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Atividade física esportiva em espaços públicos urbanos: possibilidades sensitivas e reflexivas

CORPO CORPO-MÁQUINA, MÁQUINA, MÁQUINA, MÁQUINA, MÁQUINA, TECNOLOGIAS E

2. Atividade física esportiva em espaços públicos urbanos: possibilidades sensitivas e reflexivas

Claudia Miranda Souza

Neste artigo, tratamos de questões relativas ao corpo e a pessoa, atividades físicas esportivas e saúde, particularmente aos significados das práticas corporais de movimento (como a caminhada, a corrida e a ginástica) que são realizadas em áreas públicas em Salvador. A análise e a interpretação dos seus significados recaem sobre o uso que é feito daquelas áreas para atividades físicas esportivas, realizada por meio de observação etnográfica dos processos coletivos e de reconstrução de trajetórias individuais através do discurso dos praticantes, de maneira a identificar diferenças e semelhanças nas concepções e práticas entre estes. O estudo fundamenta-se na abordagem etnográfica focalizada, em especial, no modelo “semântico-pragmático” proposto por Bibeau (1992), articulando o conjunto de práticas e comportamentos aos sistemas semiológicos, popular e interpretativo, de determinado grupo de indivíduos. Propõe-se, assim, compreender como os sistemas culturais influenciam as concepções e ações dessas práticas na atualidade, estabelecendo uma reflexão sobre os modelos (científico e popular) dos signos e significados relacionados ao corpo, atividade física-esportiva e saúde.

A relação corpo, atividade física, esporte e saúde, tanto no meio acadêmico como fora deste, tem sido cada vez mais fortalecida em nossa sociedade, representando tema de grande relevância para discutir fenômenos do mundo contemporâneo. Neste sentido, esta relação vem se constituindo objeto de estudo em vários campos de conhecimento como medicina, educação física, sociologia, antropologia, história, entre outros, que buscam conhecer, compreender e explicar esta relação a partir de ângulos e perspectivas diferenciadas.

A partir de um enfoque sociológico, alguns estudos, como Le Breton, na França (2003); e Couto, no Brasil (2000) discutem a relação do corpo com a sociedade tecnológica, e alertam que o homem moderno assumiu, quase incontestavelmente, ou seja, sem estabelecer canais de resistência ou possibilidade reflexiva, sua identificação como máquina, como objeto. Estudos, tal como o livro Adeus ao Corpo, de Le Breton (2003), alertam que a sociedade atual tende a suplantar completamente o corpo do homem à medida que as tecnociências otimizam a inteligência artificial. Para esta sociedade, afirma o autor (2003), o corpo não responde “à altura as capacidades exigidas na era da informação”. Nosso corpo, argumenta o autor, tornou-se “lento, frágil, incapaz de memória”. Por isso, complementa Le Breton, o homem sente-se impelido a livrar-se de seu corpo, “forjando um corpo biônico” (2003, p.25). Sob esta visão, estaríamos vivendo uma nova “versão de dualismo”, onde “não mais opomos o corpo ao espírito ou alma, mas, ao próprio sujeito” (idem, p.28).

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Na mesma direção, para Couto (2000), “o culto ao corpo na atualidade” exige um redimensionamento e uma transposição das limitações corpóreas no sentido da construção de “um corpo híbrido promovido pela tecnociência por intermédio da crescente mixagem homem-máquina” (2000, p.22). “A mixagem do homem-máquina”, explica mais adiante o referido autor, se configura como um qualificador da corporeidade humana, uma co- evolução, onde a biotecnociência qualifica o organismo, enriquecendo e revitalizando as suas atividades e a sua própria existência (idem, p.175).

A discussão sobre a influência tecnológica associada ao corpo do homem, tão bem explorada pelos autores acima citados, embora ofereça importantes elementos para maior compreensão da ideologia dominante que cerca as concepções e práticas corporais e de saúde no contexto geral da sociedade tecnológica contemporânea, suscita algumas reflexões em torno dos possíveis contrastes e conflitos que este mesmo homem vivencia cotidianamente, nos diferentes contextos socioculturais em que se encontra inserido e participa.

Uma questão que nos parece muito pertinente considerar nestas reflexões é o fato de reconhecermos a coexistência de diferentes significados e práticas corporais, algumas vezes complementares, ou seja, não excludentes, as quais caracterizam a “dinâmica dialógica das culturas”, parafraseando Dumont (1985). Isto significa dizer que o homem contemporâneo, embora disponha de todo um sistema biotecnológico de alta complexidade para uma construção ou transformação (radical) do corpo, ele não abandona completamente as formas tradicionais de lidar com este corpo e a saúde, usando, assim, tecnologias complementares: tradicionais e modernas. Além do mais, concretamente não se deve imaginar que o homem moderno, no seu cotidiano, está sempre opondo o corpo ao mental, o biológico ao social e assim por diante. Segundo MacCallum (1998), há muitas evidências de que o homem contemporâneo, em diversas situações e realidades socioculturais, percebe o corpo de forma integrada, “onde a matéria e o espírito não são necessariamente opostos”. Assim é que, a partir desta visão, a saúde e a doença também são compreendidas como processos integrados simultaneamente ao corpo e ao espírito. Neste caso, para se compreender as diferentes expressões da corporeidade do homem contemporâneo, torna-se mais prudente reconhecê-lo em um determinado universo sociocultural, investigando a dinâmica desta cultura a partir da análise da interação das formas de convivência estabelecidas entre as pessoas, através dos seus corpos, e o meio ambiente.

É nesse contexto que analisamos como as práticas corporais de caminhada, corrida e ginástica, realizadas em áreas livres na cidade de Salvador, têm sentidos e significados que indicam uma percepção do corpo e da saúde como um processo contínuo e dialógico entre o tradicional e o moderno, em que as pessoas conseguem perceber sua dimensão corpo-alma e buscam resgatar suas potencialidades sensitivas através da valorização dos atributos naturais, históricos, paisagísticos e culturais dos espaços usados para essas práticas. Isso exige de imediato o reconhecimento e interpretação das relações existentes dos homens entre si e com os espaços onde as práticas são desenvolvidas, isto é, o espaço público urbano.

Trajetória do estudo

Partimos do princípio de que as práticas corporais de movimento, sejam lúdicas ou terapêuticas, são tão antigas quanto a própria humanidade. Para sua compreensão torna-

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se necessário o desvelamento de alguns códigos culturalmente construídos em diferentes momentos históricos, reconhecendo que não são somente os aspectos tecnológicos (racionais) ou economicamente caracterizados da vida moderna que determinam a construção e a interpretação da realidade.

Acreditamos que os estudos antropológicos representam um caminho fundamental para refletir e compreender essa questão. Pois, segundo o plano metodológico utilizado nesse tipo de estudo, é “da interação entre os processos coletivos e as trajetórias individuais que deveria surgir uma compreensão adequada das condições em que se desenvolvem os principais problemas de um grupo, assim como as estratégias que se elaboram para transformar o futuro” (BIBEAU, 1992, p.16).

Desta forma, optamos pela etnografia focalizada como estratégia de aproximação empírica do objeto de estudo, objetivando interpretar, compreender e explicar a dinâmica cultural em torno dos signos e significados de práticas corporais, inseridas no campo das atividades físicas esportivas em áreas públicas urbanas, ao tempo em que buscamos reconhecer de que modo estes significados estão associados à saúde-doença nestas práticas. Realizamos uma reflexão sobre esses significados e práticas, obedecendo a critérios e sistemas metodológicos baseados nas ciências sociais em saúde, os quais permitem reconhecer e compreender categorias problemáticas e significativas que se destacam na relação corpo, atividade física esportiva e saúde em um determinado grupo populacional. Através da abordagem antropológica, foi possível conhecer diferentes significados simbólicos ou teóricos que orientam as práticas de determinados indivíduos nas atividades físicas esportivas, possibilitando identificar diferenças e semelhanças dos mesmos no âmbito coletivo. Isto significa, essencialmente, a possibilidade de falar “de um sujeito coletivo através de casos particulares” (BIBEAU, 1997a, p.3). Com esse intuito, nos aproximamos dos praticantes de atividades físicas esportivas em espaços públicos da cidade, acompanhando cotidianamente suas práticas, analisando as trajetórias de vida das pessoas em torno delas, observando suas diferentes interações e múltiplos sentidos. O trabalho de campo sistemático exigiu nossa presença entre as pessoas que realizam as práticas das atividades físicas esportivas, para que pudéssemos identificar e selecionar alguns informantes-chave com os quais realizamos entrevistas. Assim, como parte da estratégia da observação participante, buscamos uma inserção e envolvimento no “ambiente social” dessas práticas, na tentativa de “conhecer as pessoas que estão envolvidas” com elas, observando “as suas rotinas diárias” e o que está acontecendo em torno delas (EMERSON, 1995, p.1 ).

A experiência acumulada, de maneira assistemática, seja como estudante de graduação em educação física há mais de quinze anos, ou como praticante eventual de atividades físicas na rua, nos ajudou a perceber uma grande diversidade de espaços e de práticas, apontando para a necessidade de delimitar o campo de estudo de forma a atender os objetivos da investigação. Primeiro, definimos as práticas, selecionando a caminhada, a corrida e a ginástica como principal objeto de observação e análise. Entendemos que essas modalidades integram atualmente um elemento comum na relação com o campo da saúde-doença em nossa sociedade, representando as manifestações culturais de movimento corporal de maior adesão na prática de atividades físicas esportivas e de lazer nos espaços públicos da cidade, atraindo a participação de pessoas de ambos os sexos, de diferentes idades e condições sociais.

Para selecionar os espaços, fizemos um mapeamento das áreas utilizadas para as práticas de caminhada, corrida e ginástica em áreas livres de Salvador, obedecendo a

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critérios tais como: 1) maior densidade de uso desses espaços pela população; 2) sua importância no contexto histórico das práticas de atividades físicas esportivas; 3) sua localização no conjunto da cidade, o que pode indicar uma maior homogeneidade ou heterogeneidade social dos praticantes de atividades físicas esportivas; 4) as intervenções físicas, nesses espaços, para melhor adequá-los às atividades físicas esportivas; 5) significados socioculturais para a comunidade onde as práticas ocorrem.

Observando esses critérios, optamos por realizar o estudo no Farol da Barra, Jardim de Alá e o Parque Dique do Tororó. A descrição sumária de cada um desses locais é fundamental para entender o significado das práticas de atividades físicas analisadas no estudo.

Espaços de práticas

O trecho da Barra trecho da Barra trecho da Barra trecho da Barra trecho da Barra estende-se das praias do Porto ao Farol da Barra. Este integra parte significativa da região sul que compõe a orla marítima de Salvador, e representa importante espaço de atração turística da cidade. Suas marcantes características histórico- culturais e paisagísticas colocam a área entre os principais cartões-postais de Salvador, da Bahia e do Brasil. Situada no ponto de encontro da Baía de Todos os Santos com a Orla Oceânica ao Sul da cidade, a Barra “é marco histórico-expressivo para todo o país”. PLANO URBANÍSTICO DA BARRA (1996). Foi neste espaço (e no trecho do Jardim de Alá e do Parque da Cidade) que surgiram os primeiros grupos de corrida de rua de Salvador. Foi também lá que encontramos os mais veteranos na prática de atividades físicas individualizadas.

Considerando o Plano Urbanístico da Barra (1996), o local representa “um dos bairros mais atingidos pelo processo de adensamento urbano nos últimos anos”. De acordo com este Plano, até os anos sessenta e setenta, “a Barra caracterizou-se como uma área tipicamente residencial das classes de renda média e alta, e como um bairro ‘boêmio’ por aglutinar, ainda que de forma dispersa, bares, restaurantes, cine-teatro e clubes sociais” (1996, p. s/n).

Para a OCEPLAN (1981), a Barra integra um dos trechos da orla-sul de Salvador “mais bem servidos de infra-estrutura [...] e de equipamentos urbanos significativos”, tais como hotéis, restaurantes, cinemas, centros de compras, além de outras variadas instituições. Dentre as características vocacionais da área, o Órgão Central de Planejamento ressaltou a habitação e as atividades de lazer e turismo, propiciadas através de atividades como banho de mar, prática de esportes (corrida, caminhada, futebol, peteca, frescobol etc.), recreação de adultos, do desfrute da paisagem, do local do encontro, da paquera, do namoro, da conversa. “Enfim, de muitas formas de interação social [sociabilidade] e do ‘relax’ dos que delas se utilizam” (BAHIA, 1981, p.27).

O PPPPParque Dique do Tarque Dique do Tarque Dique do Tarque Dique do Tarque Dique do Tororóororóororóororó também representa um espaço de grande valorororó paisagístico, histórico e cultural para a cidade de Salvador. Seu espelho d’água, originalmente bem mais extenso do que hoje, constitui um dos principais elementos paisagísticos do local, ocupando atualmente uma área física de 110 mil metros quadrados de espelho d’água e uma área de 25 mil metros quadrados no entorno, situado numa região central da cidade, entre as encostas dos bairros de Nazaré, Brotas, Garcia, Tororó, Barris, Jardim Baiano e Boulevard Suíço. No contexto geral do desenvolvimento urbano, o Dique se caracteriza, também, como um dos principais eixos de acesso que liga Salvador ao centro da cidade.

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Localizado numa região de expressivo significado histórico-cultural para a cidade, o Parque é rodeado e faz limite com diferentes bairros, alguns de pequenas dimensões, como o próprio bairro do Tororó, o Jardim Baiano e o Garcia; outros, de médias e grandes dimensões, como os bairros de Nazaré e Brotas, este com as suas subdivisões (Boa Vista de Brotas Cosme de Farias, Engenho Velho de Brotas etc.). A diversidade se manifesta também na heterogeneidade da população da área, que é configurada por diferentes aspectos socio-econômicos e ambientais que caracterizam cada um desses diferentes bairros. No seu conjunto, esses bairros se compõem de áreas densamente ocupadas, de paisagens antigas e modernas, de antigos e novos moradores e, na maior parte das vezes, reflete as condições de degradação de sua paisagem. A história desses bairros pode ser compreendida no contexto geral do processo de evolução urbana de Salvador, com a ampliação do centro da cidade e a ampliação da ocupação de regiões próximas a este, cuja paisagem, conforme salientou Santos (1959), “é rica de contrastes devido não só a multiplicidade de estilos e de idade das casas, à variedade das concepções urbanísticas presentes, ao pitoresco da sua população, constituída de gente de todas as cores misturadas nas ruas [...]” (Idem, p.29).

Santos (1959) considera que o Dique do Tororó é um dos principais palcos da cidade, assim como o é o centro antigo, refletindo, desta forma, o conflito entre o passado e o presente, o tradicional e o moderno. É o teatro da luta de tendências, cuja síntese “se manifesta pela criação de uma paisagem”. Os componentes desta paisagem “refletem uma parte de escolha, representada pelo estilo das construções e os processos de urbanismo, mas refletem, sobretudo as necessidades e condições próprias a cada etapa da evolução urbana” (1959, p. 22).

No que tange a sua estrutura atual, o parque Dique do Tororó dispõe de uma pista para caminhada e corrida com 2.600 metros de extensão, um setor de equipamentos de ginástica, e vários outros setores destinados a práticas de lazer ativo (como os parques infantis e o clube de remo), e passivo, onde as pessoas, freqüentemente, contemplam a paisagem do local e fazem atividades de relaxamento e meditação nos intervalos entre as atividades de caminhada, corrida e ginástica.

A praia de Jardim de Alá, Jardim de Alá, Jardim de Alá, Jardim de Alá, Jardim de Alá, terceiro espaço que compõe nosso campo de estudo, está situada mais ao norte da cidade, próxima a dois bairros de classe média alta, a Pituba e o Costa Azul. Embora, no passado, a praia tenha sido retratada como paradisíaca, devido às suas densas áreas verdes e extenso coqueiral, sua situação atual reflete o processo de degradação que vem sofrendo como resultado do desenvolvimento urbano desordenado. Apesar desses problemas de poluição ambiental, do ponto de vista paisagístico, esse trecho da orla marítima de Salvador tem como uma das suas características principais “a presença significativa de elementos naturais que constituem cenários de grande importância na configuração da sua paisagem”. SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO (1984). Essa configuração, segundo Macedo (2002), “reflete o modo tradicional de ocupação das praias nordestinas”, apresentando-se como “um parque de desenho informal” (2002, p.153).

A praia é bastante freqüentada por pessoas de diferentes bairros da cidade, especialmente nos finais de semana. Durante a semana, a maior concentração de pessoas se dá ao longo do seu calçadão e ciclovia, ligando os Parques Jardim dos Namorados (Pituba) e o Parque Atlântico (Boca do Rio). Do ponto de vista funcional, o Jardim de Alá apresenta uma extensa área de calçadão construída, envolvendo simultaneamente uma ciclovia, causando constantes conflitos entre pedestres e ciclistas, que são obrigados a

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dividir o mesmo espaço; algumas áreas destinadas à prática de ginástica com aparelhos; além de um número considerável de áreas de estacionamento em toda a sua extensão. É um local muito utilizado para o lazer, especialmente ativo, para a prática de caminhadas, corridas e ginástica, tanto pela população local, como por visitantes, principalmente pelo grande atrativo natural. A área do coqueiral também é muito freqüentada para atividades como contemplação da paisagem, meditação, aulas de tai chi chuan, ginástica, encontros amorosos etc.

O tradicional e o moderno nas formas de interação dos corpos