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Atividade normalmente desenvolvida

No documento Renzo Gama Soares.pdf (páginas 126-131)

SEGUNDA PARTE MICROSSISTEMAS JURÍDICOS DE IMPUTAÇÃO CIVIL POR

1. Código Civil

1.2. Cláusula geral de responsabilidade pelo risco (art 927, § único)

1.2.1. Atividade normalmente desenvolvida

A doutrina parece ser unânime167 no sentido de afirmar que, por “atividade”, não se pode entender uma ação isolada, mas sim um conjunto de atos com a finalidade de atingir um determinado objetivo. Não há dúvidas de que a expressão contida no art. 927, parágrafo único, designa uma complexidade, um conjunto de atos praticados no sentido de se alcançar uma determinada finalidade. De acordo com Giselda Hironaka168, citando Geneviève Schamps, apenas a Corte de Cassação italiana se preocupou em buscar formular um sentido ao conceito jurídico de atividade, descrevendo-a como “um conjunto de atos, coordenados ou não, implicando um mínimo de continuidade e de organização.”

Neste contexto, é possível concluir que o legislador, ao fazer uso da expressão “atividade”, teve a intenção de condicionar a aplicação da cláusula geral de responsabilidade objetiva às hipóteses em que o dano é praticado no contexto de um conjunto de atos organizados. Fernando Noronha169 faz referência a uma característica especial da atividade, ao afirmar que “o todo é qualitativamente diverso dos atos que a integram e, devido a isso, estes podem

167 A título meramente exemplificativo, é possível se fazer referência a GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A responsabilidade civil pelo risco da atividade: uma cláusula geral no Código Civil

de 2002. Tese de livre docência, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007;

AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil objetiva: do risco à solidariedade. São Paulo: Altas, 2007; GIORDANI, José Acir Lessa. A responsabilidade civil objetiva genérica no Código

Civil de 2002. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004 e CAVALIERI FILHO, Sérgio e DIREITO, Car-

los Alberto Menezes. Comentário ao novo Código Civil, volume XIII: da responsabilidade civil,

das preferências e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

168 Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 339.

169 Direito das obrigações: fundamento do direito das obrigações: introdução à responsabilidade

produzir conseqüências jurídicas que não aconteceriam se não fosse estarem integrados no conjunto.”

Um determinado ato que exponha alguém a perigo, sendo praticado de forma isolada, pode não estar sujeito ao dispositivo legal ora em análise, caso não esteja inserido em um conjunto de outros atos coordenados, formando uma atividade. Aparentemente não era o objetivo do legislador adotar a cláusula geral de responsabilidade civil para qualquer ação ou omissão praticada com risco, mas apenas às atividades que possuem tal característica.

Uma segunda questão relevante para a análise do dispositivo legal em tela é saber se a referida atividade deve visar, necessariamente, o lucro. No fundo, esta investigação visa concluir qual espécie de risco está sendo imputado pelo art. 927, parágrafo único: se risco-proveito ou risco-criado. Caso se afirme ser hipótese de aplicação do risco-proveito, somente as atividades com finalidade lucrativa (mesmo que indiretamente) poderiam estar submetidas à cláusula geral analisada. Caso contrário, de se entender ser hipótese de risco-criado, é ampliada profundamente a aplicabilidade do instituto, que poderia ser dirigido a qualquer atividade humana criadora de risco, independentemente da finalidade almejada pelo causador do dano.

Parece mais adequado o entendimento de que deve se atribuir ao dispositivo sob análise, dentro do possível, uma interpretação extensiva.170 Como se

170 Em sentido contrário, por todos, CAVALIERI FILHO, Sérgio e DIREITO, Carlos Alberto Me- nezes. Comentário ao novo Código Civil, volume XIII: da responsabilidade civil, das preferên-

cias e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2004 e GAGLIANO, Pablo Stolze e

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. 4 ed., São Pau- lo: Saraiva, 2006, v. 3.

assinalou durante todo o desenvolvimento do presente trabalho, o direito vem dando cada vez mais espaço à responsabilidade objetiva, até mesmo em razão dos valores sociais da atualidade, como solidariedade e eqüidade.

Sob este aspecto evolutivo da responsabilidade civil, concluir pela adoção, neste dispositivo legal, pela teoria do risco-proveito, limitando sua aplicação apenas às hipóteses onde o risco é criado em razão de uma vantagem lucrativa, seria um verdadeiro retrocesso.

Ademais, deve ser mencionado que o art. 931171 do Código já prevê a responsabilidade dos fornecedores de produtos ou serviços por meio da responsabilidade objetiva. Sem dúvida, este dispositivo, sim, é aplicado de acordo com a teoria do risco-proveito. Afinal, não há como se negar que, quando se trata de empresário, a finalidade é inegavelmente lucrativa.

No mesmo sentido entende Roger Silva Aguiar172, que inclusive faz uma interessante análise do uso da expressão “atividade” pelo Código Civil como um todo, chegando à seguinte conclusão:

A palavra atividade, utilizada em um único artigo do Código Civil de 1916, hoje aparece 26 vezes no novo Codex, a maior parte delas no Livro II — Do Direito de Empresa. Nessas oportunidades, o termo em geral vem adjetivado (atividade negocial; atividade profissional; atividade econômica; atividade rural), o que determina uma conclusão: para o legislador, a palavra atividade em si, não aponta para uma área específica da vivência humana, sendo necessário, para que isso ocorra, sua complementação por algum termo. Portanto, não há porque se inferir que a palavra atividade indique, necessariamente, um afã empresarial, como ocorre, por exemplo, nos artigos 966 e 972.

171 Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.

No mesmo sentido é o entendimento de Giselda Hironaka.173 Ao fazer uma análise do posicionamento de alguns países sobre a adoção da teoria objetiva em razão do risco, afirma:

O direito positivo dos Países Baixos circunscreveu o campo de abrangência das atividades perigosas àquele relativo à exploração industrial ou profissional, caminho que seguramente não deve ser o preferido pelo legislador do futuro otimizado, tendo em vista que esta relativização é prejudicial e cerceadora do direito das vítimas de mise en danger. Mesmo na Itália, falhou a tentativa de circunscrever a responsabilização pelo desempenho de atividade perigosa apenas àquelas empresarialmente exploradas.

A expressão “normalmente desenvolvida” pode ser entendida por dois aspectos: como habitualidade (“atividade habitualmente desenvolvida”) ou como regularidade procedimental, de acordo com a técnica e como a sociedade espera que se dê o desenvolvimento daquela determinada atividade. Este último aspecto diz respeito à idéia de exercício normal ou anormal de um direito, defendida por Ripert174 ao analisar a questão do abuso de direito.

Roger Silva Aguiar175 entende que a lei faz menção à primeira situação, em que a expressão “normalmente desenvolvida” diz respeito à atividade habitualmente, cotidianamente, reiteradamente, desenvolvida. De acordo com o referido autor, seguindo a observação feita pelos irmãos Mazeaud à teoria de Ripert, o ato praticado de forma anormal pressupõe a culpa na sua anormalidade, razão pela qual seria inútil utilizar a expressão, com este sentido, em um dispositivo legal que dispensa a análise da culpa.

173 Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 339.

174 A regra moral nas obrigações civis. 2 ed., Traduzido por Osório de Oliveira, Campinas: Bo- okseller, 2002, pp. 171 e seguintes.

Em sentido contrário, Carlos Roberto Gonçalves entende que o legislador adotou, sim, a teoria dos atos anormais, indicando que a responsabilidade objetiva é imputada ao causador do dano, mesmo que não haja anormalidade na conduta do agente. Neste sentido, o autor assinala o seguinte:

Ao utilizá-la [a expressão “normalmente”], pretendeu o novel legislador apenas deixar claro que a responsabilidade do agente será objetiva quando a atividade por ele exercida contiver uma notável potencialidade danosa, em relação ao critério da normalidade média. É a aplicação da teoria dos atos normais e anormais, medidos pelo padrão médio da sociedade. Basta que, mesmo desenvolvida “normalmente” pelo autor do dano, a atividade seja, “por sua natureza”, por implicar “riscos para os direitos de outrem”, potencialmente perigosa, não havendo necessidade de um exercício anormal, extraordinário, para que assim seja considerada.

Cláudio Luiz Bueno de Godoy176 entende serem compatíveis as duas interpretações apontadas como possíveis à expressão “normalmente”. Realmente, parece que os sentidos não são excludentes e poderiam conviver harmoniosamente no mesmo dispositivo legal.

Entretanto, não nos parece que o legislador teve a intenção de tratar de habitualidade. Afinal de contas, a própria expressão “atividade” já contém, no seu bojo, a idéia de habitualidade — apesar de concordarmos que esse não seria um requisito essencial do conceito, sendo possível a existência de atividade não habitual.

Parece ser mais relevante, como destaca Carlos Roberto Gonçalves, a questão da teoria dos atos normais e anormais, vez que o legislador teve a intenção de deixar claro que a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo

176 responsabilidade civil pelo risco da atividade: uma cláusula geral no Código Civil de 2002. Tese de livre docência, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, pp. 94-96.

único, não decorre de um defeito no exercício da atividade, mas no risco que decorre da sua própria natureza.

1.2.2. Atividade que, por sua natureza, implica riscos aos direitos de ou-

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