta na exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico dos personagens.” Neste estudo relaciona quatro técnicas fundamentais pelas quais o fluxo da consciência pode ser representado: monólogo interior direto, monólogo interior indireto, descrição por autor onisciente e solilóquio. Humphrey, Robert. O fluxo da consciência. Trad. de Gert Meyér. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil. 1976. p. 4.

Como se nota na fala de Asterión, a presença de uma audiência subentendida para quem ele se dirige, e a ausência de qualquer intervenção de alguém que conduza a narração a não ser ele mesmo, pode se estar utilizando um tipo de representação do conteúdo psíquico chamado de solilóquio.

No solilóquio118, os pensamentos são enunciados como se fossem para ser ouvidos por alguém, mesmo que este alguém seja o próprio personagem, sem que haja qualquer intervenção, seja ela do próprio personagem ou de seu suposto ouvinte.

O que distingue este tipo de técnica de outra chamada de monólogo interior direto, é que nesta última o personagem não se dirige a ninguém, apenas se apresenta o conteúdo da consciência no seu estágio inicial, desorganizado, antes de ser formulado para o discurso deliberado.119

O solilóquio também se distingue do monólogo interior direto por 1 ' I A

comunicar emoções e idéias relacionadas a um enredo e ação , enquanto que o propósito principal do monólogo interior direto é comunicar o fluxo puro da consciência como apontado. O solilóquio é bastante flexível para vir a representar uma combinação bem sucedida entre a corrente da consciência com ações exteriores, podendo ser descritos tanto o interior quanto o exterior do personagem121, como se faz no conto:

Hasta mis detractores admiten que no hay “un solo mueble” en la casa. Otra especie ridícula es que yo, Asterión, soy un prisionero. ^Repetiré que no hay

118 Segundo Humphrey: “O solilóquio no romance de fluxo de consciência pode ser definido como a técnica de representar o teor e os processos psíquicos de um personagem diretamente do personagem para o leitor sem a presença do autor, mas com uma platéia tacitamente suposta.” Id. Ib. p. 32.

119 O monólogo interior é: “a técnica usada na ficção para representar o conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos níveis do controle consciente antes de serem formulados para a fala deliberada.” Id. Ib. p. 22.

120 Humphrey estabelece que o solilóquio também difere do monólogo interior por possuir “maior coerência, de vez que sua finalidade consiste em comunicar emoções e idéias que se relacionam a uma trama e ação; ao passo que o monólogo interior consiste, antes de mais nada, em comunicar identidade psíquica.” Id. Ib. p. 32.

121 A respeito da representação interior e exterior do personagem, Humprhey comenta que o uso do solilóquio representa “uma combinação bem sucedida de consciência interior com ação exterior. Id. Ib. p. 34.

una puerta cerrada, anadiré que no hay una cerradura? Por lo demás, algún atardecer he pisado la calle; si antes de la noche volvi, lo hice por el temor que me infundieron las caras de la plebe, caras descoloridas y aplanadas, como la mano abierta.(Borges 1997: 78).

A fala de Teseu também poder vir a ser uma espécie de fluxo da consciência pois parece representar um pensamento íntimo, quase interior.

Mas não se trataria de solilóquio tradicional, e sim de uma espécie de fusão deste com o monólogo interior indireto, pois se os pensamentos do personagem são mediados por um narrador que comenta e explica os fatos que circundam sua declaração, podem assim ser classificados; mas o fato dele se dirigir mesmo que retoricamente a Ariadne, pode caracterizá-lo como solilóquio.

Poder-se-ia também dizer que este não é um fluxo da consciência pois Teseu pode estar fazendo a pergunta diretamente a Ariadne, dando-lhe uma explicação sobre os acontecimentos.

Afinal, se o sol brilha sobre a espada onde já não há vestígios de sangue, poder-se-ia entender que ele está fora do labirinto ou saindo dele, e que encontrando Ariadne esperando por ele lá fora, dirigiu-se a ela.

2.4. O tempo

Genette criou uma classificação para o narrador a partir da união da categoria dos tipos de narradores a categoria dos níveis narrativos, onde o narrador que conta, presente ou não na narrativa, pode estar ou não no mesmo nível desta.

- Portanto, quando é Asterión que fala, ele não é só homodiegético como

autodiegético, ou seja, um narrador que conta sua própria história localizado no mesmo nível desta narrativa(intradiegético).

O segundo narrador, em terceira pessoa, é heterodiegético e está distanciado do que conta em uma focalização zero, nos moldes da narrativa

épica. Observa os acontecimentos de longe, evidência esta encontrada nas construções verbais que remetem a comentários de quem está fora do acontecido, apenas relatando os fatos em um tempo posterior, como se apenas descrevesse fatos passados: O sol que brilhou na lâmina da espada, o vestígio de sangue que já não havia, o que Teseu disse, etc.

Como a questão do uso da pessoa gramatical está vinculada ao que Genette nomeia de modo narrativo, esta categoria envolve não só este aspecto como também do tempo em que este que fala se localiza em relação ao que contou.

Quando trata de comentários sobre fatos passados, a narrativa é explicitamente posterior ao acontecido:

Ya se había puesto el sol, pero el desvalido llanto de un nino y las toscas plegarias de la grey dijeron que me habían reconocido. La gente oraba, huía, se prostemaba; unos se encaramaban al estilóbato dei templo de las Hachas, otros juntaban piedras. Alguno, creo, se ocultó bajo el mar.(Borges 1997: 78).

Mas mesmo que a narrativa de Asterión aparente ser imediata por estar sendo feita no presente: “No me interesa lo que un hombre pueda trasmitir a otros hombres; como el filósofo, pienso que nada es comunicable por el arte de la escritura.”(Borges 1997: 78), não trata de ações simultâneas, mas do processo citado de trazer ao presente fatos e informações já conhecidas por ele, já pensadas por ele, mas ditas agora, no ato presente da narração, fazendo com que coincidam, portanto, o tempo da história e o tempo da narrativa: “Sé que me acusan de soberbia, y tal vez de misantropia, y tal vez de locura”.(Borges 1997: 79).

Não há indicações explícitas de tempo no conto que venham a indicar um antes e um depois; apenas o fato do minotauro esperar por alguém que ainda não veio e por se interpretar que se “Ya no quedaba ni un vestigio de

sangre”.(Borges 1997: 80) na espada de Teseu significa que este sangue que já

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não havia seria de Asterión que, se perdeu sangue poderia estar morto.

Neste ponto, apresenta-se um pequeno espaço entre o final do relato no presente em primeira pessoa e o início de um relato em terceira pessoa feito no passado, sem que se possa identificar quem fala:

Desde entonces no me duele la soledad, porque sé que vive mi redentor y al fín se levantará sobre el polvo. Si mi oído alcanzara todos los rumores dei mundo, yo percibiría sus pasos. Ojalá me lleve a un lugar con menos galerias y menos puertas. ^Cómo será mi redentor? me pregunto. ^Será un toro o un hombre? «^Será tal vez un toro com cara de hombre? será como yo?

El sol de la manana reverbero en la espada de bronce. Ya no quedaba ni un vestigio de sangre.

—^Lo creerás, Ariadna? — dijo Teseo — Lo minotauro apenas se defendió. (Borges 1997: 81).

Como a fala de Teseu se inicia in medias res, a recuperação dos fatos anteriores retomariam aqueles subentendidos e não expressos no conto, aqui nomeados como interlúdio implícito, e assumiriam, a partir daí, a visão de Teseu do acontecido e que se expressa como total surpresa frente ao fato do minotauro não lutar o bastante por sua própria vida: “— ^Lo creerás, Ariadna? — dijo Teseo —, El minotauro apenas se defendió”. 123

A temporalidade no conto assume, portanto, duas posições, onde pelo corte abrupto do discurso, passar-se-ia a narrar partes diferentes de uma mesma história, revelando dois pólos opostos de duas decepções: a de Asterión que esperava em Teseu seu libertador e encontra seu assassino e a de Teseu que esperava em Asterión uma fera que lhe ameaçasse mais a vida e encontra um ser que não resistiu muito ao seu ataque.

122 Este indício seria semelhante àquele que Genette nomeia analepse, recurso pelo qual se esclarece fatos de situação anterior. Só que no conto aqüi analisado, não há um esclarecimento explícito da morte do Minotauro, o que poderia levar-se a classificar tal indício de analepse implícita. Op.Cit. p. 85 ss.

Sobre esta ausência de reação por parte de Asterión sob o ataque de Teseu, Alazraki comenta:

Asterión, el minotauro, se entrega a la espada de Teseo com la misma docilidad que Cruz desierta de su uniforme de sol dado,(...) Esta intuición - la aceptnación de un destino que se sabe inexorable, pero cuyo sentido se le escapa a la inteligencia(de los hombres y de las bestias) - tiene idêntica valildez cuando interpreta esa noche fundamental en que Cruz comprendió su íntimo destino de lobo al ver su propia cara en la cara de Martin Fierro, o cuando explica la extrana reacción dei minotauro ante la espada de Teseo, “su redentor”. Desde este punto de vista la simplicidad de los hombres es tan corta como la simplicidad de las fieras cuando se trata de penetrar la compleja máquina dei mundo.(Alazraki, 1983: 36-37).

E é claro que se remeter-se ao conhecimento do desfecho do mito, pode-se afirmar que em relação à tradição do desfecho da história, a primeira parte do conto pode fixar-se em um tempo que precede a morte de Asterión, estabelecendo a fala deste como anterior a esta morte, e a fala de Teseu num momento a ela posterior.

Como o momento da morte por não ser relatada no conto localizar-se-ia numa espécie de elipse124, podendo ser preenchida por qualquer leitor que conheça o mito: assim, este conto instauraria a fala de Asterión como em um prelúdio de sua morte, localizando-a como anterior a um interlúdio implícito, não presente na narrativa, onde, pretensamente se deu o encontro do minotauro e Teseu, fazendo com que este interlúdio se tome o exato lugar onde a morte do monstro deveria ter sido relatada.

Mas este conto não seria borgesiano se resolvesse tão facilmente através da substituição dos acontecimentos não narrados pelo mito tradicional. Nos contos de Borges não existe o deve ser, como diz Monegal, e sim possibilidades, afinal, encontrar uma resposta para estes enigmas se assemelha

123 Op.Cit. p. 81.

124 A elipse apresentada seria uma mistura de dois tipos de elipses que Genette classifica: da elipse implícita que não é noticiada explicitamente no texto, mas que o leitor pode deduzir pela presença de uma lacuna cronológica que abre uma espécie de brecha na continuidade da narrativa, e da elipse hipotética que é impossível de ser localizada mas cujos indícios apresentam-se no capítulo precedente. Op. Cit. pp. 108-109.

ao ato de encaixar uma chave na fechadura e notâr que ela não abre porta porque gira para o lado errado.

A primeira frase do conto se inicia pelo verbo saber, onde Asterión afirma ter conhecimento de tudo o que falam dele: “Sé que me acusan de soberbia, y tal vez de misantropia, y tal vez de locura”(Borges 1997: 78), e desde aqui já se pode compreender que o texto não é apenas uma revisão do mito, e sim, uma reescritura, porque como a análise do foco narrativo aqui realizado comprova, o labirinto não está presente apenas como construção física, mas também no modo como os acontecimentos tradicionais são deturpados e recriados, remetendo a outras leituras possíveis que vão além do mito usado como ponto de partida.

Segundo Auerbach, quando Mareei em Em busca do tempo perdido se utilizar de uma consciência rememorante, faz dela um meio para enfrentar os fatos passados e superá-los, como “um artista que, encontrando-se ele próprio no objeto, liberou-se como observador do objeto e enfrenta o seu próprio passado.”(Auerbach 1998: 489).

Porém, isto não ocorre com Asterión pois ele não consegue superar as próprias dúvidas, entender porque dizem o que dizem dele, dando à narrativa um tom de constante de busca de respostas: “^Cómo será mi redentor? me pregunto ^Será un toro o un hombre? ^Será tal vez un toro com cara de

hombre? será como yo?”(Borges 1997: 81)

Assim, ao adentrar-se no labirinto da leitura do conto, o leitor se depara com um afirmação de sabedoria e dele se sai, se é que se sai, cheio de indagações pois a última frase do conto, é a fala de Teseu, feita de dúvidas: “^Lo creerás, Ariadna? - dijo Teseo -, El minotauro apenas se defendió”(p- 81).

A fala de Teseu demonstra preocupação com o fato de Ariadne não vir a acreditar que o Minotauro não se defendeu o bastante. Por que ela não haveria de crer nisso? Ela o amava, segundo o mito, e o amor é feito de confiança, diriam os entendidos.

A história de Teseu e Ariadne, como se sabe, é feita de traições: Ariadne trai o pai e revela a Teseu como sair do labirinto. Segundo Imbert, é ela mesma quem dá a espada ao herói para que ele mate o monstro125.

Teseu, ao cumprir sua missão em Creta, leva Ariadne com ele à ilha de Naxos. Na manhã seguinte, ela acorda sozinha. Novamente as versões sobre este ponto variam. Segundo Ovídio, considerada a mais certa, Teseu a

10í

abandona , outras, que é seqüestrada por Dionísio e tudo termina como relatou Apolodoro.

Assim, ele não cumpre a exigência que ela fizera em troca do segredo, a de tomá-la por esposa e levá-la para Atenas. E como se sabe, Teseu casar-se-á mais tarde com Fedra, a irmã de Ariadne.(Brandão 1995: 163-165).

No conto, o relato de Teseu sobre o que aconteceu não se baseia em nenhuma prova, pois já não há nenhum vestígio de sangue na espada. A prova seria a versão de quem conta, a de Teseu, portanto, a de quem sobreviveu.

Destas conclusões, nota-se que não há no conto aqui analisado nenhuma intenção de fornecer uma solução autoritária dos fatos apresentados, pois dúvidas ainda pairam no ar e a falta de pormenores que venham a elucidá- los, faz com que seu sentido tome-se tão fragmentário e incompleto quanto o entendimento que Asterión tem de si próprio, ou tão duvidosa quanto a única afirmação de Teseu.

125 Op.Cit. p. 136.

CAPÍTULO III