• Nenhum resultado encontrado

4 O ATO E OS DISCURSOS NA CLÍNICA INSTITUCIONAL NO CAPS

4.4 ATO DE FALA, LAÇO SOCIAL E OS DISCURSOS

Outro tipo de ato são os atos de fala, uma expressão criada pela filosofia da linguagem, tendo como pioneiro o filósofo inglês John Austin (1911-1960), que elaborou o termo performativo que explica deste modo: “este nome é derivado do verbo inglês to perform, verbo correlato do substantivo ‘ação’, e indica que ao se emitir o proferimento está- se realizando uma ação, não sendo, consequentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo” (AUSTIN, 1990, p.25; grifo do autor). Austin acreditava que a linguagem é performativa e contém enunciados que realizam uma ação, ou seja, quando a fala é performativa, significa que dizer é fazer.

Desse modo, a direção da cura e do tratamento psicanalítico se dá através da fala, do dito, pois a “psicanálise é um método que consiste em desfazer um sintoma pela fala” (GERBASE, 2015, p.18), na medida em que o sintoma foi feito pela fala. Assim, segundo ainda Gerbase (2015, p.49), “o psicanalista procura um significante, ou dito de outra maneira, um enunciado performativo que venha (diz) solver o sintoma pelo dito”, sendo que o sintoma é constituído pela “condensação e o deslocamento, ou metáfora e metonímia, que são atos de fala” (p.55).

Nesse contexto, a direção do tratamento na psicose é parecida com o tratamento do sujeito neurótico. Na psicose, busca-se a estabilização do sujeito e, para que isso ocorra, é necessário que se considere a alucinação como um “enunciado performativo na medida em que não se rege pelos valores lógicos verdadeiro e falso” (GERBASE, 2015, p.59). A diferença é que na estrutura neurótica existe o recalque que “é um mecanismo que induz o sujeito a dizer ‘eu penso’, em vez de dizer ‘o Outro fala’”, como ressalta Gerbase (2015, p.63).

Assim, como argumenta Gerbase (2015, p.70), “a fala cura, não pelo que significa, mas porque faz existir a coisa”. Então, para que possa ocorrer a cura pela fala na associação livre, é necessário que a fala performativa atenda a duas condições: esteja desligada de quem a profere, como no sonho, por exemplo, e não esteja associada a um referente. Assim, “deve-se levar em conta, exclusivamente, a dimensão sonora, significante, da fala, tal como ele o é para o poeta” (GERBASE, 2015, p.96). Mais adiante, o autor (2015, p.116) adverte que a “fala cura pelo logos que há nos sons da voz e nas palavras”.

Nessa perspectiva, “todo dizer do falaser é fazer, ou todo dizer do inconsciente é fazer” diz Gerbase (2015, p.115). Desse modo, o efeito terapêutico da fala está na própria fala e não

no locutor ou no referente e consiste em um significante evocar outro significante. Assim, quando “um significante evoca um significado, não estamos mais na associação livre” (GERBASE, 2015, p.104).

Para a psicanálise, é através de um ato de fala que se pode tratar um sintoma psicanalítico, ou seja, através de um dito, pois a “fala que funda o fato é um dito, mas a fala funciona mesmo quando não funda fato algum. Quando ordena, roga, insulta, quando emite um voto, ela não funda nenhum fato” (LACAN, [1971-1972]2012, p.67). Essa afirmação foi elaborada por Lacan em uma conversa no Hospital Saint-Anne em que ele questiona de onde vem o sentido, sendo que essa pergunta, como alerta Gerbase (2015, p.11), “indica o viés pelo qual se poderia demonstrar a evidência da cura pela fala, o viés do sentido, posto que toda fala tem um sentido”, sendo desse modo que, para “responder de onde vem o sentido, Lacan propõe uma topologia da fala baseada nos quatro discursos”.

É através da linguagem que se constitui a formação dos laços sociais, ou seja, os discursos são produzidos a partir da articulação da cadeia significante. Os quatros discursos, além do quinto que é o discurso capitalista – mas este não faz laço social –, são configurações significantes da estrutura de linguagem, cada discurso é uma prática e todos “constituem de maneira tangível algo de real” (LACAN, [1971-1972]2011, p.61). Embora existam outros elementos além dos significantes na estrutura do discurso, “o que está em jogo é aquilo que ordena e regula um vínculo social” (KYRILLOS NETO, 2007, p.121).

Para Lacan ([1969-1970]1992, p.13), o discurso “já está no mundo e [...] o sustenta. [...] Não apenas já está inscrito, como faz parte de seus pilares”. Em outro ponto de seu ensino diz Lacan ([1972-1973]1996, p.75): o “aparelho, não há outro senão a linguagem. É assim que, no ser falante, o gozo é aparelhado”, a partir do que argumenta Quinet (2009, p.28):

No campo do gozo, os elementos que compõem os discursos - S1, S2 e objeto

a - são, portanto, modalidades de gozo, e o sujeito ($) é resposta do real. O

significante enquanto tal não é mais o significante que barra o gozo como Nome-do-Pai no campo da linguagem. No campo do gozo, o Um do significante S1 só existe como significante do transbordamento, significante

do excesso e do fracasso, que, apesar de mestre, não o domina. Ele é o significante do encontro marcado e faltoso como o sexo, o significante do trauma que se repete ao longo da vida do sujeito. E o S2, o significante

binário, é o saber definido como meio de gozo, como aparece no discurso do mestre. Assim, no campo do gozo, o significante não só se refere ao gozo, mas é causa deste – axioma a que chega Lacan no Seminário 20. A estrutura se encontra no mesmo nível do gozo, e o significante participa da substância gozosa. A estrutura equivale aqui à estrutura do “discurso”, este definido como laço social. Na passagem de um campo para o outro, passamos da estrutura (da linguagem) para as estruturas (dos discursos).

Assim, podemos compreender que “o campo da linguagem a partir do campo de gozo, coloca a linguagem no campo do real mudando a direção da cura em vários níveis, inclusive em suas ambições terapêuticas” (TEIXEIRA, 2001, p.91; grifo do autor). A partir desse momento, “o significante é concebido desarticulado do significado, e apresenta sua paixão pelo gozo, na dimensão do que vivifica e não mais como mortificação e perda”, adverte Teixeira (2001, p.91). Então, no campo do gozo, a “realidade é abordada com os aparelhos do gozo” (LACAN, [1972-1973]1996, p.75), através dos discursos.

Quando Lacan, inspirado em Hegel, introduz o gozo a partir da dialética do senhor e do escravo, ele está se referindo ao processo de alienação em que só é possível a constituição do sujeito a partir do campo do Outro, ou seja, o gozo nessa concepção se refere ao gozo do Outro, da linguagem. Para que o sujeito entre na linguagem, ele se aliena no Outro, entretanto, no processo de separação, ocorre uma perda significante. Falando de outro modo, a entrada do infans na linguagem ocorre com a substituição da coisa pelo significante, entretanto algo permanece como resto que insiste em continuar se escrevendo. Esse impossível de simbolizar e que se repete está ligado à dimensão que Lacan denominou de real.

A partir dos discursos, podemos conceber a psicanálise como um aparelho simbólico que pode tratar o gozo proveniente do real. Como os discursos são laços sociais, existem quatro discursos sobre os quais o sujeito poderá deslizar, ou a que, por alguma questão, se fixar em um determinado discurso, cabendo ao discurso analítico proporcionar o giro discursivo.

O psicótico foi foracluído do Nome-do-Pai, ou seja, foi não-incluso na norma edipiana, pois não passou pelo segundo e terceiro tempo do Édipo, que caracteriza o processo de separação. Entretanto a clínica do sujeito considera a possibilidade de que o psicótico (paranoia, esquizofrenia, melancolia, etc.) possa enquadrar seu gozo e entrar nos laços sociais. O discurso do analista permite ao sujeito falar sobre o seu sintoma e abordar questões importantes sobre a sua dimensão subjetiva, o que poderá favorecer sua inserção nos laços sociais.

Nessa perspectiva, a “topologia dos quatro discursos é a topologia fundamental da qual decorre toda função da fala” (GERBASE, 2015, p.12). Entretanto, “se quer entender como a fala cura, se quer entender a função terapêutica da fala, não leia o sentido, porque o sentido se itera incessantemente”, sendo importante ainda compreender “que isso fala, o id fala, o inconsciente fala, que falo sem saber [...] é indispensável saber que o Outro fala, que o sujeito é falado, habitado pela linguagem”, como ressalta Gerbase (2015, p.13). Assim, para

“alcançar a dimensão terapêutica da fala, é necessário estar no discurso do analista” (GERBASE, 2015, p.12).