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2 A PERSPECTIVA DA PSICANÁLISE E DO SERVIÇO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL SOBRE A PRÁTICA EM CAPS

2.3 O SUJEITO NA PSICOSE

O estudo da psicose pela psicanálise foi iniciado por Freud (1911) com a construção do caso clínico Schreber. Posteriormente, Lacan retomaria o estudo desse caso e iria estabelecer as bases para que se possa realizar um tratamento possível para a psicose. Lacan ([1977] 1992, p.9) afirma que a “psicose é aquilo frente ao qual um analista não deve retroceder em nenhum caso”. Assim, é tratando os sujeitos em crise ou em surto psicótico que se pode franquear a eles a possibilidade de fazer uma reconstrução das suas interpretações, mas, para tanto, é preciso que o analista não recue ante as alucinações e aos delírios.

É através do matema da metáfora paterna que, na teoria lacaniana, o sujeito neurótico resolve o problema do enigma do desejo da mãe (d). Essa operação pode ser identificada a partir da formulação pela criança para o Outro da pergunta “Che vuoi?” (Que queres?).

É a partir do Outro que se apresenta como desejante S(Ⱥ)16 e possibilita aos significantes incidirem sobre o corpo da criança, fazendo com que ela seja inserida no campo da linguagem, que ocorre, então, o processo de separação, e o infans pode advir como sujeito na estrutura neurótica. Já na psicose, o Outro se apresenta como sem faltas (A), a criança fica presa no patamar inferior do Grafo do Desejo no processo de alienação, não permitindo que formule a pergunta “Che vuoi?”, cujo esquema pode ser visto no Grafo do Desejo completo na Figura 2 a seguir. Assim nessa perspectiva, a criança não realiza o ciclo de constituição do sujeito, não se separa da mãe, ou seja, não sofre o processo de castração característico do terceiro tempo do Édipo com o processo de separação. É por esse motivo que, segundo Lacan, o psicótico fica submetido aos significantes provenientes do Outro (A).

Figura 2 – Grafo do Desejo completo

Fonte: Adaptado de Lacan, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” ([1960 c]1998, p.831).

Na psicose, acontece “o retorno no real daquilo que foi rechaçado de linguagem” (LACAN, [1973]2003, p.524-525), evidenciando que, na estrutura da psicose, não ocorre a inclusão de um significante fundamental, mas a foraclusão do significante Nome-do-Pai, cuja função é dar sentido ao desejo do sujeito, que antes estava enigmático.

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S(Ⱥ) é o significante da falta do Outro (A). Desse modo, “O grande Outro é a linguagem. O grande Outro é o inconsciente. É uma Outra cena. Não que o inconsciente seja a condição da linguagem, mas que a linguagem seja a condição do inconsciente. Para escrever corretamente seu matema deveria escrever [S(Ⱥ)], o que se lê como: falta um significante no grande Outro. Isto implica que o grande Outro também seja barrado, o que se pode ler como: o grande Outro não existe.” (GERBASE, 2010, p.26)

A falta do significante Nome-do-Pai, que tem a função de barrar o gozo sem limites, impede a construção de pontos de estofo que possibilitem fazer a amarração da cadeia significante. É a ausência do significante Nome-do-Pai no nível do Outro que caracteriza a psicose. Na operação de separação, o Nome-do-Pai é o significante que permite ao sujeito ter acesso à significação fálica e dar sentido a seus significantes, construir a estrutura neurótica e ser incluído na ordem simbólica.

A psicose é caracterizada como o fracasso da metáfora paterna e, por esse motivo, o psicótico se posiciona como objeto do Outro, a quem é atribuída uma totalidade sem furo e sem falta. Por isso, Lacan ([1964 b]1998, p.866) afirma que “Freud nos revela que é graças ao Nome-do-Pai que o homem não permanece preso ao serviço sexual da mãe, que a agressão contra o Pai acha-se no princípio da Lei, e que a Lei está a serviço do desejo que ela institui pela proibição do incesto”. Desse modo, é o significante Nome-do-Pai, o significante da castração, que estabelece uma barreira ao gozo e permite que seja realizado o processo de separação. Assim, é graças ao Nome-do-Pai que a criança não permanece alienada aos caprichos da mãe, entretanto também se deve levar em consideração a influência da própria criança nesse processo através da “contingência do ouvir” 17 (GERBASE, 2010, p.27).

Uma hipótese possível para a direção do tratamento na psicose é a de que a foraclusão, a falta da metáfora paterna, pode ser compensada, ou seja, pode-se fazer uma nova abordagem com suplências dos Nomes-do-Pai. A suplência de significante é algo que Lacan defendia, passando do Nome-do-Pai, para os “Nomes-do-Pai no plural, que pressupõe uma distinção entre a função e o termo que sustenta a função”, sendo, desse modo, necessário que se desenvolva “uma clínica dos substitutos do Nome-do-Pai, dos diferentes termos que a clínica nos apresenta e que exercem a função de estabilizadores” (SOLER, [1937]2007, p.205) para o sujeito psicótico. Nessa perspectiva, não se pode “pretender curar o delírio, pois ele mesmo já é uma tentativa de cura da foraclusão do Nome-do-Pai” (QUINET, 2011, p.101-102).

Na psicose, existem dois momentos, ou seja, o da estabilização e o do desencadeamento. É a identificação com o desejo da mãe, “uma espécie de identificação postiça” (SOLER, [1937]2007, p.19) que permite ao psicótico se estabilizar no imaginário e manter o equilíbrio antes do desencadeamento da psicose. Para Lacan ([1957-1958]1998, p.572), na psicose, “a identificação pela qual o sujeito assumiu o desejo da mãe, ela desencadeia, por ser abalada, a dissolução do tripé imaginário”, ou seja, a psicose é

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Segundo Gerbase (2010, p.27): “A contingência do ouvir é a significância que o sujeito dá ao dito do grande Outro”, ou seja, “Entre aquilo que é emitido e aquilo que é recebido, há uma contingência do que é ouvido, que limita muito a responsabilidade dos pais para com seus filhos, além do fato de que eles mesmos sofrem os efeitos daquilo que mais lhe escapa, os efeitos do inconsciente”.

desencadeada quando a identificação com o desejo da mãe é abalada e ocorre a dissolução do imaginário. Existe uma diferença na dissolução do imaginário entre a psicose e a neurose, pois, durante a constituição do sujeito na neurose, quando a identificação com o desejo da mãe é abalada durante o processo de separação, o sujeito neurótico dá lugar para a construção da sua fantasia ($a).

Levando em consideração os aspectos explicitados acima, a direção do tratamento possível na psicose se dá com a busca da estabilização do sujeito psicótico. Para Freud ([1911]1987), a partir da construção do caso clínico Schreber, o delírio deveria ser incluído no tratamento da psicose. Entendo também que a estabilização do mundo imaginário é uma das maneiras possíveis que o sujeito psicótico encontra para manter sua estabilização.

A transferência na clínica da neurose é um fator fundamental para que a análise ocorra e oriente a direção do tratamento, pois é fácil identificar a posição do analista como objeto a no discurso analítico, sendo que o recalcamento está na base do sintoma neurótico. Já na psicose, a transferência pode ser um elemento desencadeador e deve ser considerado dentro da sua especificidade, já que tradicionalmente o psicótico é visto pela impossibilidade de fazer laço social. Na psicose, o “trabalho do delírio é o próprio sujeito que se encarrega, solitariamente, não do retorno do recalcado, mas dos ‘retornos no real’ [do] [...] significante que surge sozinho, fora da cadeia do sentido” (SOLER, [1937]2007, p.185;186).

Devido à dificuldade de manejar a transferência na psicose, Lacan argumenta, como dito anteriormente, que o analista deve ocupar a posição de “secretário do alienado”, ou seja, o analista deve “ocupar um lugar compatível com aquele que é alojado pela foraclusão em cada caso” (COSTA; FREIRE, 2010, p.77) e acolher os significantes que o sujeito psicótico traz sem remetê-lo, pela interpretação, a uma nova significação. Para Lacan (aula de 10 de novembro de 1967, p.15), o psicótico carrega o objeto a “no bolso”, pois, com a foraclusão do Nome-do-Pai, a operação de separação não se completa na psicose. Assim, é necessário que o analista escute o sujeito psicótico, identifique o que desencadeou os delírios, as alucinações, e acompanhe suas construções e estabilizações (LACAN, [1955-1956]1988).

O trabalho da psicose tem suas características próprias, com diversas formas de realizar o tratamento do real, entretanto implica em certa responsabilização do sujeito no trabalho de civilizar seu gozo até torná-lo suportável. Para isso, é necessário que o analista possa acolher “a singularidade do sujeito psicótico, como a de qualquer outro sujeito [...] e suportar aquele que não é escravo da lei fálica” (SOLER, [1937]2007, p.191; 192).

Para que haja um tratamento possível na psicose, é necessário fazer com que o gozo, mesmo sem o aparelhamento da lei do Nome-do-Pai, possa entrar nos limites do discurso, ou

seja, dos laços sociais, sendo necessário “restaurar aquilo que é desatrelado na perseguição e no desastre do imaginário pelo deslocamento das identificações, de tal sorte que o gozo entre na dialética do discurso” (SOLER, [1937]2007, p.203). Como exemplo desse aparelhamento, podemos compreender que o delírio é um modo singular de o sujeito psicótico lidar com o real não simbolizado, e “ocupa na psicose um lugar homólogo ao do trabalho da transferência na neurose, que é também um remanejamento significante” (SOLER, [1937]2007, p.201).

A psicanálise e a clínica do sujeito buscam ajudar o sujeito psicótico a identificar os mecanismos capazes de sustentar a identificação imaginária estabilizadora da estrutura psicótica. Quando a psicose é desencadeada, essa posição não se invalida, pois se pode ajudar o sujeito a trazer à tona significantes pertinentes para a sua reestabilização, capazes de dar contorno ao que não foi simbolizado e que retorna no real. Assim, é através da posição de secretário do alienado que o analista poderá manejar a produção delirante do psicótico proporcionando uma suplência em favor da estabilização da sua estrutura.