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6. PRINCIPAIS TIPOS DE IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS

6.2 ATAXIA-TELANGIECTASIA

A ataxia-telangiectasia (AT) é uma desordem autossômica recessiva, caracterizada por macha anormal (ataxia), devido a um comprometimento do cerebelo, que é responsável pelo equilíbrio e coordenação, e malformações vasculares (telangiectaisas) (ABBAS, LICHTMAN & PILLAI, 2019). Os pacientes com AT apresentam diversas manifestações clínicas incluindo ataxia cerebelar progressiva, telangiectasia oculocutânea (Figura 10), de orelhas e cotovelos, imunodeficiência variável, sensibilidade a radiação ionizante, distúrbios metabólicos e maior susceptibilidade a câncer (leucemias e linfomas). Além de outras anormalidades como, falha de crescimento, desenvolvimento puberal ruim, diabetes resistente à insulina, atrofia gonodal doenças pulmonares, anormalidade cutânea e doenças cardiovasculares (TEIVE et al., 2015; NISSENKORN et al, 2016; ABBAS, LICHTMAN & PILLAI, 2019).

Figura 10 Telangiectasia oculocutânea. Fonte: (LÓPEZ; QUINTERO, 2016).

Além disso, pacientes com AT têm um mau prognóstico, com um tempo de sobrevida de 25 anos aproximadamente. As duas causas de morte mais comuns desses pacientes são doenças pulmonares crônicas e câncer (CRAWFORD et al., 2016).

A doença é causada por mutações no gene que codifica a proteína serina/treonina quinase ataxia-telangiectasia mutada (ATM, do inglês ataxia telangiectasia mutaded). A ATM é uma proteína grande (∼350 KDa), com função extremamente importante no reparo de quebra de DNA de cadeia dupla, além de agir na estabilidade genômica, na regulação do ciclo celular e na sobrevivência celular (AMIRIFAR et al., 2019).

A AT é relatada em todo o mundo com uma prevalência estimada de 1:40.000 a 1:100.000 (ROTHBLUM-OVIATT et al., 2016) e a deficiência de ATM é a segunda IDP monogênica mais comum após a febre familiar do Mediterrâneo, com 2.514 pacientes relatados globalmente (1.262 na América do Norte, 251 na América Latina, 696 na Europa, 199 pacientes na Ásia e Oceania, 106 pacientes na África) (MODELL et al., 2018).

O gene que codifica a proteína ATM contém 66 exons localizado no lócus 11q22–23. Os níveis da expressão da proteína têm sido relatados em altos níveis de forma ubíqua na maioria das células e órgãos humanos, com exceção do fígado, tecidos moles e adiposo (AMIRIFAR et al., 2019). A maioria das mutações que afetam o gene ATM gera a uma proteína truncada e sem função, mas menos comumente, mutações ou defeitos nas regiões promotoras do gene resultam em expressão de baixo nível da proteína ATM funcional, resultando em uma forma mais branda de ataxia-telangiectasia (AMIRIFAR et al., 2019).

Durante a vida, o DNA genômico de um indivíduo é submetido a danos por radiação ionizante, radiação ultravioleta e espécies reativa do oxigênio. Estes agentes causam quebras nas duplas-fitas (DBS, do inglês double-strand breaks) de DNA, que

precisam ser reparadas. A ATM atua como um sensor de dano ao DNA ativando a sinalização contra apoptose e estresses genotóxicos, como radiação ionizante (figura 11). Um evento precoce durante a resposta ao dano ao DNA é a monomerização e ativação da ATM, levando à rápida fosforilação de várias proteínas envolvidas no reparo do DNA, no ponto de controle do ciclo celular e na transcrição (AMIRIFAR et al., 2019). A quebra da dupla fita (DSB), devido a uma radiação ionizante, por exemplo, leva à ativação de ATM, que causa o aumento dos níveis e fosforila a proteína de reparo de DNA p53. A ATM é recrutada ao local da lesão pelo complexo MRN (NBS1-MRE11-RAD50) e, depois de ativada, fosforila as proteínas de histona, H2AX, BRCA1, 53BP1 e NBS1, que irão participar do acesso à região lesionada,

sinalização e reparo do DNA (AMIRIFAR et al., 2019).

Figura 11Cascata de reparo do dano ao DNA, em consequência de radiação ionizante. Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-6-Cascata-de-reparo-do-dano-ao- DNA-em-consequencia-de-radiacao-ionizante-A_fig6_283034503

O reparo do DNA é regulado com base no estágio do ciclo celular e na forma da cromatina, e não na natureza da lesão. Esses processos envolvem mecanismos que modificam transitoriamente ou localmente a estrutura da cromatina para promover

o reparo do DNA. O DNA de dupla fita está na forma de heterocromatina e o ATM é essencial para o desdobramento da heterocromatina, dando acessibilidade a maquinaria de reparo do DNA. Além disso, a ATM envolve mecanismos especializados de reparo da dupla fita de DNA em condições fisiológicas como recombinação meiótica, montagem dos genes do receptor de células T e imunoglobulina (Ig) pela recombinação V(D)J e recombinação eficiente para de troca de classe (CSR) em linfócitos B maduros. Logo, mutação na ATM promove a patogênese da AT, que resulta em disfunção imune, predisposição a linfoma e esterilidade (BEDNARSKI & SLECKMAN, 2012; ALVAREZ-QUILON et al, 2014).

Tem sido mostrado também que as células de pacientes com AT têm telômeros curtos e isso resulta em uma instabilidade do telômero, mimetizando o estado canceroso, porém ainda não está claro como a ATM e essa instabilidade estão relacionadas (AMIRIFAR et al., 2019).

6.2.1 TELANGIECTASIA EM PACIENTES COM AT

As causas da telangiectasia estão relacionadas a vasos sanguíneos dilatados que se manifestam principalmente na esclera ocular e em áreas da pele expostas ao sol, especialmente a face e as orelhas, mas principalmente os olhos (CABANA et al., 1998). A telangiectasia ocular não afeta a visão, embora às vezes seja diagnosticada erroneamente devido a conjuntivite crônica ou alergia no contexto de imunodeficiência e imuno desregulação (FARR et al., 1998). A base fisiopatológica da telangiectasia em pacientes com AT não foi totalmente compreendida. No entanto, tem sido postulado que telangiectasias oculocutâneas em pacientes com AT estão associadas a anormalidades vasculares devido à superexpressão do fator 1 induzido por hipóxia (HIF-1, do inglês hypoxia inducible factor 1) (OUSSET et al., 2010). O HIF-1 é um fator de transcrição que, em condições hipóxicas, aumenta a expressão do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e, portanto, está envolvido na angiogênese (SCHOFIELD & RATCLIFFE, 2004). Logo, a superexpressão de HIF-1 em células deficientes em ATM pode explicar anormalidades vasculares como doença cardiovascular, telangiectasia e desenvolvimento tumoral em pacientes com AT.

6.2.2 ATAXIA-TELANGIECTASIA E IMUNODEFICIÊNCIAS

Imunodeficiências primária são observadas em pelo menos 70% dos pacientes com AT, devido aos problemas de recombinação V(D)J nos receptores de antígenos de células T e B. É comum encontrar nesses pacientes linfopenia de células T e B, baixos níveis de células T CD4+ e CD8+, sendo mais significante a diminuição nos LTCD4+. Ocorre deficiência na produção e anticorpos, deficiência seletiva de IgA, hipogamaglobulinemia e deficiência de subclasses de IgG. As deficiências humorais mais comuns estão relacionadas a diminuição ou ausência de níveis séricos de IgA, IgE, IgG2 e IgG4, especialmente de IgA e IgG2 (STRAY-PEDERSEN et al., 2004; DRIESSEN et al., 2013). Além disso, células T imaturas expressam receptores gama/delta ao invés de receptores alfa/beta (LÓPEZ; QUINTERO, 2016).

Em consequência dessas imunodeficiências, estima-se que quase 80% dos pacientes com AT sofram de infecções. Geralmente, as manifestações mais comuns são infecções sinopulmonares que frequentemente se manifestam no início da vida (NOWAK-WEGRZYN et al., 2004; BOTT et al., 2007). Pacientes AT com perfil de Ig normal ou deficiência de IgA manifestam infecções respiratórias brandas, enquanto os pacientes AT com defeito na recombinação de troca de classe de Ig (CSRD, do inglês class switch recombination defect) apresentam infecções graves, como otite média, pneumonia e infecções mucocutâneas, juntamente com autoimunidade, hepatoesplenomegalia, linfadenopatia e neutropenia (GHIASY et al., 2017). Além disso, os pacientes AT com CSDR apresentam um curso mais grave da doença, levando a uma menor qualidade de vida e menor sobrevida em idades mais precoces do que outros pacientes com AT (CHEN et al., 2010).

O processo pelo qual a deficiência de ATM causa imunodeficiência não é totalmente esclarecido, porém já foi reconhecido que essa proteína desempenha um papel fundamental no reconhecimento e reparação da dupla fita de DNA durante o rearranjo do TCR e troca de classe de imunoglobulinas (KOJIS, GATTI, SPARKES, 1991; MICOL et al., 2011, BREDEMEYER et al., 2006). Por outro lado, postulou-se que a translocação cromossômica nas regiões dos cromossomos 7 e 14 que estão associadas a receptores de células T e regiões codificadoras de Ig de cadeia pesada pode estar envolvida na imunodeficiência em pacientes com AT (KOJIS, GATTI, SPARKES, 1991). Esses pacientes também apresentam disfunção tímica. Como a ATM regula a resposta ao estresse oxidativo e protege os timócitos contra a apoptose,

essa disfunção pode ser causada pelos efeitos do estresse oxidativo devido a deficiência de ATM observada na AT. Além disso, as células T virgens podem ser mais suscetíveis que as células T maduras em condições de estresse oxidativo(AMIRIFAR et al., 2019).

6.2.3 ATAXIA-TELANGIECTSIA E COMPLICAÇÕES NEUROLÓGICAS:

O principal aspecto da manifestação clínica de pacientes com mutações em ATM são processos neurodegenerativos. A neurodegeneração progressiva e espinocerebelar geralmente se manifesta entre os 6 e os 18 meses de idade. A Ataxia muitas vezes é o primeiro sinal diagnóstico que ocorre nesse período. Após os 10 anos, os problemas de movimento normalmente fazem com que uma criança fique confinada a uma cadeira de rodas (HOCHE et al., 2012). Os pacientes AT manifestam sinais de disfunção cerebelar, como balanço truncal, ataxia de marcha, dissinergia, hipotonia muscular e quedas súbitas (BODER & SEDGWICK, 1970; AMIRIFAR et al., 2019), e podem ter movimentos involuntários anormais, incluindo coreia, distonia, disfagia, atetose, sacudidelas mioclônicas ou vários tremores. Geralmente, uma forma grave de coreia e distonia é observada em 90% dos pacientes (SHAIKH & MARTI, 2011; SHAIKH et al., 2013). Movimentos oculares anormais e distúrbios visuais causados pela degeneração do córtex cerebelar é também observado em AT (Lewis et al., 1999).

Até o momento, a correlação entre o fenótipo neurodegenerativo e a deficiência de ATM permanece sem solução, mas a hipótese sugerida é que a ATM pode funcionar como o principal agente na manutenção da homeostase celular e na prevenção de doenças no sistema nervoso. A proteína ATM normal pode permitir que os neurônios possam reparar o DNA danificado ou iniciar o caminho da apoptose (KRUMAN et al., 2004; LEE & MCKINNON, 2007). Por outro lado, a neurodegeneração pode ser atribuída à homeostase deficiente de espécies reativas do oxigênio (ROS) após a disfunção da ATM nos neurônios (HOCHE et al., 2012). Outro fator sugerido para a neurodegeneração é a concentração sérica elevada da alfa-fetoproteína (AFP), um marcador para o diagnóstico de pacientes com AT, que tem sido associado ao mecanismo do processo neurodegenerativo.

6.2.4 DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DE AT

Existem alguns distúrbios semelhantes a AT com características clínicas e laboratoriais parecidas. Como por exemplo a ataxia-telangiectasia tipo desordem 2 (ATLD2), ataxia oculomotora apraxia tipo 1 (AOA1), ataxia oculomotora apraxia tipo 2 (AOA2), síndrome de RIDDLE (deficiência de RNF168) e ataxia espinocerebelar com neuropatia axonal (SCAN1) (AMIRIFAR et al., 2019)

A alfa fetoproteína sérica alta é um dos achados laboratoriais da ATM, mas também está alta em outras doenças como AOA2 e RIDDLE. Dessa forma, é de extrema importância fazer o exame genético e comprovar a mutação no gene da ATM, além de observar a presença de ataxia, imunodeficiência, telangiectasia, radiossensibilidade e aumento da AFP, que são fatores que ajudam a diferenciar a AT de outras doenças (AMIRIFAR et al., 2019).

Porém os critérios da ESID (European Society for Immunodeficiencies) esclarecem que para o diagnóstico de AT o paciente precisa ter ataxia e pelo menos mais duas dessas manifestações: telangiectasia oculocutânea, alfafetoproteína elevada cariótipo AT em linfócitos T e hipoplasia na ressonância magnética (AMIRIFAR et al., 2019)

O transplante de células-tronco hematopoéticas para esses pacientes é uma possibilidade e mostrou certa eficácia com o sistema imunológico, mas a sobrevida dos pacientes não melhorou, uma vez que esse transplante não melhora o fenótipo neurodegenerativo da doença. Apesar de nenhum tratamento ser completamente efetivo para a doença, os pacientes podem fazer uso de medicamentos para diminuir os sintomas neurológicos, como amantadina, fluoxetina, buspirona, triexifenidila, baclofeno e clonazepam. Além disso, os glicocorticóides (especialmente dexametasona e betametasona), têm sido relatados por melhorarem os sintomas neurológicos (AMIRIFAR et al., 2019).

O uso de imunoglobulinas é uma solução viável para diminuir as infecções recorrentes em pacientes com AT, além de tratamento profilático com antibióticos (VAN OS et al., 2017) e a vacinação contra patógenos bacterianos respiratórios comuns, como Hemophilus influenzae, vírus influenza e pneumococos, que melhora o status da imunidade nesses pacientes (NOWAK-WEGRZYN et al., 2004).

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