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A Aula e o Seminário

No documento O AMOR QUE ACENDE A LUA. Rubem Alves. (páginas 108-115)

Dizem os professores universitários que somente são dignas de reconhecimento acadêmico as idéias que têm pedigree reconhecido, isto é, aquelas que têm uma teoria como mãe e um método como pai. Se essa ascendência não for demonstrada a dita idéia não tem permissão para entrar na festa, qual seja, a tese, pois idéia sem pai e sem mãe, vinda não se sabe de onde, sem documentação, é certamente plebéia bastarda. Esse rigor protocolar retira logo minhas idéias do círculo da dignidade acadêmica, posto que elas sempre me aparecem repentinamente, sem teoria e sem método, sem que eu as tivesse procurado e sem que eu possa explicar a sua origem. E são sempre aparições felizes que me fazem rir. É o caso dessa idéia que me apareceu hoje pela manhã, quando caminhava. Ela pulou na minha frente e me disse:

"Tanto se escreveu sobre o ensinar e o aprender. No entanto, está tudo resumido no duplo sentido da palavra comer." Ditas essas palavras ela sumiu e eu

fiquei decifrando o enigma do duplo sentido da palavra comer e sua relação com a educação.

a primeiro sentido é o óbvio. Refere-se às funções gastronômicas. As funções gastronômicas exigem dois tipos de agentes. Numa ponta estão os cozinheiros. Na outra estão os que comem o que os cozinheiros prepararam. No dia-a-dia é a comidinha caseira, arroz, feijão, picadinho de carne, angu, lingüiça, salada de alface com tomate, jiló, bife, ovo frito, molho de cebola, batata frita, sopa de fubá, sopa de mandioquinha, canja - receitas simples, antigas, que fazem o cotidiano das pessoas. As pessoas se assentam à mesa crianças, jovens, adultos, velhos - e comem. Comem e gostam. Assim é entre nós. Se vivêssemos na Finlândia as comidas seriam outras. E é fácil aprender: basta ficar observando a cozinheira cozinhando. Faz hoje como sempre se fez. Não é novidade. É comida velha, testada, aprovada.

E é isso mesmo que devem fazer os professores. Uma aula é um prato de saberes/sabores que ele serve. E os alunos devem comer. E tem muita comida gostosa. Mas, infelizmente, eles são como cozinheiros do

exército: são obrigados a cozinhar o que o general manda. É o general que determina o menu que, nas escolas, se chama currículo. O currículo é o conjunto de pratos que os alunos devem comer e digerir. Os cozinheiros/professores, se pudessem, fariam outros pratos. Mas é preciso cumprir o programa e eles são obrigados a servir muitos pratos indigestos e sem sabor, com dígrafos, encontros consonantais, fases de mitose, logaritmos, causas de guerras esquecidas ... Esses pratos só são comidos sob ameaça, mas os alunos, logo que têm liberdade para comer a la carte, jamais os pedem e os esquecem para sempre. Mas é verdade também que há professores mágicos que são capazes de fazer suflês saborosos até com jiló. Mas esses casos são raros porque, para se fazer isso, é preciso que o professor tenha dó dos alunos.

Isso é a aula. A aula clássica é assim. Deve ser assim. É preciso que os alunos comam o que todos comem: matemática, geografia, história, física, química, filosofia. a professor prepara a sua aula. Diante dos alunos ele vai traçando os mapas dos mundos que eles não conhecem ainda mas devem conhecer. Se a aula

for boa os alunos irão comer e beber as suas palavras. a mundo ficará luminoso. Já dei muita aula assim e disso me orgulho. Uma aula. bem dada é como a execução de uma sonata. Já vi professores serem aplaudidos pelos alunos ao final da aula.

transa, para que haja gravidezes e idéias novas nasçam, idéias que nem mesmo o professor jamais pensou. Num seminário o professor é também um aprendiz. Na aula o aluno recebe um saber do outro. O objetivo do seminário é diferente: que todos, juntos, por meio dessa orgia espermática, fiquem grávidos e comecem a parir.

O segundo sentido da palavra comer é sexual. Comer é transar. Não sei a origem desse sentido. Sei que, no mundo dos animais, comer e transar freqüentemente se confundem. Aranhas e louva-a-deus (como é mesmo o plural dessa palavra?) fêmeas devoram seus parceiros ao final da cópula. É bem possível que, na língua de tais bichos, se diga "vou comer o meu marido atual" (só existe o marido atual, porque os outros já foram devorados) como expressão sinônima de transar.

Aula: um sabe e os outros não sabem. Seminário: cada um conhece um pouquinho e desconhece muito. O professor não dá respostas. Ele não sabe as respostas. Ele é um dos que procuram. Qualquer participante pode definir a pergunta inicial, provocação de pensamento. O que dá vida a um seminário é o não saber, a procura, os enigmas. Na aula a inteligência é um estômago que rumina e digere. Também isso é preciso. Mas no seminário a inteligência é útero. As sementes são jogadas lá dentro para que ela fique grávida _ algo nunca pensado deve crescer e ser parido. O objetivo não é chegar a resultados. É desenvolver a capacidade de pensar e descobrir coisas novas.

O comer gastronômico dá prazer e engorda as pessoas. Quem engorda fica igual, só que maior, mais pesado. Vai assimilando aquilo que os outros prepararam. Quem . sabe o que ouviu nas aulas, sabe o pensamento dos outros, só sabe aquilo que os outros sabem. O comer sexual é diferente. Transar dá prazer e engravida. Gravidez é uma transformação qualitativa. O sêmen é ejaculado. Milhares de sementes de vida são

lançadas. Onde ele cair, algo novo, que nunca aconteceu antes, diferente, vai germinar e nascer. Comida que não estava prevista em nenhum menu.

Esse, eu penso, é o objetivo supremo da educação. É muito mais importante que as atividades de pesquisa. O objetivo da pesquisa é produzir conhecimento novo. Mas um seminário tem por objetivo desenvolver a capacidade de pensar, que é de onde o conhecimento novo pode surgir.

A palavra "seminário" vem de sêmen. Seminário não é aula. Seminário não é transmissão de saberes de outros. É profundamente lamentável e equivocado que os professores de nossas universidades sejam avaliados pela sua produtividade medida em número de artigos publicados em revistas internacionais. Ensinar a pensar é mais importante que pesquisar. É do desenvolvimento da capacidade de pensar que se forma um povo. Povo que não sabe pensar fica à mercê das mentiras.

Aulas e seminários: os dois jeitos. A aula acontece entre desiguais: o professor, que já foi e conhece, e os alunos, que não foram e ainda não conhecem.

Dependendo da aula, pode até ser que eles se decidam a ir. O seminário acontece entre iguais: todos já foram, têm um saber incompleto, e desse saber surgem perguntas. O seminário é como juntar as peças de um quebra-cabeça: cada um tem um pedacinho. Qualquer um do grupo pode fazer a pergunta inicial. O professor funciona apenas como juiz da partida.

Mas ai, pobres seminários, pobres alunos! Alguns professores, combinando preguiça e malandragem, descobriram um jeito de não dar as aulas responsáveis que deveriam dar. Dizem que dão seminários: o que eles fazem pertence a um estágio superior ao das aulas! Valendo-se do fato de que, num seminário, o professor não dá a aula, distribuem textos pelos alunos, e eles, os alunos, que ainda não foram, que nada sabem sobre o assunto, ficam encarregados de "dar o seminário" (que absurdo!). Já vi alunos desesperados, lendo textos complicados que não entendem - o professor não deu a aula, explicando - e com a obrigação de ensinar aos outros aquilo que eles mesmos não sabem.

Há muitas formas de corrupção. Corrupção política, corrupção financeira, corrupção religiosa: o

rosário é longo. Sugiro que se catalogue mais esta: a dos professores que, para não ter o trabalho de dar as aulas que deviam, montam as farsas dos seminários. Sugiro que os alunos denunciem essa malandragem!

No documento O AMOR QUE ACENDE A LUA. Rubem Alves. (páginas 108-115)