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Tratamento ou prevenção? Tecnologias em conflito no cuidado da saúde mental

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12. Tratamento ou prevenção? Tecnologias em conflito no cuidado da saúde mental

Milena Pereira Pondé & Carlos Caroso

Ao lado dos esforços para combater as doenças, encontra-se também a concepção de promoção da saúde no sentido positivo, buscando um padrão ideal de normalidade e bem-estar. A Organização Mundial da Saúde define saúde em termos de um estado de bem-estar físico, mental e social e não apenas como a ausência de doença (GENDRON, 1996). Para implementar políticas para alcançar um estado de saúde é necessário, primeiro, definir saúde em termos operacionais. Muitos esforços têm sido feitos nessa direção, resultando em vários instrumentos construídos para medir estados de saúde individual. A maioria dos instrumentos varia entre definições objetivas e universais e definições mais subjetivas.

Bergner et al. (1976) buscaram desenvolver medidas objetivas do estado de saúde que pudessem driblar as variações e os valores culturais. O intuito era encontrar formas de detectar pequenas variações no estado de saúde que pudessem ser aplicadas universalmente. Hunt et al. (1985) rejeitaram o critério objetivo porque o mesmo incluiria um julgamento clínico sobre as funções normais, desconsiderando as expectativas individuais. Esses autores sugeriram que, mesmo algumas limitações ou incapacidades poderiam ser percebidas pelos pacientes como normais após um período inicial de adaptação, enquanto que um ‘indicador objetivo’ seria estabelecido apenas através de projeções profissionais. A medida subjetiva que eles propõem promete uma forma de entender a saúde mental como um processo subjetivo e individual, em oposição a uma concepção objetiva e universal. No entanto, para medir tal fenômeno subjetivo, os autores propõem um questionário estruturado que contém perguntas como “Está cansado todo o tempo?”, “Tem dores à noite?”, “Esqueceu o que é prazer?”, não saindo, portanto, do modelo de perguntas tipo “sim” e “não” definidas pelo pesquisador.

Avanços das tecnologias biomédicas para o tratamento das doenças resultaram num aumento da expectativa de vida para pessoas com doenças crônicas, originando instrumentos que buscam avaliar a qualidade de vida em face de doenças clínicas como esquizofrenia, cardiopatia, doença renal, epilepsia etc. Atualmente é disponibilizado um incontável arsenal de instrumentos e técnicas que visam identificar como está a vida do paciente, através da avaliação de alguns aspectos da sua vida. As dimensões usadas para avaliar a qualidade de vida foram definidas inicialmente pela OMS, na tentativa de identificar áreas de importância para adequar o funcionamento social (WHO, 1980). Com poucas variações, os instrumentos destinados à mensuração consideram aspectos físicos, psicológicos, sociais, ocupacionais e econômicos como importantes domínios da vida (MCGUIRE, 1991). Os instrumentos usados para medir a qualidade de vida

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basicamente verificam o grau de satisfação em relação aos domínios citados. O grau de satisfação se relaciona com o preenchimento das necessidades em relação aos diversos domínios da vida, com a discrepância entre as aspirações e o que se obtém e com as expectativas individuais e sociais de funcionamento normal (CAMPBELL et al., 1981). Uma outra definição de saúde faz parte de uma teoria utilitária que objetiva medir a capacidade individual a despeito das limitações que possam ser impostas pela doença. Pesquisadores em economia da saúde desenvolveram o QALY (quality-adjusted life years), que é um instrumento destinado a medir o estresse e as dificuldades subjetivas trazidas pela doença (WILLIAMS, 1985). O QALY representa anos de vida sem qualidade, que são medidos através de questões sobre a intensidade do desconforto trazido pela doença e sobre a capacidade individual. O objetivo do instrumento é avaliar a efetividade de um procedimento em relação a um outro em termos de qualidade de vida. O conceito de QALY é útil para uma análise de custo efetividade, na medida em que representa um importante instrumento no arsenal tecnológico em saúde para quantificar a extensão em que uma intervenção médica pode ser efetiva, isto é, resultam em melhora no estado de saúde, ajudando os indivíduos a ter uma vida mais produtiva. As propostas de tecnologias e técnicas correspondentes que permitam medir saúde e qualidade de vida se norteiam pela busca de concepções individuais e subjetivas de saúde para acomodar os conceitos de saúde individual e adaptabilidade. A avaliação dos aspectos subjetivos, entretanto, é feita apenas com questionários pré-codificados que identificam sintomas, refletindo claramente a concepção biomédica de doença como entidade nosológica. Esse tipo de abordagem não permite a emergência de concepções de saúde como parte de um sistema comunitário e individual de significações, uma vez que os entrevistados não dispõem de espaço para exprimir seu mundo subjetivo em termos da sua compreensão do que é saúde ou doença. Outra limitação apresentada por estes instrumentos é que eles tratam a saúde como uma categoria individual, não permitindo a emergência dos fatores sócio-econômicos e culturais que em grande parte explicam a gênese e complicação das doenças. Desse modo, uma abordagem que considere o contexto sócio-econômico e cultural é indispensável para a compreensão do conceito de saúde e para a utilização desta categoria para a planificação da assistência médica às populações. Partindo desta premissa, nos parágrafos seguintes discute-se a importância dos determinantes socioeconômicos e culturais para a compreensão da saúde, ressaltando que esse contexto é que engendra e dá sentido a tudo que acontece no mundo social, especificamente no que concerne à saúde.

Determinantes socioeconômicos

Existem questões que transcendem o indivíduo e a sua vida pessoal, relacionando- se com as formas como vários determinantes sociais se sobrepõem e interpenetram para formar uma estrutura mais ampla de vida comunitária (MILLS, W. , 1959). Quando a saúde mental é investigada e discutida sem que seja considerado o contexto socioeconômico e cultural, incorre-se no risco de minimização e simplificação dos problemas sociais, como se esses fossem apenas variáveis sócio-demográficas secundárias. A mensuração de variáveis e atributos individuais, como corriqueiramente é realizada pela biomedicina, contribui para o afastamento dos determinantes do adoecimento do seu contexto social, de modo a deslocar para o plano de valores, motivos, disposições e percepções individuais determinantes que são históricos, políticos e econômicos

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(YOUNG, 1982). Por exemplo, tratar eventos de vida estressantes, mecanismos de gerir tais eventos, estilos de vida e nível socioeconômico como características individuais promovem a retirada do foco de atenção do sistema perverso de distribuição de renda, direcionando-o para disposições e habilidades individuais. As doenças e a pobreza, contudo, não são distribuídas ao acaso, sendo sim determinadas pelos ambientes social, econômico e político (YOUNG, 1982). Desde o século XVIII, os estudos epidemiológicos nos Estados Unidos, Inglaterra e Europa abordam os determinantes sociais da distribuição das doenças (LILIENFELD, 1984). Na América Latina, a epidemiologia social colocou em evidência os determinantes sociais como variáveis fundamentais no modelo multicausal para a saúde mental. Tal discussão cresceu na década de 80, um momento de crise econômica que gerou aumento da pobreza e o seu corolário de problemas sociais, tais como violência, desemprego, migração e todo tipo de sofrimento social relacionado à miséria. A epidemiologia social transferiu o foco da doença do indivíduo para o seu contexto social, apoiando-se, sobretudo, na sociologia clássica. Marx, com a sua visão de uma base socioeconômica determinando as condições de vida, foi uma fonte fundamen- tal de inspiração para os autores da epidemiologia social. Assim, opondo-se ao modelo centrado no indivíduo, essa disciplina relaciona a doença com as condições de vida e com o contexto socioeconômico subjacente. Metade da população da América Latina vive em condições de extrema pobreza, o que leva à péssimas condições de moradia, deficiência no sistema de saneamento, falta de água potável e higiene básica (IUNES, 1995). No Brasil, as condições de vida para a maioria da população são marcadas pela pobreza. Por exemplo, 34,5% da população brasileira vivia em 1992 abaixo do limiar de pobreza2,

sendo essa proporção de 60,3% na região nordeste (IUNES, 1995). Isso significa que mais da metade da população nordestina sobrevivia com uma renda mensal de menos de 20,83 dólares. A heterogeneidade socioeconômica leva à imensas diferenças nas condições de vida e, como resultado, a um perfil variável de distribuição de doenças (POSSAS, 1989). Por exemplo, em 1994 as doenças infecciosas e parasitárias foram a quarta causa mais importante de morte no nordeste do Brasil, enquanto ocupava a oitava posição na região sul (BRASIL, 1997). Ao mesmo tempo, a expectativa de vida no nordeste era consistentemente mais baixa do que no sul. Tais desigualdades se devem a diferenças nas condições de vida3, de modo que as piores condições no nordeste estão associadas à

indicadores de saúde mais precários. Além das diferenças entre regiões, Paim et al. (1987) mostraram que dentro de uma mesma cidade a heterogeneidade das condições de vida tem reflexo direto em alguns indicadores de saúde. Ainda mais grave, eles registram que em Salvador a taxa de mortalidade infantil variava entre 3,9 e 52,5%, de acordo com as áreas menos ou mais favorecidas economicamente. A influência da pobreza tem sido relacionada também com a saúde mental, especialmente em relação às desordens mentais reconhecidas como adaptativas ou secundárias a um estímulo ambiental negativo. Coutinho (1976) registrou a prevalência de 49% de desordens mentais numa população muito pobre e marginalizada de Salvador. Santana (1978) encontrou uma prevalência de 20% de desordens psiquiátricas numa favela de Salvador, com prevalências mais elevadas para mulheres mais velhas, com baixa escolaridade e renda ainda mais baixa. Almeida- Filho (1982) investigou a relação entre fatores sociais e saúde mental, sugerindo que escores mais elevados de sintomas psicológicos são mais comuns entre indivíduos que estão fora do mercado de trabalho (desempregados e emprego informal), em oposição àqueles que trabalham regularmente. A epidemiologia social concentra a sua atenção nas condições sociopolíticas e econômicas que podem afetar o perfil epidemiológico da

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população. Tais condições são responsáveis pelo acesso a bens de consumo como comida, residência, serviços de saúde, saneamento, educação, lazer e trabalho. Todos esses fatores influenciam, diretamente ou indiretamente, o estado de saúde dos diferentes grupos sociais. Investigando o lazer como fator de proteção para a saúde mental, Pondé e Santana (2000) identificam que a participação em atividades de lazer está negativamente associada a sintomas psíquicos, no entanto, quase metade da população estudada não tem acesso a atividades de lazer. Assim, não é suficiente apontar os fatores que poderiam ter um papel de proteção e preservação da saúde mental. Faz-se mister também observar o contexto social que pode facilitar ou dificultar o acesso aos bens de consumo e serviços relacionados à saúde.

Papel do contexto na saúde mental

Limitar a discussão ao contexto socioeconômico como componente fundamental da rede de causalidade em saúde mental e instrumento central para o planejamento não resolve o problema da planificação na assistência à saúde mental. Para se pensar a planificação da assistência de um modo culturalmente sensível é crucial situar a saúde mental, seus fatores de risco e de proteção como categorias profissionais que pertencem e respondem a dinâmica de certo contexto sociocultural e não como categorias naturais e universais, que seja, por conseguinte, semelhantemente aplicáveis a todas as sociedades, como em princípio faz a visão biopsiquiátrica. É importante, assim, buscar compreender e interpretar os sentidos locais ou nativos das categorias científicas relacionadas à saúde mental, assim como das variáveis e comportamentos que são culturalmente definidas como fatores de risco e de proteção. Desta maneira, não podemos deixar de lado o caráter sócio-histórico do discurso médico, que em uma determinada época concebia a doença relacionada a ares e lugares. Assim é que o ar poderia ser maligno e corrupto [...] A idéia de ar corrupto e corrupção foi central para o discurso médico por vários séculos, especialmente em relação às epidemias (HERZLICH; PIERRET, 1993, p. 77). Na categoria de ar corrupto é possível identificar a idéia da teoria dos miasmas, que foi central para o discurso médico na explicação da transmissão de algumas doenças, ou seja, esta concepção que traz uma teoria da causalidade impregnada de representações culturais. O discurso médico se transmuta na medida em que mudam as condições sócio- históricas para sua produção. A invenção do microscópio por Antoine van Leeuwenhoek, no século XVII, foi um dos instrumentos de maior importância para o avanço da tecnologia médica, possibilitando o surgimento da bacteriologia, da histologia (estudo dos tecidos orgânicos) e da patologia (estudo das bases orgânicas das doenças). Neste ponto, o discurso médico ocidental passa a relacionar as causas das doenças a bactérias, vírus, anomalias nos tecidos orgânicos, estabelecendo as bases orgânicas das doenças, isto é, a idéia de patologia, situando a medicina como uma ciência natural (QUEIROZ, 1986), e estabelecendo uma relação direta de causa e efeito entre agentes etiológicos e doenças. O modelo mono-causal de saúde foi reforçado nesse contexto histórico, privilegiando a idéia de que toda doença se relaciona com causas biológicas específicas. A esse modelo seguiu-se o multi-causal, que postula a existência de muitos determinantes no processo de adoecimento. Rothman (1976) define causa como um ato, evento ou estado natural que inicia ou facilita, sozinho ou em conjunto com outros, a seqüência de eventos que resulta numa determinada doença. A medicina tomou de empréstimo da lógica os

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conceitos de causa necessária e suficiente, uma vez que a bacteriologia não podia mais explicar a etiologia das doenças. “Causa suficiente” se refere ao conjunto de fatores que, juntos, resultam na doença, e “condição necessária” é aquela que quando ausente a doença não é desencadeada (COPI, 1968). Nesse sentido, o modelo biomédico supõe que as causas são identificadas no mundo objetivo, podendo ser separadas em partes, visando melhor explicar o mecanismo das doenças. Em seu discurso naturalista, a biomedicina sugere que os eventos biológicos e comportamentais são semelhantes entre todos os seres humanos, sendo a doença um erro no que se refere à função biológica normal (MISHLER, 1981). Como corolário, as doenças são consideradas síndromes encontradas em toda parte, ou seja, são universais. A medicina é tida como uma ciência neutra, guiada pela objetividade, o que significa que essa ciência supõe iluminar a verdade sobre o corpo e o funcionamento físico ao tornar evidente o que anteriormente estava oculto. No discurso médico sobre a causalidade das doenças, são identificados fatores de risco e de proteção que influenciam o aparecimento das doenças. O conceito de risco é definido como um jogo de probabilidades de instalação de uma determinada doença, dada uma série finita de fatores de exposição. Fatores de risco são atributos de grupos populacionais que apresentam maior incidência de uma doença em comparação com outros grupos nos quais tais fatores estão ausentes. Já os fatores de proteção são atributos de grupos com menor incidência de um determinado transtorno. A busca desses fatores teria sentido para a planificação na medida em que a identificação dos mesmos contribuiria para controlar o risco ou a probabilidade de adoecer. É através deste discurso polarizador que a prevenção em saúde mental inclui a redução dos fatores de risco e o incremento dos fatores de proteção. Isto equivale a dizer que ao invés de lidar com o problema, uma vez que este ocorra ou instale-se, o tratamento desenvolveu tecnologias adequadas para lidar com os problemas antes que estes ocorram, a prevenção. A identificação de algumas características e maneiras de proceder constitui um passo fundamental para compreender o raciocínio que a biomedicina usa para abordar a questão da saúde e da doença. PrimeiroPrimeiroPrimeiroPrimeiroPrimeiro, existe a suposição de que a doença é uma entidade objetiva e pertencente exclusivamente ao mundo material, sendo função da ciência descobrir os mecanismos de adoecimento (fatores de risco e proteção) e a série de determinantes (causas) deste processo. SegundoSegundoSegundoSegundo,Segundo as doenças são consideradas universais e a mesma lógica usada para compreender e lidar com a doença em uma determinada região do mundo é aplicável em qualquer local, uma vez que o conhecimento científico é tido como objetivo. TTTTTerceiroerceiroerceiroerceiroerceiro, a saúde pode ser avaliada por escalas que definem um estado ideal apenas a partir de categorias profissionais, desconsiderando qualquer tipo de sentido simbólico individual e cultural daquela categoria. QuartoQuartoQuartoQuartoQuarto, as concepções médicas de saúde traduzem valores de uma sociedade que privilegia a capacidade de produção e o ganho financeiro. Considerando estes aspectos como fundamentais para compreensão do campo de biomedicina e seu desenvolvimento tecnológico notadamente voltado para os tratamentos, em detrimento da prevenção, nos parágrafos seguintes serão discutidas as contribuições da antropologia médica que apontam o modelo biomédico como parte de um contexto cultural, negando que a biomedicina seja uma ciência objetiva e livre de valores. A noção biomédica de que as doenças são entidades naturais, cujas causas devem ser descobertas e atacadas a partir de diferentes ângulos, tem sido discutida pela antropologia médica a partir de duas perspectivas. A primeira é que a biomedicina é parte de um contexto cultural específico, assim como qualquer outro sistema de cura e tratamento (GAINES, 1993). A segunda é que a doença, os fatores de risco e os de proteção não são entidades objetivas, mas parte de um sistema

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médico e cultural, diferindo, portanto, de acordo com o sistema de referência (KLEINMAN, 1977). O movimento promovido pela antropologia médica visa, portanto, mostrar o conhecimento biomédico como parte de um contexto cultural, ao invés de abordá-lo como uma verdade científica objetiva. Uma vez que nenhum contexto cultural é monolítico, qualquer sociedade pode ter uma diversidade de sistemas médicos. Kleinman (1986) considera que numa mesma sociedade coexistem diferentes sistemas de saúde, que originam múltiplas concepções de enfermidade, incluindo etiologia dos sintomas, fisiopatologia, definições de severidade e tratamento. Assim é que ele afirma que em sociedades complexas existem três sistemas médicos básicos: o profissional, o popular e o folk ou tradicional (KLEINMAN, 1986). Em sua concepção, o setor profissional corresponde ao sistema médico institucionalizado e formal. Em sociedades ocidentais contemporâneas, a biomedicina é o sistema oficial, mais amplamente aceito, enquanto em sociedades não-ocidentais outros sistemas profissionais têm sido considerados como oficiais, como a medicina chinesa e a acupuntura em países asiáticos. A medicina tradicional é praticada através de instituições não-oficiais, como por exemplo, curadores religiosos e práticas percebidas como periféricas ao sistema oficial como cromoterapia, quiromancia, entre outros. O setor popular é composto por crenças laicas ou religiosas geradas através da percepção individual ou coletiva e empregadas para lidar com as enfermidades. No nordeste do Brasil, os setores popular e tradicional, assim como os seus agentes terapêuticos, são compostos por instituições representadas por religiões multifacetadas (CAROSO et al., 1997). As características das referidas instituições condensam os setores popular e tradicional, de modo que muitos agentes terapêuticos são os próprios criadores das religiões sincréticas. Assim, Caroso et al. (1997) propõem que a imbricação dos setores tradicional e popular seja chamada de setor comunitário de saúde. Ao abrir caminhos para interpretar a medicina profissional como uma construção cultural que faz parte de um sistema de crenças, ao lado do sistema popular e do tradicional, a antropologia médica convida os cientistas a compreenderem a concepção de enfermidade pelo prisma da cultura. Denominar certo tipo de comportamento como característico de “doença mental” ou não depende diretamente do contexto cultural no qual ele se verifica. O comportamento existe, mas é o significado contextual que determina se ele é considerado normal ou problemático. Por exemplo, comportamentos que a psiquiatria ocidental enquadraria como psicóticos não são considerados doença na Nova Guiné, mas relacionados a um tipo de divindade (KLEINMAN, 1977). O estilo de vida de alguns ascetas budistas, que poderia ser considerado como depressão têm um sentido diferente para as pessoas envolvidas, sendo considerados como produto natural das vicis- situdes da vida (OBEYESEKERE, 1985). Nesse sentido, a categorização de um fenômeno, signo ou mesmo descrição comportamental como normalidade ou como normalidade resulta do sistema de valores e crenças usado para construir e interpretar a realidade. Obeyesekere (1985) critica os métodos que a psiquiatria e a epidemiologia usam para avaliar a situação de saúde, uma vez que essas disciplinas se baseiam numa lista fechada de sintomas, destituída de um sentido social. Tais instrumentos facilitam a mensuração, mas o que está sendo medido não é vazio de significado, sendo o sentido dos sintomas que