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4 O ATO E OS DISCURSOS NA CLÍNICA INSTITUCIONAL NO CAPS

4.1 O ATO PUNITIVO E A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Durante muito tempo, foi aceita a punição como forma legítima de castigo para um ato de contravenção às normas predominantes ou às leis vigentes. Existiam diversas formas de punição como a prática de castigos físicos em partes do corpo do condenado como técnica de sofrimento e a execução em praça pública. O suplício público foi substituído gradualmente por trabalhos forçados e a reclusão em prisões ou nos manicômios que, compulsoriamente, abrigavam os portadores de transtornos mentais, pois estes deveriam ser tratados fora da sociedade. Foi assim que a punição se transformou em uma parte velada da consciência moral em que o essencial é procurar corrigir, reeducar e curar (FOUCAULT, 1978, 2004).

Com o advento da Revolução Francesa (1789-1799), surgiram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, sendo que, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), foi proclamado que todos os povos e nações deveriam promover a paz, a democracia e

o respeito aos direitos e liberdades individuais. Foi baseado nesses movimentos e conquistas históricas, que inspiraram a elaboração de muitos códigos de ética profissionais, que foi elaborado o Código de Ética do/da Assistente Social, que prevê a “consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes trabalhadoras” (BRASIL, 2012, p.23).

Nessa perspectiva, a punição para um ato violento foi sendo modificada para uma pena mais humanizada e uma possível reintegração à sociedade do infrator, com a recuperação da sua cidadania. Entretanto, o termo ato na área de saúde mental continua, na maioria das vezes, sendo utilizado como ação, conceito herdado da clínica psiquiátrica “e sublinha a violência ou a brusquidão de diversas condutas que curto-circuitam a vida mental e precipitam o sujeito numa ação: agressão, suicídio, comportamento perverso, delito, etc.” (BENTES, 2014, p.148). Como exemplo dessa visão, podemos citar um “ato de violência” de que foi acometido o CAPS em que se desenvolveu esta pesquisa e que resultou na modificação da estrutura funcional, pois ocorreu a inclusão de dois policiais militares por dia, presentes entre a equipe de apoio aos funcionários da instituição. Esse “projeto piloto” começou a funcionar a partir do ano de 2014, devido a um ato praticado por um participante do serviço, que danificou as instalações do CAPS.

Durante a coleta de dados para a pesquisa, a pessoa que cometeu o ato contra as instalações do CAPS não fazia mais parte dessa instituição, entretanto seu ato foi mencionado diversas vezes, pelas marcas deixadas tanto nas instalações físicas como no imaginário dos profissionais. Em uma reunião, foi discutido esse caso e afirmado pelos técnicos de que “este usuário, entre muitos que são atendidos nesse CAPS, não tinha residência fixa, vivia em conflito com a lei e dizia que já tinha matado uma pessoa, sendo perseguido por traficantes de drogas. Ele já tinha passado por pelo menos outros dois CAPS na Cidade do Salvador antes de ter sido acolhido por esse serviço. O usuário afirmou que considerava esse CAPS como sua residência e por fim arrombou e passou um fim de semana na casa que sedia essa instituição. Durante a invasão, o usuário roubou pertences particulares dos funcionários e técnicos, danificou as instalações físicas do CAPS, realizando pichações e queimou seletivamente muitos prontuários”.

Esse foi considerado, então, um “ato violento” pelos técnicos e funcionários e modificou a estrutura funcional desse CAPS, o qual, no seu cotidiano, convive com muitos atos praticados pelos participantes dos serviços da instituição. Outro exemplo marcante foi um ato punitivo aplicado a Peter, que foi suspenso temporariamente de frequentar o CAPS após ter ameaçado pegar a arma de um dos policiais. O ato punitivo foi aplicado a Peter após ter

sido avaliado, pela equipe multidisciplinar, que, se ele tivesse conseguido pegar a arma do policial, poderia ter colocado em risco a vida dos seus colegas, colaboradores e técnicos.

Antes de ser aplicada a medida punitiva a Peter, uma assistente social já tinha alertado que estava “preocupada com a segurança dos usuários e técnicos”, pois tinha presenciado uma cena em que um psicólogo, “não conseguiu manter o controle em uma situação de crise”, sendo que este psicólogo era um dos poucos profissionais que tinham estabelecido um laço social devido ao processo de transferência construído com a escuta analítica individual. Ela pediu que fosse registrado na ata da reunião que, diante dos fatos repetitivos, algum dia a equipe poderia necessitar conter Peter. Desse modo, para atender a esse possível caso de emergência, ela solicitou que a médica psiquiatra fizesse uma prescrição dos medicamentos que pudessem ser aplicados em Peter caso viesse a ocorrer essa situação.

A assistente social também falou que “Peter não gosta de pedir”. A técnica acrescentou que “Peter sabe lidar com agressão, mas se você se dirigir para ele com carinho, ele não sabe lidar com a situação de ser bem tratado, e evade do lugar”. A técnica também afirmou que “Peter tem o limite na fragilidade do outro. Na verdade, nem a gente suporta Peter, mas é o nosso trabalho”. Essa frase demonstra que há uma busca de elaboração de saber sobre Peter, característico do discurso universitário. Entretanto não aparece o saber construído por Peter, pois ele, muitas vezes, não utiliza a palavra, somente atua.

Para os profissionais envolvidos na atenção psicossocial, por trás de um ato, existem questões sociais tais como a condição de vida do participante dos serviços de saúde mental e as relações familiares que influenciam decisivamente para que o sujeito cometa os atos violentos. Entretanto, na maioria das vezes, essa análise vem acompanhada por um “pedido de ajuda” para procurar entender as questões relacionadas a pulsões, impulsos, desejos e por que alguns desses sujeitos não se adaptam às práticas da instituição que buscam sua reintegração à sociedade. Essas são questões importantes e poderão ser tratadas pela clínica do sujeito, tendo como referências a teoria e a práxis psicanalíticas.