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4 RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MÉDICOS E O CONTRATO DE TRATAMENTO

4.1 O ATUAL ENQUADRAMENTO CONSUMERISTA

Acerca da natureza da avença estabelecida entre paciente e médico, Miguel Kfouri Neto refere que aqui no Brasil, a despeito da ausência de consenso quanto a este ponto, é reconhecida grande semelhança entre o contrato de locação de serviços e o “contrato de serviços médicos” (2018, p. 94) – que aqui nestes escritos vem sendo denominado de “contrato de tratamento” (NILO; AGUIAR, 2018, p. 106).

Em função desta semelhança, Kfouri Neto parece repelir à tese de que seria um contrato inominado (sui generis), pois “a atividade do profissional liberal, não submetida à legislação trabalhista, consiste em prestar ao seu contratante um serviço certo, mediante pagamento determinado” (KFOURI NETO, 2018, p. 95).

Em outro sentido, José de Aguiar Dias acredita que o enquadramento do contrato de tratamento (expressão que aqui utiliza-se, mas que também não foi utilizada por este outro autor)

como um contrato sui generis é a ideia mais acertada, “pois a ideia da elevação da natureza dos serviços médicos acima da simples locação de serviços [...] é ainda a que domina entre os que consideram atentamente a feição especial da assistência médica” (grifou-se) (2011, p. 279).

E complementa, este autor, que se trata de um “contrato [que] exige do médico uma consciência profissional, para cuja observação não basta a simples correção do locador de serviços” (DIAS, 2011, p. 280). A este posicionamento, filia-se este trabalho, o qual buscará demonstrar (infra) as especificidades do contrato de tratamento, um contrato de prestação de serviço sui generis deveras distante de um contrato comum de locação de serviços.

Já Sérgio Cavalieri Filho, por sua vez, ao analisar a questão da responsabilidade pessoal do médico, menospreza tal distinção alegando que “essa divergência acerca da natureza jurídica do contrato em nada altera a responsabilidade do médico” (2014, p. 431), pois esta questão perdeu relevância depois do Código de Defesa do Consumidor.

O mencionado autor, quando assume tal entendimento, refere-se ao fato de que a natureza jurídica relacional “não vai importar para a necessidade de aferição do elemento culpa” (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 431)114. Na sua perspectiva, o que importa nessa responsabilização

subjetiva (que analisa a culpa) é apenas saber se a obrigação gerada pela avença é de meio ou de resultado, reduzindo assim as consequências de uma investigação mais profunda da natureza jurídica desta relação sui generis.

Por sua vez, Eduardo Dantas, divergindo do pensamento central aqui exposto, vale-se da ampla115 definição legal oferecida pelo diploma consumerista (assim como outros autores), a partir

dos conceitos de consumidor, fornecedor e serviço (arts. 2º e 3º do CDC), chegando à conclusão de que “há uma intrínseca relação de consumo na prestação de serviços médicos” (2014, p. 30).

Mas este enquadramento da relação paciente-médico no regime consumerista, destaque-se, apoia-se apenas (i) numa pretensa interpretação gramatical (bastante questionável, pois efetivamente os termos “paciente”, “médico” ou nada que remeta minimamente ao contrato de tratamento ocorrem uma vez sequer em todo o texto do CDC), bem como numa (ii) tentativa de favorecer o paciente com uma paridade de armas para quando do litígio judicial já instalado (ideia

114 Ambas obrigações perpassam pela análise da culpa (responsabilidade subjetiva), a diferença é que na obrigação de resultado o ônus de provar que não agiu com culpa, em face de eventual erro médico, fica a cargo do médico. 115 “Como é notório, a Lei 8.078/1990 adotou um sistema aberto de proteção, baseado em conceitos legais indeterminados e construções vagas, que possibilitam uma melhor adequação dos preceitos às circunstâncias do caso concreto” (grifou-se) (TARTUCE; NEVES, 2014, p. 38).

até louvável, mas que constitui-se num paralogismo116 que mais prejudica do que favorece o

próprio paciente – o que será demonstrado abaixo).

A partir desta ampla definição legal oferecida pelo CDC, utilizada como principal parâmetro jurídico para o enquadramento da relação paciente-médico no regramento consumerista, poder-se-ia entender também, por exemplo, que um trabalhador é um mero locador de seus serviços perante o seu empregador. Afinal, a abstrata definição de “fornecedor” expressa no art. 3º do CDC aparentemente poderia ser aplicada à figura do empregado117, que fornece seus serviços ao patrão.

Destaque-se que fez toda diferença uma observação acurada da real natureza jurídica da relação trabalhista entendida como processo, de maneira que o contrato empregatício passou a ser regulado por um então novo ramo do direito, o Direito do Trabalho. “O contrato de trabalho desligou-se da locação de serviços, distinguindo-se pelo vínculo de subordinação ou dependência pessoal em que se mantém, na vigência da relação, a parte que presta serviços” (GOMES, 2010, p. 19).

E não por acaso, para evitar possíveis equívocos interpretativos, o próprio legislador de 1990 fez questão de ratificar que o empregado não é um mero fornecedor de serviços118,

evidenciando que a ampla definição legal proposta no CDC pode induzir a erro, abraçando erroneamente relações jurídicas além do desejado.

O Direito do Trabalho e o Direito Médico, destaque-se, têm muito em comum, na medida em que nestes ramos jurídicos o bem jurídico mediato é indissociável do próprio ser humano. No Direito do Trabalho o objeto mediato é a energia laboral do homem, algo que não lhe pode ser destacado do seu próprio corpo. Já no Direito Médico, a saúde do paciente (objeto) também lhe pertence de uma forma inseparável.

116 Aqui utiliza-se a expressão “paralogismo” em seu conceito que se opõe à noção de “sofisma”. Em ambas as palavras há um desencontro com a verdade, no entanto, na primeira há um engano involuntário por parte do orador, um falso raciocínio, que se encontra imerso em uma boa-fé, embora possa ter a forma de um silogismo e a aparência de verdade. Já na segunda expressão (sofisma), o falante utiliza-se de um artifício de oratória apoiado numa má-fé, o qual deliberadamente quer levar seu antagonista a um engano proposital. É um raciocínio falacioso que que simula estar de acordo com as regras da lógica, com a finalidade de produzir a ilusão da verdade.

117 A própria história remonta que numa superada perspectiva a relação de trabalho já foi considerada como mera locação de serviços: “Seu objeto é uma prestação de fazer (do mesmo modo que o objeto do contrato empregatício), porém encarada tal prestação como resultado e não como processo (ao passo que o contrato de emprego, em geral, vislumbra a prestação de fazer como um processo, um vir-a-ser constante e relativamente indeterminado). Não se pactua, na prestação de serviços, uma obra, materialmente, porém trabalho” (DELGADO, 2008, p. 336).

118 Art. 3º, §2º do CDC: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (grifou-se).

E mais ainda, ambos os ramos jurídicos possuem um sujeito com uma vulnerabilidade muito especial e característica na relação: o empregado subjuga-se ao empregador premido pela sua necessidade de garantir sua subsistência material, e o paciente sujeita-se ao comando do médico impelido da necessidade de garantir a sua saúde, sua vida, sua existência material.

Todavia, e por ainda inexistir uma doutrina mais madura acerca da natureza jurídica da relação-objeto deste embrionário ramo do direito, chamado de Direito Médico, uma ressalva legislativa equivalente ainda não foi dispensada aos contratos de tratamento119, o que impediria a

subsunção da figura do paciente a do consumidor, bem como da figura do fornecedor ao médico em ato pessoal terapêutico ou diagnóstico.

A despeito da discordância que aqui será expressada, parte majoritária da doutrina (e quase a totalidade da jurisprudência120), portanto, entende que a relação estabelecida entre o paciente e

seu médico é de consumo, no entanto, subsumível ao §4º do art. 14 do CDC – uma das duas únicas exceções de subjetivação da responsabilização presentes em todo o CODECON121.

Na prática forense, dentre outras coisas, este enquadramento legal acarreta algumas implicações processuais cíveis (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2015, p. 754 e ss): (i) a escolha do foro de eleição pelo “consumidor” (paciente), autor da ação, ocorre independentemente de onde tenha acontecido o atendimento ou tratamento122; (ii) o prazo

prescricional para proposição de uma ação de responsabilização cível é elevado para cinco anos123,

enquanto no Código Civil é de três anos124; (iii) dá-se a completa invalidade de cláusulas

119 Esta nomenclatura aqui utilizada, introduzida por Nilo e Aguiar (2018) na doutrina brasileira, surgiu no Direito Civil alemão para se denominar a avença estabelecida entre o paciente e seu médico quando de um ato diagnóstico ou terapêutico por parte deste. Este termo e os dispositivos que compõem o contrato de tratamento, forma introduzidos no ordenamento germânico pela já mencionada “Lei para melhoria dos direitos dos pacientes”, substituindo a expressão até então utilizada de “contratos médicos”.

120 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 626816/SP. 2014/0303446-5 de 10/06/2016; AgRg no AREsp 844197/SP. 2016/0012068-8 de 13/06/2016; AgRg no AREsp 499193/RS. 2014/0079489-6 de 10/02/2015, todos disponíveis em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 03 mar. 2019.

121 O CDC é um diploma de responsabilização objetiva, ou seja, no qual não se analisa a culpa do sujeito acusado de ter causado o dano. Todo o seu sistema normativo material e processual é voltado para atender este perfil, pautado na teoria do risco. As únicas duas “válvulas” de subjetivação encontram-se no §4º do art. 14 e no §4º do art. 28. Neste último, a outra exceção de subjetivação, o legislador consumerista estabeleceu que as sociedades coligadas só́ responderão mediante a apreciação da culpa.

122 Art. 100, I do CDC. 123 Art. 27 do CDC.

contratuais que excluam ou mesmo atenuem o dever de indenizar, em caso de dano125; e (iv) a

inversão do ônus da prova em favor do paciente126.

Mas é preciso investigar, de forma mais detalhada, se este enquadramento consumerista, a despeito de aparentemente “proteger” o paciente, favorecendo-o com algumas vantagens processuais, deve mesmo prevalecer. É oportuno perquirir em que medida (e se) estava correto Miguel Kfouri Neto quando escreveu que “de lege data, por conseguinte, os médicos, enquanto profissionais liberais, não se sujeitam às normas do Código de Defesa do Consumidor, em relação aos atos terapêuticos” (2013, p. 236).

4.2 A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO PACIENTE-MÉDICO E INADEQUAÇÕES DO

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