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Fundamentos da responsabilidade civil no Brasil

No documento Renzo Gama Soares.pdf (páginas 92-97)

Diante de tudo o que tratou o capítulo anterior, é possível se concluir que a responsabilidade civil no Brasil se funda em um sistema marcado pela dualidade. Tanto é possível que se faça necessária a análise da culpa para que se efetive a imputação civil dos danos, quanto é possível se dispensar este requisito, aplicando-se a chamada responsabilidade objetiva.

Apesar da evolução observada, da responsabilidade subjetiva, fundada na teoria da culpa, para a ampla aplicação da responsabilidade objetiva, fundada na idéia da obrigação de indenizar independentemente da ocorrência de culpa não apenas com base no risco, mas em diversos outros valores caros ao ordenamento jurídico contemporâneo, vale ressaltar que, pelo menos por enquanto, não é correto se falar em superação do paradigma da culpa.

Alvino Lima120, ao analisar, em meados do século passado, a perspectiva para o futuro, falando da teoria da culpa (responsabilidade subjetiva) em face da teoria do risco (responsabilidade objetiva), afirmou:

Ambas, porém, continuarão a subsistir, como forças paralelas, convergindo para um mesmo fim, sem que jamais, talvez, se possam exterminar ou se confundir, fundamentando, neste ou naquele caso, a imperiosa necessidade de ressarcir o dano, na proteção dos direitos lesados.

Tal observação parece conveniente e acertada, vez que, em algumas situações, a análise da culpa será relevante para se verificar a real obrigação

de indenizar o dano observado. Este cuidado visa não impor severos freios à vida humana e ao desenvolvimento social, ao se aumentar desproporcionalmente as hipóteses de aplicação da responsabilidade objetiva.

E não se descuida da análise da responsabilidade civil sob o ponto de vista da vítima e a necessidade social de imputar o encargo econômico decorrente do dano ao seu autor, sempre que tal seja o meio de se alcançar os valores inerentes ao ordenamento. De qualquer forma, não há como se negar que a preponderância de valores como a eticidade e a socialidade interferiu na forma de se analisar a responsabilidade civil nos dias atuais.

Mesmo a culpa, quando invocada como fundamento da responsabilidade civil, nas hipóteses do caput do art. 927 do Código Civil, dentre outras, sofre influência desta evolução, marcada pela influência dos parâmetros de socialidade e de eticidade na aplicação e interpretação das normas legais.

É a chamada culpa objetiva, onde se analisa não mais a consciência, o aspecto psicológico ou a intenção do causador do dano, mas a sua imperícia, imprudência ou negligência, analisada de acordo com o seu comportamento em contraste com o que se esperaria de uma pessoa com comportamento ético e probo naquela mesma situação. Cesare Massimo Bianca121 constata esta tendência ao afirmar:

121 BIANCA, Cesare Massimo. Superveniencia de la teoría de la culpa. In: Responsabilidad por

daños en el tercer milenio: homenaje al professor doctor Atilio Aníbal Alterini. BUERES, Alberto

José e CARLUCCI, Aída Kemelmajer de (Directores). Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 142.

As críticas ao princípio da culpa pressupõem que esta se entende no sentido psicológico, como defeito da vontade do sujeito. Em troca, atualmente prevalece uma concepção objetiva de culpa, determinada pela inobservância de uma regra de conduta, ou seja, pela inobservância da diligência devida segundo os adequados parâmetros sociais e profissionais de conduta122.

Nas hipóteses em que efetivamente for o caso de aplicação da responsabilidade independentemente da análise da culpa, é necessário observar que o risco deixou de ser o único fundamento para a sua aplicação, dando ensejo a outros critérios, como foi exemplificado neste trabalho como a socialidade e a boa-fé. Neste sentido, Anderson Scheiber123 alerta:

A criação ou majoração de um risco, como noção jurídica empregada por cláusulas gerais de responsabilização, continua sendo importante fator na aplicação da responsabilidade objetiva, mas perde seu papel de fundamento exclusivo do instituto na medida em que se vislumbram hipóteses de incidência desta espécie de responsabilidade em que não se pode, ou em que se pode apenas artificialmente, invocar o risco como fato de vinculação entre o dever de indenizar e o agente. Em tais situações, a responsabilidade objetiva parece revelar a sua verdadeira essência na contemporaneidade: não a de uma responsabilidade por risco, mas a de uma responsabilidade independente de culpa ou de qualquer outro fato de imputação subjetiva, inspirada pela necessidade de se garantir reparação pelos danos que, de acordo com a solidariedade social, não devem ser exclusivamente suportados pela vítima — uma proposição, portanto, essencialmente negativa.

A idéia de solidariedade, portanto, toma um lugar especial na aplicação da responsabilidade objetiva, pois será sempre o seu fundamento mediato. Foi demonstrado que, mesmo o risco, primeiro fundamento da imputação de

122 Tradução livre do original: “Las críticas al principio de la culpa presuponen que ésta se enti- ende em sentido psicológico, como defecto de la voluntad del sujeto. En cambio, actualmente prevalece una concepción objetiva de culpa, determinada por la inobservancia de una regla de conducta, es decir, por la inobservancia de la diligencia debida según los adecuados paráme- tros sociales y profissionales de conducta.”

123 Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 29.

responsabilidade sem a análise do elemento culpa, foi embasado na necessidade de pacificação social.

Entretanto, em algumas situações, a solidariedade é a direta e única justificativa para a imputação de certas obrigações de indenizar, razão pela qual a culpa é dispensada. O risco continua sendo um importante critério de imputação civil dos danos, desde que observada a sua criação, seja com o intuito de proveito, seja com a mera criação do risco.

Por fim, a boa-fé também assumiu uma posição de fundamento para a responsabilidade objetiva. O causador do dano, que age contrariamente aos preceitos de lealdade ou, ao exercer um direito que lhe é reconhecido, excede os limites da boa-fé objetiva, fica obrigado a reparar o dano observado pela vítima. Obviamente, nestes casos, é irrelevante o estudo de eventual comportamento culposo por parte do causador do dano, vez que apenas se analisa o seu comportamento em relação ao standard considerado desejado pelo direito.

Em razão do princípio da proporcionalidade, deve haver uma ponderação de valores ao se elaborar e se interpretar normas jurídicas, sendo sempre desaconselháveis interpretações extremas, tanto num sentido quanto noutro. A responsabilidade fundada na culpa se tornou insatisfatória para todos os casos da vida moderna.

Também não parece ser a responsabilidade objetiva a melhor solução para todos os casos em que se trata de responsabilidade civil, posto que a conduta

do agente ainda poderá ser relevante para se analisar sua imputabilidade em determinada situações.

A responsabilidade civil objetiva tem lugar quando for determinante sua aplicação para garantir a solidariedade (socialidade) pregada pela Constituição Federal, seja de forma direta, seja em razão da exposição ao risco por parte do causador do dano, seja porque é uma imposição para se garantir o respeito à boa-fé.

SEGUNDA PARTE

No documento Renzo Gama Soares.pdf (páginas 92-97)