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4 O MODO PETISTA DE GOVERNAR 71

4.6 Atualizando o modo petista 93 

O PT não produziu outro livro sobre o assunto com a densidade das sínteses presentes em “O modo petista de governar” de 1992. Nas resoluções de Encontros e Congressos, não se observa nenhuma grande mudança ou alteração na forma como se caracteriza a participação, sendo sempre reforçado o “modo petista” e a implantação do orçamento participativo e de conselhos gestores nas prefeituras.

A reflexão do Partido pode ser acompanhada por meio de publicações que buscam dar continuidade e atualizar a reflexão sobre o modo petista de governar — e também o “modo petista de atuação parlamentar”. Diferentemente do livro de 1992, que foi de elaboração coletiva, os novos livros são feitos sob o formato de artigos de prefeitos e outras lideranças ligadas às administrações petistas. Embora não constituam documentos oficiais, são um valioso insumo para percebermos alterações e nuances do debate. Essa seção busca apresentar uma sistematização dos debates presentes nesses cadernos (PALOCCI, BUARQUE, PONT, 1997; TREVAS, MAGALHÃES, BARRETO, 1999; FRATI, ABRAMO, 2005).

Com a proliferação de experiências bem-sucedidas de Orçamentos Participativos em governos petistas de grandes cidades que proporcionaram grande visibilidade política (Belo Horizonte, Belém, Recife, Distrito Federal, Santo André), bem como a sua disseminação nacional e internacional para além dos limites partidários, passa a aparecer nos debates a preocupação com a diversificação das experiências de participação.

Há uma percepção sobre uma ausência de reflexão interna partidária e do risco da eventual redução da diretriz de promoção da participação popular a um único instrumento. Pontual e Silva (1999) defendem a retomada do “sentido estratégico da participação para a disputa de hegemonia e radicalização da democracia” em face de seu uso político para outros fins. Defendem ainda a necessidade de reflexões sobre a diversidade de mecanismos de participação e sobre sua relação com a descentralização administrativa e modernização da gestão.

Em sentido semelhante, Genro (1997: p. 22) afirma que o sucesso do OP em Porto Alegre está ligado à sua articulação com uma “constelação” de mecanismos de participação:

É um fetiche a visão de que, em Porto Alegre, foi exclusivamente o Orçamento Participativo que fez isso. O Orçamento Participativo é uma peça fundamental, mas não o único meio de participação direta que existe na cidade. Nós temos, em torno da prefeitura, uma verdadeira constelação de conselhos da sociedade civil em que ela tem maioria, desde o Conselho da Criança e do Adolescente, o de Assistência Social, os Conselhos Tutelares, etc. São dezenas de conselhos que cercam o governo e que negociam e decidem sobre as políticas públicas implementadas. Jogam também essas demandas para dentro do Orçamento Participativo e de uma estrutura que se chama Cidade Constituinte, que acompanhou todo o governo e fez dois congressos da cidade, tomando decisões estratégicas.

Daniel (1999) reconhece o Orçamento Participativo como a experiência mais visível e bem-sucedida das inovações institucionais do PT. No entanto, apresenta-se crítico a uma visão que estaria presente no PT de que o OP seria a instância que subordina todas as demais iniciativas de participação. Ele reforça a necessidade de instituição de mecanismos diversificados de participação com vistas a atingir um conjunto maior de atores. Segundo ele, o OP teria por tendência reunir setores de menor renda, que tem demandas imediatas e de curto prazo. Isso acabaria gerando uma ausência de reflexão participativa sobre o desenvolvimento da cidade a longo prazo. Nesse sentido, seria necessário garantir a existência de fóruns amplos de participação para pensar o futuro da cidade.

Pontual e Silva (1999), Genro (1997) e Daniel (1999) convergem para a defesa de novas experiências participativas voltadas a pensar o desenvolvimento urbano, econômico e social da cidade. São exemplos de esforços nesse sentido: o Congresso da Cidade (Belém), a Cidade Constituinte (Porto Alegre) e Projeto Cidade Futuro (Santo André). Já é possível identificar nessas observações a percepção de que o OP é um excelente instrumento, mas insuficiente para a elaboração participativa de políticas de longo prazo. No entanto, essas novas experiências ocorrem de forma pontual e não chegam a se incorporar à retórica do “modo petista de governar”.

Corroborando essa percepção, Trevas (2014) afirma que o final dos anos 1990 é um momento de refinamento do tripé “participação, inversão de prioridades e transparência”. A agenda do desenvolvimento urbano, da integração regional e da sustentabilidade ambiental começa a vigorar com mais força. No entanto, tal agenda não teria se consolidado como parte do “modo petista” municipal porque logo o PT assume o Governo Federal, que absorve toda essa agenda.

A atuação nos governos estaduais também é alvo de reflexão na publicação mais recente sobre o modo petista de governar (TREVAS, MAGALHÃES, BARRETO, 1999). São

duas as experiências de OP realizadas em outros entes da federação: o Distrito Federal (DF), na gestão 1995-1998, e o estado do Rio Grande do Sul, entre 1999 e 2002. No DF, a estrutura de discussão é semelhante à de um município, uma vez que não há subdivisão desse ente federativo. No entanto, no caso da aplicação do Orçamento Participativo em âmbito estadual, temos a dimensão federativa como fator complicador. Como envolver prefeitos de diferentes orientações políticas de modo a colaborar com a elaboração participativa do orçamento, ao mesmo tempo que os próprios prefeitos possuem interesse em incidir sobre o Orçamento Estadual? A experiência do estado do Rio Grande do Sul, implementada pelos mesmos atores que a iniciaram no município de Porto Alegre cerca de 10 anos antes, enfrentou duros embates e ações judiciais, que quase impediram a sua realização. O governo havia sido judicialmente proibido de organizar as assembleias e fornecer espaço ou transporte para sua realização. A saída encontrada pelo Governo foi recorrer aos movimentos sociais que defendiam a realização do OP a fim de garantirem a infraestrutura mínima para a continuidade de realização das assembleias regionais (SOUZA, 1999).

Por fim, Trevas (1999) retoma o debate sobre a relação estabelecida entre o Partido e seus governos, com uma interessante reflexão sobre os efeitos da atuação institucional sobre a organização partidária:

Nesse sentido, a experiência de governo para o Partido dos Trabalhadores tem sido um momento que lhe permite lidar com complexidades para as quais suas formulações mostram-se insuficientes ou se revelam como simplificações politicamente equivocadas. As discussões e embates partidários ocorridos no final dos anos 80 são emblemáticos a esse respeito. Conselhos populares: deliberativos ou consultivos? Política de transportes: estatização ou serviço público regulado?

Os conflitos ocorridos entre governo, movimento popular, sindicato e partido testemunham as simplificações presentes nas experiências iniciais de governo. A quem pertence o mandato do governante? Ao partido? Ao mandatário? Ao partido e ao mandatário? Como lidar com um mandato e um governo portadores dessa dupla vinculação? A política salarial é a principal mediação entre governo e movimento sindical?

Como uma primeira observação geral, pode-se afirmar que a experiência de governo para o PT o obriga a aprofundar o debate sobre suas formulações políticas, seus objetivos e estratégia, sob pena de inviabilizar a consolidação dessa experiência como concretização do projeto partidário ou realizá-la de modo inconsistente. Estabelecer uma efetiva vinculação entre a dinâmica dos governos que conduzimos e as transformações estruturais enunciadas no nosso projeto partidário constitui, certamente, um dos grandes desafios dessa experiência [...].

Aqui nos deparamos com uma segunda observação geral: a experiência de governo passa a ser um dos componentes estruturais de desenvolvimento partidário. Projeta- se sobre a estrutura de poder do partido; incide sobre a dinâmica de grupo dirigente e das direções partidárias; e, sobretudo constitui-se em espaço estratégico das disputas internas.

Essa reflexão está em consonância com a nossa hipótese apresentada na introdução, segundo a qual é a presença do Partido no âmbito institucional que proporciona a elaboração de práticas de políticas públicas e participação que serão posteriormente incorporadas e sistematizadas pelo próprio Partido. E vai além, ao acrescentar que a experiência de governo tem a capacidade de incidir sobre a dinâmica interna de poder do próprio partido.

A síntese dessas reflexões presentes nos livros sobre o modo petista de governar parece apontar para o sentido de um esgotamento do modelo de participação centrado em um único instrumento. A experiência do Rio Grande do Sul também indica que a mudança de escala federativa do Orçamento Participativo gera novos pontos de tensão. Se antes a participação popular tinha o potencial de constranger o Legislativo local, limitando a sua atuação, o mesmo fato não ocorre na relação federativa. A pressão exercida pelos prefeitos para incidir sobre o orçamento estadual, combinada com a pressão do legislativo estadual, conseguiu praticamente inviabilizar a ação do Executivo. A implementação do Orçamento Participativo em âmbito nacional deveria considerar tal complexidade.