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Quando o cientista acredita dar conta de todas as contingências da vida é porque ele presume que o mundo, a vida, ou as coisas são óbvias por conta própria. Acontece que a qualidade de obviedade do óbvio não está nas coisas em si mesmas. Deste modo, retornar as coisas mesmas (zu den Sachen selbst) não deve ser compreendido ao modo científico e convencional. Segundo Goto (2008, p. 74) ―...as coisas (Sachen) que a máxima fenomenológica expressa não são objetos (...)‖, mas ―tudo aquilo que podemos intuir de forma livre e espontânea, ou seja, tudo aquilo que é intuído diretamente da experiência‖(Ibidem, p. 75). Nas palavras de Husserl (2006): Este mundo, ―não está para mim aí como um mero mundo de coisas, mas em igual imediatez, como um mundo de valores, como um mundo de bens como um mundo prático‖ (Ibidem, p. 75).

Seguindo esta mesma linha de pensamento, Husserl (Id.Ibid.) entende que tal como vale para as ―‗meras coisas‘ isso vale naturalmente também para os seres humanos e animais de meu meio circundante. Eles são meus ‗amigos‘ ou ‗inimigos‘, meus ‗subordinados‘ ou ‗superiores‘, ‗estranhos‘ ou ‗parentes‘ etc‖. Com esse movimento Husserl assume, ou melhor, reassume, ainda que na orientação natural, um mundo de sentidos tão frequentemente cauterizado pela ciência. O mundo, portanto, não é óbvio, mas sim a maneira como tratamos o mundo é que se torna óbvia.

É a nossa relação com as coisas e com os outros que pode se tornar óbvia. São os sentidos sedimentados e estabelecidos por essa relação que se tornam óbvios. Por outro lado, não podemos atribuir às coisas uma obviedade resultante da frequência com que elas se dão, mas ao sentido que empregamos a cada um dos acontecimentos vividos. Portanto, isto que estamos chamando de óbvio não é a mesma coisa que as Naturwißenschaften chamam de natureza, embora nós mesmos estabeleçamos relações naturalizadas com os fenômenos à nossa volta, inclusive os fenômenos naturais.

Nas tradições fenomenológicas existem algumas expressões que contemplam o sentido disso que chamamos de óbvio sendo a noção de ―atitude natural‖ uma das mais corriqueiras.

É preciso, todavia, tomar algumas precauções para que não haja uma confusão entre a atitude natural e a atitude naturalística. Dan Zahavi (2003)32 comenta que a atitude natural é uma espécie de suposição realística tão fundamental e tão profundamente enraizada que não apenas se torna inquestionável para as ciências positivas, mas antes permeia toda a nossa vida pré-teórica. Se pudéssemos traçar uma corda entre os pontos extremos do pensamento de Husserl, de sua fase inicial à posterior, poderíamos dizer que a atitude natural é o modo ingênuo, mas original e primeiro, com o qual nos relacionamos com o Lebenswelt. Em outros termos, trata-se de uma espécie de fé primordial ou ainda uma Weltthesis. Mas o que seria a Weltthesis ou ainda uma fé perceptiva?

Em um tópico chamado ―Reflexão e Interrogação‖ - que consiste nas primeiras palavras de O visível e o Invisível, Merleau-Ponty (2000), inicia o tema da fé perceptiva fazendo o seguinte comentário: ―Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos – fórmulas desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e ao filósofo desde que abre os olhos, remetem a uma camada profunda de ―opiniões‖ mudas, implícitas em nossa vida‖ (Ibidem, p. 15).

Entretanto, diz o autor, existe uma estranheza nessa fé. É que ―se procuramos articulá- la numa tese ou num enunciado, se perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e contradições‖ (Id.Ibid.). Gostaríamos aqui de aproximar o que chamamos de óbvio muito mais desse sentido atribuído por Merleau-Ponty (2000) ao que ele mesmo chama de fé perceptiva. Entendemos que existe uma cumplicidade paradoxal entre a clareza com o que o mundo nos é dado e a escuridão na qual penetramos logo que iniciamos a nos questionar sobre ele. Para quem nasce na escuridão e nunca foi lhe dado a saber outro modo ver, só se torna possível saber que se vivia na escuridão quando alguém acende a luz.

Em O filósofo e sua sombra, Merleau-Ponty (1975b), volta ao tema da reflexão para então falar da Weltthesis: ―A reflexão de Husserl, ao mesmo tempo em que tenta uma retomada universal, nota que há, ali no irrefletido, ‗sínteses que permanecem aquém de toda tese‘‖ (Ibidem, p. 434). Trata-se de uma tese original da qual derivam as demais e dentre elas

32 ―The most fundamental one is our implicit belief in the existence of a mind-, experience-, and theory – independent reality. This realistic assumption is so fundamental and deeply rooted that it is not only accepted by the positive sciences, it even permeates our daly pretheoretical life, for which reason Husserl call it the natural atitude. Regardless of how obvious and natural this assumption might seem, Husserl insists that it is philosophically unaccetable to take its validity for granted‖ (ZAHAVI, 2003, p. 44, grifo nosso).

a própria modalidade de conhecimento, de ciência e do ‗senso comum‘. Da relação entre a Weltthesis e a atitude natural, Merleau-Ponty (Id.Ibid.) afirma que esta última ―só se converte verdadeiramente numa atitude (...) quando se transforma em tese naturalista, mas, em si mesma, conserva-se imune às censuras que podem ser feitas ao naturalismo porque é ‗anterior a toda tese‘‖ (Id.Ibid.). Neste ponto Merleau-Ponty faz um discernimento entre a atitude natural e o que conhecemos como o naturalismo científico.

É de um valor imprescindível para a compreensão desse assunto ressaltar a peculiaridade com que Merleau-Ponty fala da atitude natural nesse texto. Ele afirma que a atitude natural só se torna atitude verdadeiramente atitude quando esta se transforma em tese naturalista. Com isso Merleau-Ponty (2000) salienta exatamente a existência de uma cristalização ou de um embalsamento33 do óbvio do qual resulta uma tese naturalista. É excepcionalmente a esta que se direciona nossa mais importante necessidade de crítica e reflexão, pois é impossível prescindir da atitude natural enquanto região da Weltthesis. Segundo Merleau-Ponty (2000) em uma de suas notas de trabalho em O Visível e o Invisível, nosso exercício consiste em investir de tempos em tempos o ―fracasso da tese‖, pois através desse fracasso é que se desvela novamente a Fonte das teses (Weltthesis)34 e o ―Lebenswelt físico histórico, ao qual se trata de voltar...‖ (Ibidem, p. 170).

Voltando a O filósofo e sua sombra, Merleau-Ponty (1975b) prossegue afirmando que a atitude natural implica ―o mistério de uma Weltthesis antes de todas as teses, uma fé primordial (Urglaude), uma opinião originária (Urdoxa), como diz alhures Husserl...‖ (Ibidem, p. 434). Ainda segundo Merleau-Ponty ―A reflexão só pode ―ultrapassar‖ essa abertura ao mundo usando poderes que esta lhe dá‖ (Id.Ibid.), e ao mesmo tempo ―o irrefletido só começa a existir para nós através da reflexão‖ (MERLEAU-PONTY, 2015, p. 57). Ou seja, a reflexão usa os poderes concedidos pela própria Weltthesis, mas só alcançamos esse irrefletido pela reflexão. Portanto, a atitude natural é anterior à ciência e, portanto, anterior a qualquer formatação que esta venha a fazer do mundo. ―A crença em um espírito absoluto ou em um mundo em si separado de nós é apenas uma racionalização desta fé primordial‖ (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 548). Ela assim como a atitude natural não se restringe ao que a ciência chama de natureza, embora saibamos que em ―seus começos, a

33 Merleau-Ponty (2000) nomeia esta atitude de dialética embalsamada: ―A dialética transformada em tese (enunciado) não é mais dialética (dial. ‗embalsamada‘)‖ (Ibidem, p. 170).

34

―O fracasso da tese, sua inversão (dialética) desvela a Fonte das teses, o Lebenswelt físico histórico, ao qual se trata de voltar...‖ (Id.Ibid.).

ciência retoma e sistematiza essa crença‖ da atitude natural (MERLEAU-PONTY, 1975c, p. 377).

A atitude natural implica não apenas uma atitude de um espírito, mas uma certa região, um horizonte, o alcance do olhar pessoal em uma jurisdição existencial e comunitária. É por essa razão que Husserl (2006) falava de "uma orientação natural‖ em um mundo a minha volta em toda a sua obviedade. Segundo Husserl (2006) nós devemos iniciar ―nossas considerações como homens da vida natural, representando, julgando, sentindo, querendo ―em orientação natural‖ (p.73). Esta afirmativa evidencia claramente o que nomeávamos a pouco por um movimento de reconhecimento. Ainda em um trecho de Ideias I Husserl (2006) prossegue: ―Tenho consciência de um mundo cuja extensão no espaço é infinda, e cujo devir no tempo é e foi infindo. Tenho consciência de que ele significa, sobretudo: eu o encontro em intuição imediata, eu o experimento‖ (Ibidem, p. 73). Trata-se de um mundo dado e disponível aí, mas que encerra, dizia Husserl (2006), um ―horizonte enevoado e jamais plenamente determinável...‖ (Ibidem, p. 74).

Quando Husserl diz que precisamos voltar às coisas mesmas ele está nos dizendo que é preciso voltar ao óbvio. Todavia o cerne desta tarefa não está nas coisas elas mesmas, mas sim, no movimento de retorno que se dá entre mim e as coisas mesmas, ou seja, o movimento de retomar e retornar ao óbvio. Voltar às coisas mesmas implica um reconhecimento que deve ser a preparação na qual o sujeito da experiência se dá a um novo conhecimento. O reconhecimento é o princípio de uma atitude fenomenológica, mas é também paradoxalmente resultado dela. Trata-se inicialmente de reconhecer que é necessário reconhecer. Este segundo reconhecimento já é fruto da atitude fenomenológica. Em termos de percepção, trata-se de admitir os pontos cegos da evidência para dar-se uma nova perspectiva. A fenomenologia só admite a gratuidade do óbvio para logo em seguida suspendê-la.