• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – CONCEITOS E DIRETRIZES DA SOCIOEDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA

3.6 ATRIBUIÇÕES DOS PROFISSIONAIS

As diretrizes do SINASE (BRASIL, 2006) referentes aos parâmetros da gestão pedagógica no atendimento socioeducativo, mais especificamente no tocante ao acompanhamento técnico que deve ser disponibilizado aos adolescentes, considera imprescindível que, na composição das equipes multiprofissionais, os profissionais tenham o conhecimento teórico-prático na esfera da especificidade do trabalho que irão desenvolver. Alem disso, considera como elemento essencial da política de recursos humanos dos programas de atendimento os processos de formação e capacitação continuadas para o trabalho socioeducativo.

Os profissionais que compõem a equipe multidisciplinar da unidade, independentemente da formação profissional, possuem uma designação comum de técnicos ou equipe técnica. Os adolescentes atendidos por esta equipe raramente

fazem referência a ela de acordo com suas formações, mas fazem referência ao “técnico que os atende”.

PSICÓLOGO: “[...] em relação ao meu papel aqui, que é essa questão de técnica [...] primeiro que eu odeio esse nome! [...] parece uma coisa muito específica, até de apertar parafuso [...] mas acaba que a gente é técnico mesmo [...] porque a gente não tem uma especificidade, então eu, como psicóloga, não consigo atuar de forma mais específica dentro da minha área. Claro que a minha abordagem, a minha visão é essa, mas no trabalho eu não consigo atuar dessa forma, então muitas vezes as pessoas pensam: ‘ah! você está sendo acompanhado por uma psicóloga’? ‘não, você está sendo acompanhado por uma técnica’ − porque eu não consigo atuar dentro da minha área aqui, não tenho enquadro, não tenho espaço, não tenho nada do que eu possa ter dentro do enquadro profissional de um acompanhamento psicológico, psicoterapêutico [...]”.

O sujeito menciona o fato de que os profissionais, fundamentalmente a dupla que atende o adolescente, não possuem uma especificidade nas intervenções que realizam; no entanto, a observação da dinâmica de trabalho da instituição revela que esta especificidade se encontra diluída dentro das atribuições que lhe são designadas. O atendimento realizado segue um determinado formato em relação a um objetivo pré-definido, que é a coleta de informações para a composição do relatório que irá subsidiar a decisão judicial, bem como para os encaminhamentos que serão feitos para cada adolescente. Isso faz com que os sujeitos constatem uma limitação ao seu exercício profissional ou, conforme o depoimento, a falta de espaço e de enquadro profissional.

Nesta configuração de trabalho, o assistente social e o psicólogo realizam uma intervenção profissional semelhante, fazem uso dos mesmos instrumentais técnicos: a entrevista, o questionário, levantamento socioeconômico, a reunião e o relatório. Perante as exigências que lhes são colocadas no dia-a-dia da instituição, estes profissionais possuem um espaço muito limitado para realizar as intervenções que seriam específicas de suas formações.

PSICÓLOGO: “[...] até porque eu tenho que fazer um relatório que vai subsidiar, eu vou fazer uma sugestão para o juiz do encaminhamento dele; então,

isso já descaracteriza totalmente o meu trabalho, eu, por mais que eu fale da questão do sigilo que eu tenho que preservar o sigilo, muita coisa a gente tem que abrir no relatório, que é pra justificar o que a gente venha a sugerir [...] então você fica muito no fio da navalha, você tem que colocar as dificuldades do adolescente, das vivências que ele teve. Mas você sabe que, muitas vezes, e quase sempre, o juiz vai se utilizar do que você coloca tanto pro bem quanto pro mal, pra poder colocar tudo nas tuas costas com relação ao adolescente [...] então, ele usa do que você coloca no teu parecer pra ou deixar o menino aqui ou então liberá-lo, e depois de repente você ser o responsável por qualquer outro ato infracional que ele venha a cometer”.

A questão do sigilo profissional referida pelo profissional é um ponto bastante controverso dentro de suas intervenções. As exigências éticas da profissão impõem que se mantenha o sigilo das informações a que se tem acesso nos atendimentos. O art. 9º do Código de Ética Profissional do Psicólogo (CONSELHO, 2009) prevê: “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional”. No Código de Ética do Assistente Social (CONSELHO, 2006), o capítulo V é dedicado especialmente à questão do sigilo profissional.

Art. 15 - Constitui direito do Assistente Social manter o sigilo profissional. Art. 16 - O sigilo protegerá o usuário em tudo aquilo de que o assistente social tome conhecimento, como decorrência do exercício da atividade profissional.

Parágrafo único - Em trabalho multidisciplinar só poderão ser prestadas informações dentro dos limites do estritamente necessário.

Art. 17 - É vedado ao assistente social revelar sigilo profissional.

Art. 18 - A quebra do sigilo só é admissível quando se tratarem de situações cuja gravidade possa, envolvendo ou não fato delituoso, trazer prejuízo aos interesses do usuário, de terceiros e da coletividade.

Parágrafo único - A revelação será feita dentro do estritamente necessário, quer em relação ao assunto revelado, quer ao grau e número de pessoas que dele devam tomar conhecimento.

Contraditoriamente, ao sugerir um determinado encaminhamento, o profissional se vê obrigado a abrir tais informações como forma de justificar sua sugestão. Embora se admita a quebra de sigilo no intuito de preservar interesses dos indivíduos, a interpretação deste conteúdo caberá à autoridade judiciária, que pode fazer outra leitura destes dados e optar por um encaminhamento diverso do

sugerido, fazendo com que os profissionais sintam-se, de alguma forma, responsáveis por esta decisão.

Outro aspecto que merece destaque na esfera das relações entre os profissionais é certa separação entre “equipe técnica” e educadores. Uma das incumbências dos educadores, assentadas anteriormente, é a de zelar pela segurança dos internos e demais funcionários; este é um aspecto em que estes profissionais são mais cobrados pela coordenação e direção. A experiência cotidiana destes educadores faz com que eles identifiquem facilmente quais situações são passíveis de desencadearem situações de risco, por exemplo, aproximar adolescentes com rivalidades advindas da rua.

Estes profissionais, sendo responsáveis por propiciar uma ambiente seguro para desenvolvimento do atendimento, em muitas situações necessitam restringir, limitar ou mesmo cancelar algumas intervenções. A avaliação que fazem dos riscos de uma determinada ação é baseada nas diretrizes de segurança, mas também leva em conta o conhecimento acumulado ao longo do tempo e pela vivência no ambiente institucional. Ocorre que os profissionais que não possuem esta vivência e experiência, até por não serem envolvidos nestes processos, podem sentir que o exercício de sua função está sendo restringido e até mesmo a importância de seu trabalho não está sendo reconhecida dentro da dinâmica institucional, permanecendo em um plano secundário.

Da mesma forma, as relações podem ser conflituosas quando o educador, pela natureza de sua função, é visto como não possuidor de conhecimento para participar das decisões de cunho pedagógico ou administrativo, bem como quando profissionais de áreas técnicas ou mesmo administrativas desejam participar dos processos eminentemente operacionais, mas não são considerados aptos a estas definições.

Todas estas peculiaridades geram impasses dentro das relações entre a equipe, podendo gerar afastamento, falta de diálogo, limitar ações e projetos conjuntos, cujos efeitos podem ser sentidos tanto na qualidade do atendimento realizado, quanto nas próprias relações interpessoais constituídas no ambiente de trabalho.

EDUCADOR 2: “bom, eu, como coordenador de segurança, tento mediar justamente isso aí, então o pessoal da equipe técnica tem uns anseios, aí enrosca

na segurança com os educadores [...]”.

Esse depoimento traz de significativa a tensão existente entre os diferentes profissionais atuantes na unidade, decorrente das atribuições que lhes são designadas, além de enfatizar uma das contradições presentes no processo de atendimento, que é a cisão entre a segurança e os aspectos disciplinares que lhe são decorrentes, do trabalho pedagógico e psicossocial. Portanto, muitas das dificuldades percebidas na interação entre as áreas profissionais são decorrentes da própria dinâmica de trabalho da unidade.

Um aspecto extraído dos depoimentos diz respeito a outra dificuldade apontada pelos participantes da pesquisa dentro do exercício profissional:

TERAPEUTA OCUPACIONAL: [...] com relação ao meu caso mais específico: a terapia ocupacional que utiliza as atividades como recurso terapêutico [...] o meu impasse é a falta de recursos materiais mesmo [...] falta instrutores, outros profissionais [...]”.

O CENSE, do ponto de vista arquitetônico, é dotado de muitos espaços destinados ao desenvolvimento de atividades junto aos adolescentes internos. No entanto, se constata uma frequência muito pequena de realização de oficinas pedagógicas, e as profissionalizantes, no momento, são inexistentes. Tal impasse apresenta, como uma das causas, a falta de recursos materiais e de profissionais para atuarem como instrutores, além da escassez de educadores para acompanharem os adolescentes nas oficinas. Algumas destas oficinas são realizadas pelos próprios educadores, com materiais por vezes doados, mas são momentos restritos em virtude do conjunto de ações que estes profissionais realizam no dia-a-dia da instituição.

Por esta razão é que as intervenções feitas nesta esfera tendem, na maior parte dos casos, a se voltar para atividades lúdicas, de lazer ou outras que permitam a ocupação do tempo dos adolescentes.

A questão da ocupação do tempo dos indivíduos foi discutida no primeiro capítulo do trabalho no contexto dos mecanismos de controle disciplinar, uma vez que, para Foucault (1987), o controle do tempo está relacionado à possibilidade do controle de comportamentos. Assim, perante a insuficiência de atividades

pedagógicas e profissionalizantes, as atividades recreativas e de lazer, tais como rádio, leitura, filmes e jogos, cumprem a finalidade de reduzir o tempo ocioso dos internos, de diminuir a tensão e ansiedade, além de servir de incentivo ao cumprimento e respeito às normas de disciplina.

Ainda no aspecto dos recursos institucionais existentes em relação às demandas que os profissionais apresentam, é necessário mencionar que os assistentes sociais e psicólogos compartilham de uma única sala, os atendimentos individuais que precisam ser realizados junto aos adolescentes são feitos ou nas salas de atendimento que ficam nas próprias casas, ou no espaço da área de convívio, que conta com apenas três salas pra este fim. Para contato telefônico dos adolescentes que são de outros municípios, com seus familiares, existe apenas um telefone disponível, o que faz com que eles, por vezes, demorem certo tempo pra conseguirem este contato e fiquem bastante ansiosos.

No âmbito das dificuldades que perpassam o desenvolvimento das ações dos profissionais, foi possível perceber a referência feita por eles acerca da questão da interdisciplinaridade, no que tange, inclusive, ao seu aspecto conceitual.

PSICÓLOGA: “[...] o nosso trabalho é em grupo, ou seja, supõe-se que seja interdisciplinar, que precisa das duas visões, só que eles só permitem que um técnico vá pra fazer as visitas domiciliares, então quer dizer que eles, ao mesmo tempo que colocam que existe a necessidade dos profissionais ali, eles destituem, deslegitimam − não sei se existe essa palavra! − a nossa atuação [...].”

Inicialmente, se faz importante colocar que o sujeito insere uma definição para interdisciplinaridade, como a realização de um trabalho em grupo que agregue diferentes visões profissionais. Como se trata de um conceito que recebe diferentes interpretações e é alvo de muitos equívocos, serão inseridas algumas considerações referentes ao seu significado e a diferença deste com os conceitos de multi e transdisciplinaridade.

Para Munhoz (1996), a ideia de interdisciplinaridade vai além da mera convivência entre os diferentes profissionais e, sendo assim, significa mais do que o trabalhar em grupo, impondo uma relação de troca, reciprocidade, discussão. Impõe, sobretudo, a consideração de que por mais que os indivíduos apresentem incompatibilidades em suas maneiras de ver o mundo, existe sempre a possibilidade

do diálogo. O interdisciplinar recusa a compartimentalização do conhecimento e sua consequente apropriação por determinados especialistas.

Uma vez colocada esta consideração, pode-se inserir outro depoimento que nega a existência da interdisciplinaridade no exercício profissional dos sujeitos:

ASSISTENTE SOCIAL: “eu acho que a gente, enquanto equipe técnica [...] essa dupla que atende o adolescente, eu vejo que a gente não faz um trabalho tão interdisciplinar assim, a gente tem muito pouco de interdisciplinaridade no trabalho da gente, do que uma coisa própria, assim, da gente exercer mesmo o trabalho da gente como assistente social, como psicólogo [...] assumir essa especificidade”.

O participante da pesquisa considera que o trabalho realizado pelos profissionais está muito mais voltado ao exercício de uma determinada profissão em suas peculiaridades do que propriamente um diálogo entre estas profissões. Outro sujeito apresenta um ponto de vista mediador, considerando que, apesar da existência de um esforço em se buscar o trabalho interdisciplinar, o que existe entre os profissionais são alguns momentos de interdisciplinaridade.

PEDAGOGA: “a gente tem tentado, enquanto equipe, trazer discussões, inquietações, e a gente tem feito um esforço de fazer reuniões e discutir a nossa prática, e muitas vezes, nas reuniões com os outros profissionais, discutir os encaminhamentos dos adolescentes [...] então a gente faz esse esforço para que o trabalho se aproxime de um trabalho interdisciplinar, mas essas relações interdisciplinares [...] elas têm acontecido em alguns momentos isolados, alguns momentos pontuais e de forma assistemática.”

Em dado momento, o mesmo profissional insere em sua reflexão a questão da transdisciplinaridade:

PEDAGOGO: “eu acho que a gente tenta dentro das nossas leituras, a gente tenta ali no nosso mundinho ter uma interdisciplinaridade em alguns momentos, na questão da discussão, no debate, nos olhares, mas assim... na questão do trabalho, é uma coisa transdisciplinar que eu faço, tanto o papel que talvez seria atribuição dela, ela faz o papel que talvez seria minha atribuição, e a gente faz o papel que não sei de que seria a atribuição”.

A consideração feita pelo sujeito de que os profissionais realizam as atribuições uns dos outros está relacionada à consideração de que, na perspectiva da transdisciplinaridade, no entender de Munhoz (1996), o foco principal do trabalho reside na sua finalidade, a qual não pertence a nenhum domínio exclusivo, é comum a todos. Assim, a realização da intervenção socioeducativa junto aos adolescentes é considerada o propósito a ser buscado entre todos os profissionais, independente de suas especificidades.

No que tange à multidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade − normalmente os dois conceitos são usados como sinônimos −, o que importa ressaltar é que, em relação a ambos, o que existe é “apenas uma simples coexistência − pacífica ou não − de compartimentos quase sempre estanques, resistentes ou indiferentes à interpenetração e, consequentemente, ao intercâmbio”. (MUNHOZ, 1996, p. 168).

Neste contexto, é importante ressaltar que o SINASE (BRASIL, 2008, p. 42) faz referência às equipes profissionais que devem atuar nos programas de atendimento como “equipes técnicas multidisciplinares”, ou seja, assume a perspectiva da coexistência das diferentes áreas do conhecimento, mas não de seu intercâmbio.

3.7 POLÍTICAS PÚBLICAS E REDE DE ATENDIMENTO

Em muitos momentos do debate, a exemplo da questão da inserção profissional e educacional dos adolescentes, os depoimentos dos profissionais fazem referência ao fato de que a ausência de políticas públicas, ou a tímida intervenção do Estado na esfera do atendimento aos adolescentes em regime de internação, constitui um dos maiores entraves para o desenvolvimento das ações destes profissionais no âmbito de suas atribuições.

PSICOLÓGA: “[...] o Estado [...] uma hora ele dá estrutura, dá um pouco de profissional e ele acha que isso daí está bom e você que se vire [...] ele não dá o material, ele não tem a política pública, ele não dá visibilidade e na verdade, assim: todos... nós aqui também somos excluídos juntamente com esses adolescentes [...]”.