• Nenhum resultado encontrado

A noção de atenção primária à saúde (APS) difundiu-se pelo mundo a partir de 1978, quando da realização da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde, em Alma Ata.

No documento final da Conferência, a APS é apresentada como um componente importante do desenvolvimento social dos países e elemento-chave para o alcance da saúde global no ano 2000, principal objetivo acordado pelos participantes da Conferência (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1978). É definida como:

Cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentados e socialmente aceitáveis, colocados ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, através de sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam sustentar em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de auto- suficiência e autodeterminação. É parte integral do sistema de saúde de um país, do qual é a função central e o foco principal, e de todo o desenvolvimento social e econômico da comunidade. É o primeiro nível de contato dos indivíduos, famílias e comunidades com os sistemas nacionais de saúde, aproximando-se o máximo possível do lugar onde as pessoas vivem e trabalham, e constitui o primeiro elemento de um continuado processo de cuidado à saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1978) (livre tradução da autora).

Na definição de Alma Ata, observa-se um caráter polissêmico para a Atenção Primária: a APS refere-se, a um só tempo, a um determinado tipo de cuidado, um dado tipo de tecnologia e um nível de atenção específico - o primeiro e mais importante - dos sistemas nacionais de saúde.

No Brasil, movimentos de base acadêmica, como os da Medicina Preventiva e da Medicina Comunitária, já trabalhavam com proposições de APS muito antes da Conferência de Alma Ata (IBAÑEZ E COLS, 2006). Entretanto, foi a partir do proposto pela Conferência de Alma Ata que a noção passou a ter maior espaço na agenda nacional de políticas públicas do setor saúde.

A APS ganhou grande relevância no processo de racionalização dos sistemas de saúde ao redor do mundo (IBAÑEZ E COLS, 2006). Para alguns autores, foi essa a característica que determinou sua centralidade nos processos de reforma desses sistemas ao longo dos anos setenta e oitenta, já que todos tinham como objetivo a busca da redução dos custos da assistência médica, a maior eficiência e a descentralização dos serviços de saúde (IBAÑEZ E COLS, 2006). Nessa perspectiva sistêmica, a atenção primária diferenciava-se

dos demais níveis de atenção por seu baixo grau de incorporação de tecnologias materiais e pelo tempo relativamente menor de capacitação de seus profissionais em comparação com os de outros níveis de atenção (ELIAS, 2001).

A associação da APS à racionalização dos recursos e à simplificação tecnológica deixou uma conseqüência deletéria para a dimensão dos cuidados a ela atribuídos: sua associação, no imaginário coletivo, ao baixo custo, à simplificação e à baixa qualidade (SCHRAIBER E COLS, 2000).

No final dos anos 1980 e início da década seguinte, ou seja, no processo de consolidação do Sistema Único de Saúde, o conceito de atenção primária foi substituído no Brasil pela noção de atenção básica, sendo esta a nomenclatura oficial adotada pelo Ministério da Saúde atualmente. Para alguns autores, isso teria sido resultado da estigmatização do termo atenção primária, causada pela idéia de racionalização e focalização a ele conferida na década de setenta. (GIL, 2006).

Ao longo dos anos, os termos atenção primária e atenção básica têm sido utilizados de maneiras diversas no âmbito da saúde pública brasileira, seja no campo das políticas, seja no da produção teórica. Alguns autores argumentam que isso denota uma inconsistência conceitual que pode ter conseqüências sobre o rumo dado às ações de saúde que compõem esse nível de atenção (IBAÑEZ E COLS, 2006).

No entanto, a substituição do termo atenção primária por atenção básica no contexto atual do Sistema Único de Saúde não parece refletir uma mudança na compreensão da função desse nível de atenção. Ao contrário, a similaridade entre as definições de atenção primária, proposta nos anos 1970, e a de atenção básica correntemente utilizada pelo Ministério da Saúde em suas políticas, indica uma compreensão sinonímica desses termos.

A Portaria 648 GM/2006, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), a define como um conjunto de ações de saúde de caráter individual e coletivo, localizadas no primeiro nível de atenção, voltadas para promoção e reabilitação da saúde, prevenção, diagnóstico e o tratamento de agravos. Sua atuação deve se dar, segundo o Ministério da Saúde:

(...) Por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. (BRASIL, 2006a)

Para tanto, a APS “utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu território” (BRASIL, 2006a). É o contato preferencial dos usuários com o sistema de saúde, cujo funcionamento é estratégico para a resolubilidade do SUS. Os princípios que a orientam são: universalidade, acessibilidade e coordenação do cuidado; vínculo; continuidade; integralidade; responsabilização; humanização; eqüidade; e participação social. Entre seus fundamentos, está o de efetivar a integralidade em seus vários aspectos: integração entre ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de promoção, prevenção, vigilância, tratamento e reabilitação; integração do trabalho interdisciplinar e em equipe; e coordenação do cuidado na rede de serviços (Brasil, 2006a). Entendida como uma tecnologia e ao mesmo tempo um nível de atenção específico, a APS é estratégica para a concretização dos mais caros princípios da saúde pública brasileira.

Como no Brasil, a APS tem sido prioridade nos processos de reorganização do setor saúde em diversas partes do mundo. A experiência de vários países mostra que a ênfase na APS tem obtido vários efeitos positivos, entre eles o aumento da eficácia técnica dos sistemas de saúde, com melhorias em vários dos tradicionais indicadores de saúde (STARFIELD, 2002; SHI E COLS, 2005; HEFFORD E COLS, 2005).

Olhar para essa eficácia técnica implica analisar as características da APS como tecnologia, isto é, como uma modalidade específica de articulação de instrumentos materiais (equipamentos e insumos) e não materiais (saberes técnicos e dispositivos de organização do trabalho) que é operada pelos profissionais de saúde na produção do cuidado (MENDES-GONÇALVES, 1994).

Nesta direção, a APS é entendida tal como a apresentam Schariber e cols (2000): uma abordagem tecnológica específica, adequada e necessária à resposta a determinadas necessidades de saúde, que emprega recursos assistenciais que demandam alta capacidade resolutiva e alta sensibilidade diagnóstica. Trata-se de uma forma específica de organização da prática do trabalho em saúde, dotada de particular complexidade, que lida com dimensões da saúde que extrapolam o corpo biológico individual e buscam acessar as dimensões coletivas dos processos saúde-doença. Assim, mesmo quando se constituem em casos instrumentalmente simples e, eventualmente, patologicamente mais fáceis, os

problemas de saúde cuja resolução é atribuída à APS envolvem grande complexidade assistencial e epidemiológica (SCHRAIBER E COLS, 2000).

II. A ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA COMO MODELO DE

Documentos relacionados