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Duas estórias de Natal

No documento O AMOR QUE ACENDE A LUA. Rubem Alves. (páginas 193-199)

Por causa da palavra "estória" já tive várias querelas com revisores. Eles, instruídos pelos gramáticos, não aceitam a palavra "estória" e corrigem- na para "história". Ignoram que os gramáticos. sabem tanto sobre a língua quanto os anatomistas sabem sobre a arte de fazer amor. Não conheço gramática que tenha sido escritor. Certamente não leram Guimarães Rosa, que declara que "a estória não quer transformar-

se em história". "História" é aquilo que aconteceu uma vez e não acontece nunca mais. "Estória" é aquilo que não aconteceu nunca porque acontece sempre. A "história" pertence ao tempo; é ciência. A "estória" pertence à eternidade; é magia. Quem sabe a "história" fica do mesmo jeito. Quem ouve uma "estória" pode ficar outro.

o Natal é tempo de contar estórias. É tempo de ficar outro. Vou contar duas estórias: uma velha e outra nova.

Primeira estória: "...e saíram eles, pelas solidões dos desertos, montados em seus camelos, atraídos pela luz de uma estrela..." Dizem que eram reis. Não eram. Um rei que abandonasse o reino e saísse a andar pelos caminhos do mundo seguindo a luz de uma estrela seria deposto pelos generais: havia enlouquecido. Não, não eram reis. As Sagradas Escrituras dizem que eram magos. O dicionário Webster me informou que "mago" designava, originalmente, alguém "pertencente a uma casta de pessoas educadas e eruditas na antiga Pérsia". Alguém que vivia para estudar, para saber.

Próximo a um filósofo. Os magos dessa estória consultavam os astros no céu para compreender o caminho dos homens na terra. Eram astrólogos. Para a astrologia os céus são um espelho onde os mistérios da terra aparecem resolvidos.

Pois esses magos, examinando os céus, descobriram uma estrela brilhante como nenhuma outra, Ficaram fascinados com seu brilho. E essa estrela lhes contou que ela, desde tempos imemoriais, estivera procurando a mesma coisa que eles procuravam. Seus raios haviam varrido o universo desde o seu início até o seu fim, na busca daquilo que dá sentido ao existir. Inutilmente. Mas, de repente, quando seus raios acidentalmente incidiram sobre esse planeta insignificante chamado Terra, encontraram um brilho que não haviam encontrado em lugar algum. Ela compreendeu, então, que aquilo que ela havia procurado nos céus não se encontrava nos céus, entre as estrelas. Encontrava-se na Terra. A estrela disse então aos magos que deixassem de olhar para ela. Que olhassem antes para o lugar, na Terra, que sua luz iluminava.

Foi assim que a sua longa jornada começou, seguindo o caminho que a luz da estrela indicava. E ao final de sua longa peregrinação chegaram ao lugar procurado. Banhado pela suave luz azul da estrela, em meio a vacas, jumentos e palha, encontrava-se um nenezinho. Eles, então, foram iluminados. Não pela luz da estrela, Mas pela luz da criança. Perceberam que sua busca havia chegado ao fim. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca - as crianças sabem. Ser sábio é ser criança. O universo é um berço onde dorme uma criança. E desde aquele dia eles deixaram de olhar para as estrelas e passaram a olhar para as crianças.

Segunda estória: “...e saíram essas pessoas para os céus, em suas naves espaciais, atraídos pela música de um astro..."

Sim, não fora a luz de Júpiter que os atraíra. Fora a música estranha que vinha de lá - como um canto de sereias ao qual não se pode resistir. E eles que até então haviam-se pensado como viajantes solitários, num universo desértico!

2001, Uma odisséia no espaço - esse é o nome do filme. Está nas locadoras. "Odisséia" é a estória de Odisseu, herói da guerra de Tróia, navegando pelos mares, para voltar ao lar. "Odisséia no espaço": o lar ainda não foi encontrado. Restam os espaços sem fim. E a viagem continua, enquanto o lar não se encontra. Três quartos do filme são aventuras, em meio aos assombros e banalidades do mundo tecnológico. Mas a viagem, após milhões de quilômetros, vai chegando ao fim. Júpiter, o destino, aproxima-se. Repentinamente, um corte. A tela se transforma num torvelinho de cores e a nave mergulha num mundo psicodélico de imagens fantásticas, confusas, sem sentido, nauseantes. De repente, magicamente, o astronauta chega ao seu destino. Ele se descobre dentro de uma casa. A atmosfera é esverdeada. Cessa a música. O silêncio é absoluto. Apenas a respiração do astronauta. A viseira cobre a tela inteira. Eu, espectador, vejo a cena com os olhos do astronauta. É uma sala de refeições comum. Ao fundo um homem assentado toma o seu café da manhã. Ouve-se o barulho dos talheres batendo na louça. Ao lado da mesa, um copo de cristal, cheio de

água. O homem, sentindo-se observado, volta-se vagarosamente e olha com olhar tranqüilo para o rosto do astronauta, para o meu rosto. O seu rosto é familiar. É o rosto do astronauta! Só que muito mais velho. Então foi isso - viajou milhões de quilômetros para chegar à sua própria casa? Compreendeu, então, a frase de Eliot: "Ao fim de nossas longas explorações chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez".

Um movimento brusco - o braço esbarra no copo, o copo cai e se parte em mil pedaços "... antes que se quebre a taça de ouro...": ninguém disse, não está escrito em lugar algum. Mas eu me lembrei: está escrito no Livro Sagrado. É a morte. De novo um corte. A cena agora é um quarto. O mesmo homem, agora velho, velhíssimo, um rosto coberto de rugas: está morrendo, agoniza numa cama, olhos muito abertos, fixos no teto do quarto. Mas o teto se abre e aparece então, para seus olhos morrentes, um maravilhoso céu estrelado, milhões de estrelas e galáxias brilhantes. E, entre elas, flutuante, um feto, olhos enormes, maravilhados, olhos que só as crianças têm. Ninguém disse, não está escrito

em lugar algum. Mas eu me lembrei - está escrito no livro sagrado: "É necessário nascer de novo. Em verdade vos digo que se não voltardes a ser crianças jamais vereis o sentido da vida."

Duas estórias. Para serem contadas no Natal. Uma antiga, outra nova. Tão diferentes e tão iguais. As duas dizem a mesma coisa.

Em nome do Avô, do Neto e da

No documento O AMOR QUE ACENDE A LUA. Rubem Alves. (páginas 193-199)