A área do lúdico em Ensino de Química tem apontado que existem características
lúdicas dentro da atividade de experimentação. Oliveira (2009) mostra que o trabalho
experimental pode ser muito divertido e, portanto, pode contribuir para aprendizagem dos
conceitos científicos.
Segundo Soares (2013), o trabalho experimental só será lúdico se ele despertar no
sujeito a atitude lúdica, ou seja, a vontade de se divertir, por isso nem todo esse experimento
tem esse caráter lúdico. Nas palavras do autor:
Essa vontade lúdica deve ser despertada pelo experimento, assim como é pelo
jogo. Na mesma medida que temos jogos que não são interessantes para o
sujeito, temos experimentos muito enfadonhos que não despertam
divertimento, o que não desperta interesse nem uma atitude lúdica necessária
para o bom andamento do experimento. Esse é um aspecto que relaciona bem
as duas atividades, o lúdico e a experimentação (SOARES, 2013, p. 176).
Se nem todo experimento é necessariamente lúdico, Oliveira (2009, p. 120) apresenta
em seu trabalho características necessárias para que o aluno esteja inserido em uma atividade
que ele chamou de atividade experimental lúdica (AEL). São elas:
Participação ativa, seja na construção ou na montagem de um material alternativo de
equipamentos de laboratório
Liberdade de investigar, observar, formular e discutir hipóteses
Observações voltadas para apropriação dos conceitos que envolvem o fenômeno
Espontaneidade e não obrigatoriedade de fazer anotações sobre as observações. O
aluno não deve seguir um roteiro
Satisfação com o trabalho realizado ao final da atividade.
Como vemos, a atividade experimental lúdica carrega uma série de características das
atividades investigativas experimentais, bem como dialoga com aspectos que são comumente
citados quando se trata de ludicidade (espontaneidade, satisfação, prazer, liberdade), aspectos
que já foram problematizados e questionados nesta tese.
Apesar das críticas que possamos fazer, concordamos com o autor que é possível trazer
o caráter lúdico para experimentação, tornando-a mais divertida, desde que o conhecimento
científico não seja posto em segundo plano.
Nesta tese, no entanto, a atividade que foi proposta e analisada não teve a intenção de
incorporar características lúdicas em atividades experimentais. Ou seja, não queremos
transformar uma atividade experimental em uma AEL.
O que fizemos foi usar como parte do jogo uma atividade experimental. Deste modo, o
experimento fez parte do jogo, o que quer dizer que a experimentação foi incorporada a uma
atividade lúdica, o inverso do que acontece em uma AEL. Neste caso, estamos chamando essa
atividade de lúdico-experimental, caso em que o professor elabora o jogo e, para que o objetivo
deste seja atingido, são realizadas uma ou mais atividades experimentais.
Permita-nos recorrer a um exemplo para explicar a diferença. Vamos supor que os
alunos tenham que elaborar um destilador a partir de um material reciclado e eles entendam que
fazer um destilador e uma destilação é uma atividade divertida. Neste caso, o objetivo dessa
ação é o experimento, é a prática experimental de conhecer a destilação e fazer o destilador.
Estamos diante, portanto, de uma AEL. Agora, se estamos diante de um jogo no qual o estudante
tenha que tirar uma carta e nessa carta ele deva fazer algum experimento para andar duas casas
no tabuleiro, por exemplo, o experimento compõe o jogo, mas não é o objetivo central. Estamos
diante, nesse caso, de uma atividade que chamamos de lúdico-experimental.
Essa distinção é importante para a análise que faremos dos dados. No caso de uma
Atividade lúdica-experimental, o experimento faz parte do jogo, então, no momento em que
o estudante realizar esse experimento, é possível avaliar como ele se relaciona com os aspectos
lúdicos do jogo, no geral, e, ao mesmo tempo, pensar, de maneira mais restrita, em
contribuições e limitações para a atividade experimental no ensino de ciências de maneira
isolada, já que o experimento tem uma autonomia relativa durante o jogo.
O esquema a seguir nos ajuda a entender melhor o lugar que a atividade experimental
ocupa na atividade lúdico experimental e o nosso entendimento sobre as possibilidades de
investigação.
Figura 2: Possibilidades de pesquisa referentes à atividade prática dentro de uma Atividade lúdica-experimental. Fonte: Elaborado pelo autor
Esclarecidos esses aspectos referentes à atividade lúdica-experimental, podemos
avançar para discutirmos os aspectos metodológicos e os resultados desta tese.
É possível investigar contribuições específicas da atividade experimental,
uma vez que ela tem uma autonomia relativa diante do jogo.
É possível investigar relações estabelecidas entre uma atividade
lúdica e uma atividade experimental.
Jogo
4 Saindo do labirinto do
Minotauro: procedimentos
metodológicos
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever (Clarice Lispector).
A caminho da floresta João esfarelou o pão dentro do bolso e
de vez em quando parava para tirar
uma migalha no pão e
marcar o caminho
(João e Maria - Conto dos Irmãos Grimm).
Uma pesquisa precisa começar com uma pergunta. Um questionamento que nos
impulsione a descobrir o novo e/ou questionar o que está dado. As perguntas são as
“locomotivas do conhecimento” (GAMBOA, 2013, p. 87).
Não existe uma pergunta neutra. Todo homem que faz a pergunta é um sujeito
historicamente situado que carrega consigo concepções de mundo e de homem. Essas
concepções ontológicas e epistemológicas estão presentes em qualquer pergunta, portanto, em
qualquer estudo, estando o pesquisador consciente disso ou não.
Advogamos, no entanto, que essas questões ontológicas e epistemológicas não podem
ser tácitas ao pesquisador. O que vemos, por vezes, na formação deste intelectual é uma
discussão metodológica centrada na coleta de dados e em suas técnicas de análise, deixando
essas questões filosóficas de lado, como se elas fossem pouco importantes.
Vejamos como Gamboa (1996, p. 7) nos ajuda a entender que uma formação centrada
só na técnica não é o bastante para formar o pesquisador no âmbito metodológico:
A formação do pesquisador não pode restringir-se ao domínio de algumas
técnicas de coleta, registro e tratamento de dados. As técnicas não são
suficientes, nem constituem em si mesmas uma instância autônoma do
conhecimento científico. Estas têm valor como parte dos métodos. O método,
ou o caminho, do conhecimento é mais amplo e complexo. Por sua vez, um
método é uma teoria de ciência em ação que implica critérios de cientificidade,
concepções de objeto e de sujeito, maneiras de estabelecer essa relação
cognitivista e que necessariamente remetem a teoria de conhecimento e a
concepções filosóficas do real. Essas diversas concepções dão suporte às
diversas abordagens utilizadas nas construções científicas e na produção de
conhecimentos.
Ao colocarmos às claras as concepções que possuímos de homem e de mundo nas nossas
pesquisas temos mais chances de mantermos um trabalho coerente, que melhor articula os
referenciais com a análise dos dados e que melhor entende os potenciais de cada técnica de
coleta de dados. Diante de tal justificativa devemos aclarar as nossas concepções ontológicas e
epistemológicas que chamaremos, doravante, de paradigma.
Afirmamos que este trabalho enquadra-se no paradigma do materialismo
histórico-dialético. Nesta perspectiva, entendemos que a realidade existe para além da nossa consciência
(ver o capítulo 2). Dentro desta perspectiva, entendemos que a realidade é cognoscível e que
conhecemos efetivamente o objeto, não pela sua empiria imediata, mas pela mediação teórica
que fazemos dessa empiria. É através desse percurso, que tem como ponto de partida o objeto,
faz sua análise e sintetiza os elementos essenciais por meio da teoria, que conhecemos, de fato,
as coisas. Desse modo, superamos a empiria ascendendo do abstrato ao concreto (MARX,
2013).
Esse paradigma nos mostra que o ser humano se funda através do trabalho. “A partir do
trabalho, o ser humano se faz diferente da natureza, se faz um autêntico ser social, com leis de
desenvolvimento histórico completamente distintas das leis que regem os processos naturais”
(LESSA; TONET, 2008, p. 17).
Numa sociedade regida pelo capital os trabalhadores possuem unicamente sua força de
trabalho para a venda, enquanto a classe dominante e hegemônica possui os meios de produção.
Essa ideia de hegemonia também está intimamente ligada ao processo de produção de ideias.
Como nos diz Chauí (1981 apud PATTO, 2008, p. 168):
Uma classe é hegemônica não só porque detém a propriedade dos meios de
produção e poder do Estado (isto é, o controle jurídico, político e policial da
sociedade), mas é hegemônica, sobretudo, porque suas ideias e valores são
dominantes mesmo quando se luta contra ela.
Para alguns autores, como Althusser e Bourdieu, a escola seria uma das formas de a
classe dominante inculcar suas ideias no dominado. Ou seja, a escola desempenharia apenas o
papel de reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista (SAVIANI,
2008b). Essas teorias foram chamadas por Saviani de teorias crítico-reprodutivistas. Críticas,
porque reconhecem a escola como determinada socialmente e, portanto, sofre a determinação
do conflito de interesse de classe (e de fato é), mas reprodutivistas, uma vez que, ao levar em
conta que a escola apenas reproduz os valores burgueses, desconsidera sua historicidade e anula
as contradições que estão presentes em qualquer complexo social e a torna, portanto, um locus
passível de luta.
Segundo Viégas (2007a, p. 107):
A vida diária escolar é feita de momentos de continuidade, mas também de
ruptura. Contrapondo-se à imagem de monólito por trás da teoria
reprodutivista [...] entendemos que a escola possui fissuras, sendo também
palco de transformação social.
O leitor mais apressado e que chegou até esse momento deve estar com uma dúvida:
Qual a relação disso com esta pesquisa? Não estava se tratando de apropriação do conhecimento
químico? Não se falava de ludicidade e experimentação na sala de aula de ciência? O que a
escola como palco de luta tem a ver com isso? Essas perguntas podem ser transformadas em
questões mais gerais, como, por exemplo: O fato de a escola ser um palco de transformação
social garante que ela seja um local digno de uma pesquisa de cunho crítico? Faria sentido
investigar por que os alunos aprendem ou não aprendem determinado conteúdo de química?
Investigar a relação professor-aluno na escola? Investigar problemas de alfabetização? Não
seria mais lógico, como é típico de algumas perspectivas marxistas, pensar em aspectos mais
macroestruturais e abandonar o “chão da escola”, já que este seria uma mera reprodução dos
aspectos econômicos e sociais que regem a sociedade?
Patto (2008, p. 188) pode nos ajudar com algumas questões acima:
Embora a cotidianidade seja permanentemente remetida ao global, sua análise
impede que a realidade pesquisada [neste caso a escola] seja reduzida a
categorias gerais como Estado, cultura, modo de produção, etc. Assim sendo,
por intermédio do estudo da cotidianidade também se realiza a ascensão do
abstrato ao concreto e a referência à realidade social deixa de ser feita no
singular para se fazer no plural.
O que podemos extrair da fala de Patto é que a escola é, sim, um lugar de pesquisa, pois,
ao mesmo tempo que ela contém os elementos que a fazem determinada socialmente, ela não
pode ser reduzida a categorias gerais. Do ponto de vista da pesquisa, se a escola tem suas
peculiaridades, investigar seu contexto ajudará também a entender suas relações com a
macroestrutura e as possibilidades que o espaço investigado tem de contribuir para um projeto
coletivo de humanidade que vise a superação do capital.
No entanto a afirmação acima responde parcialmente às perguntas. Podemos extrair da
fala acima que a escola é um local privilegiado para estudar as diversas tensões e contradições
que lá aparecem, e alguns autores têm feito isso, principalmente no que tange à psicologia
escolar. Podemos citar, a título de exemplo, a tese de Maria Helena Souza Patto (2008), a tese
de Lygia de Souza Viégas (2007b), que vão trazer à baila, de modos diferentes, a realidade da
escola e os pontos e contrapontos de uma trama que tem continuidades e rupturas, como já
dissemos antes.
No entanto ainda não temos resposta para justificar por que um pesquisador que coaduna
com a perspectiva crítica se preocuparia em pesquisar como ensinar melhor um conteúdo de
química, física etc. Não seria um contrassenso admitir que esse tipo de pesquisa tenha algum
engajamento com a transformação social? A resposta para essa pergunta é não.
Para fundamentar a resposta dada acima, precisamos resgatar o que Saviani nos diz
sobre o trabalho educativo. Para este autor, trabalho educativo é “o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto de homens” (SAVIANI, 2008b, p. 13). Para que isso aconteça,
precisamos entender que é papel da escola fornecer para as gerações futuras as objetivações
para-si, que se referem aos rudimentos da ciência e das artes, expressões que são do gênero
humano (DUARTE, 2007).
Precisamos, também, como educadores, de métodos adequados para que as gerações
anteriores se apropriem do conhecimento acumulado da humanidade que as eleva à
genericidade do ser social. Em outra fala de Saviani podemos encontrar pistas para como esse
método deve ser:
Serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos, sem abrir
mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre
si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura
acumulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os
ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de
vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação
para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos
(SAVIANI, 2008a, p. 56).
Ao oferecermos esses rudimentos da ciência, da arte e da filosofia usando métodos
adequados rumo a um ensino público de qualidade, estamos oferecendo condições para que a
classe trabalhadora domine aquilo que os dominantes dominam, pois isso também é condição
de libertação
44. Estaremos contribuindo para superação de uma sociedade de classes. Estaremos
no campo da teoria crítica.
Aqui está a justificativa para podermos dizer que esta pesquisa, a qual trata de um
conhecimento específico da química usando uma abordagem lúdica e experimental, é uma
pesquisa que se coloca dentro do paradigma crítico. Ela pertence a esse paradigma pelas suas
concepções mais gerais de homem e conhecimento e pelas suas convicções de que entendendo
melhor o processo de ensino e aprendizagem dos conceitos estaremos contribuindo para um
melhor entendimento do real e assim ganharemos a possibilidade de transformá-lo.
Discutidos os aspectos mais gerais dessa pesquisa e situando-a dentro do seu
paradigma, podemos agora, com mais afinco, passar para os aspectos mais específicos desse
estudo. Para isso, vamos agora retomar a questão impulsionadora desta tese: Quais as
contribuições e limites de uma abordagem lúdica-experimental no processo de
apropriação dos conceitos químicos?
44 Não se trata de achar que a revolução acontecerá pela escola. Trata-se de entender que uma escola tem um papel na revolução que transforma essa sociedade. Seu potencial revolucionário está na sua possibilidade de oferecer aos trabalhadores o conhecimento, que pertence exclusivamente à classe dominante.