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Restringir a ideia de corpo à noção de soma (Sõma-atos) é compreender o organismo enquanto soma (summa). É olhar para o corpo sempre em uma perspectiva somatológica. As ciências médicas, em especial compartilham dessa concepção de corpo e a psicologia quando se ampara na reflexologia não faz muito diferente. A somatologia, tal como indica seu prefixo – soma -, é um olhar sobre o corpo anatômico, um corpo sem vida. Segundo estudo de Bezas e Werneck (2012), a palavra soma não tinha o corpo como significação nem tampouco tinha alguma relação com o homem vivo. ―A palavra soma só passava a existir após a morte, ou seja, o significado mais próximo, transferido para os dias de hoje, seria ‗cadáver‘‖ (Ibidem, p. 322). Portanto a acepção somatológica que temos do corpo compreende originalmente uma ciência do cadáver. A somatologia está mais próxima da anatomia que da fisiologia. Acontece que a anatomia antecedeu a explicação fisiológica, pois é da anatomia que a fisiologia herda uma compreensão somática cujo ―soma‖ é um soma (tório) de células, órgãos, e sistemas. O

Sõma corporal é, portanto, nessa compreensão, uma soma de sistemas. Um aglomerado de estruturas e mecanismos em mosaico.

Tal concepção de um organismo que é sistema ou somatório de funções é ensejo para recordarmos mais uma vez o jovem Dostoiévski (2012). A respeito dessa compreensão matemática da vida ele pergunta: ―Dois mais dois serão sempre quatro, mesmo sem a minha vontade. Será que vontade própria desse tipo pode existir?‖ (Ibidem, p. 42). Ou seja, existe espaço para uma falarmos de intencionalidade e de vida numa compreensão tão aritmética de corpo? Dostoiévski (2012) realiza uma crítica sutil à ambição de muitos cientistas que se esforçam em encontrar os ―dois e dois são quatro‖ da vida e da existência. Mas para o escritor russo tal resultado esgota da vida toda a possibilidade de vontade e, portanto, tenta dar conta da existência humana pela via das leis da natureza.

Não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou, em outras palavras, à própria vida, e não ao objetivo exatamente, o qual, evidentemente, não deve passar de dois e dois são quatro, ou seja, uma fórmula, e dois e dois são quatro já não é

vida, senhores, mas o começo da morte (Ibidem, p. 44, grifo nosso).

Nós sabemos com Merleau-Ponty (2006a), que existe uma doutrina cumulativa do organismo que se estende da embriologia – espermatozoide + óvulo= zigoto – até a aprendizagem dos comportamentos (conhecimento acumulado) ou à noção de história (passado como acúmulo de presentes) ou memória. Nessas condições, o organismo seria o análogo de um depósito e o tempo seria uma substância. O que se busca com uma ideia somática e somatória de organismo é o alcance de um corpo consumado. ―Está tudo consumado...‖ disse Cristo e, então expirou. O corpo consumado é o corpo sem vida. É o cadáver, ―...dois e dois são quatro já não é vida, senhores, mas o começo da morte‖(DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 44).

Uma diferença emblemática que nos ajuda a visualizar a diferença entre a reflexologia de Pavlov (1980) e a fenomenologia de Merleau-Ponty (2006a, 2011) é que para a primeira ―todo corpo é um sistema dinâmico‖ (PAVLOV, 1980, p. 139), que o ―homem é um sistema, uma máquina, e ele está submetido, como qualquer outro sistema na natureza, às mesmas leis naturais, irrefutáveis e comuns‖ (Ibidem, p. 124). Para Merleau-Ponty (2006a), o ―construir um modelo físico do organismo seria construir um organismo‖ (Ibidem, p. 236) o que subentenderia o projeto de corpo como mero sistema. Para Pavlov (1980), devemos analisar e compreender um rosto a partir de um de seus traços para então considerá-lo tranquilo, calmo

ou teimoso. Pavlov entende que compreendemos o rosto de outro ser humano operando objetivamente uma análise elementar a fim de encontrar que parte dele me dá a entender que aquela pessoa é teimosa ou alegre, por exemplo. Em outras palavras, ―sem decompor nas partes constituintes é impossível compreender. O mesmo se dá naquilo que concerne ao caráter humano‖ (PAVLOV, 1980, p. 140, grifo nosso).

Em uma de suas aulas ministradas na Sorbonne53, Merleau-Ponty (1990), considera que ―a criança é, desde cedo, sensível ao sorriso‖ (Ibidem, p. 70). Mas como poderia ―saber tão cedo que esse sorriso é sinal de benevolência?‖. Para Merleau-Ponty (1990), a criança não alcança o significado de um sorriso por uma operação de raciocínio análogo, mas pela percepção da conduta do outro segundo a percepção do próprio corpo, ou melhor, do corpo próprio. A criança – e nem tampouco o adulto-, acessa o psiquismo de outrem para então compreendê-lo. É pelo comportamento, é ―na sua conduta que vou poder apreender, encontrar o outro: as ações têm um sentido‖ (Ibidem, p. 71). Portanto:

Um bebê de alguns meses já tem habilidade suficiente para distinguir a simpatia, a raiva e o medo no rosto do outro, num momento em que ainda não poderia ter aprendido, pelo exame de seu próprio corpo, os sinais físicos dessas emoções. É, portanto, porque o corpo do outro, com suas diversas gesticulações, lhe aparece de imediato investido de uma significação emocional, é assim que ele aprende a conhecer o espírito, tanto como comportamento visível quanto na intimidade de seu próprio espírito (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 48).

Ou seja, é pelo e no sentido das relações que o significado de um sorriso é tanto reconhecido quanto expresso. Dizemos reconhecido porque a criança descobre por si mesma que pode sorrir, que as situações descobrem nela a capacidade e mais do que isso, a potência de expressão de um sorriso. A criança não apenas decodifica sinais e os imita por um raciocínio analógico do organismo, ela entende com seu esquema corporal o significado da iniciativa ou da devolução de um sorriso. Ela pode tanto sorrir de volta quanto sorrir consigo mesma e neste último aspecto se revela a ambiguidade do corpo próprio.

A partir do exemplo da afeição das crianças recém-nascidas pelos rostos mais familiares e dentre eles, em especial o da mãe, Merleau-Ponty (2006a), comenta que, caso seguíssemos os postulados de Pavlov e conservássemos a hipótese das sensações, as

tendências e as afeições da criança recortariam o rosto de outrem num mosaico das sensações para enfim lhes dá um valor de signo. Mas ―meu corpo é conhecido não só por sensações internas, mas também por um esquema corporal‖ (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 71). E se assim for verdade ―disso resulta que a percepção de meu corpo pode ser transferida a outro e que a imagem do outro pode ser imediatamente ―interpretada‖ por meu esquema corporal‖ (Ibidem, p. 71).

Sendo assim, ―é possível perceber um sorriso ou mesmo nesse sorriso um sentimento sem que as cores e as linhas que ―compõem‖, como dizem, o rosto, estejam presentes na consciência ou dadas num inconsciente‖ (Ibidem, p. 260). Enfim, para Merleau-Ponty (2006a), um rosto não é a soma de sensações em mosaico, mas um ―centro de expressão humana, o invólucro transparente das atitudes e dos desejos do outro, o lugar do aparecimento, o ponto de apoio quase imaterial de uma multiplicidade de intenções‖ (Ibidem, p. 260).

O esforço que Merleau-Ponty (2006a) emprega em A Estrutura do Comportamento é o de radicalizar os paradigmas da reflexologia e do behaviorismo até seus limites de dissolução a fim de demonstrar que o ―processo da excitação forma uma unidade indecomponível e não é feito da soma de processos locais‖ (Ibidem, p. 130). Ao abordar cada uma das partes de um processo de execução da conduta, o filósofo demonstra que cada parte desse ‗sistema‘ perde o seu sentido ao ser compreendida fora do contexto do organismo em sua totalidade. Seu interesse era o de inicialmente evidenciar ―a impossibilidade de reduzir a uma soma de partes reais o todo do comportamento‖, ou seja, que ―a fisiologia não poderia reduzir o comportamento a partir do funcionamento cerebral conhecido por medidas cronáxicas ou, mais comumente, por métodos físicos, e que inversamente é a análise psicológica do comportamento mórbido‖ (Ibidem, p. 147) tal como demonstramos com a abordagem somatológica.

Caso o organismo fosse um somatório de processos físico-químicos, então seria facilmente possível compreender a realidade de qualquer comportamento, não sobrando espaços para equívocos de condicionamento, da compreensão de gestos ou mesmo dos psicodiagnósticos. Havendo realizado uma decomposição de tais processos, compreenderíamos as partes problemáticas e defeituosas. Não haveria inclusive uma psicossomática, porque tudo se passaria sob a ordem física, mas a este ponto estaríamos

tratando um corpo em decomposição e por decomposição. A questão é que o todo nunca é a soma das partes54.