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A Rosa não mais Floresce

No documento O AMOR QUE ACENDE A LUA. Rubem Alves. (páginas 129-138)

Faz uns meses, viajei pela Europa por duas semanas.

Visitei os lugares que os turistas visitam, vi as obras de arte que os turistas vêem. Coisas lindas, comoventes. Mas não ficaram. Foram logo esquecidas. O que ficou foi um livro que encontrei numa livraria. Comprei. Pinturas e desenhos de um artista que eu não conhecia, Karl Larsson, sueco, nascido em 1853. O filósofo alemão Ludwig Feuerbach diz que a nossa

imagem aparece espelhada naquilo que vemos. Ao ver as telas de Larsson descobri quem sou. Reconheço o gênio de pintores modernos como Picasso, Dalí, Miró. Inventaram novas linguagens plásticas. Gênios. Mas eu nunca me vejo refletido nelas. Suas obras me causam assombro. Mas não as amo. Não quereria viver dentro delas. As telas de Larsson, ao contrário, me dariam felicidade se eu estivesse dentro delas. São cenas de felicidade infantil: uma casa com fumaça saindo da chaminé, fogão de ferro com gato e panelas, um quintal com galinhas deitadas no capim, um cachorro diante da porta, crianças nuas nadando, menina com um gato, menina debaixo da mesa, menina pescando, a família colhendo maçãs ... Os críticos de arte, ao examinar uma tela, trazem consigo uma parafernália de informações sobre estilos, influências, técnicas, linguagens. Eles são seres de "consciência crÍtica". Eu, ao contrário, esqueço-me de tudo o que sei ao olhar as telas de Larsson. Viro criança novamente consciência totalmente ingênua. Nada tenho a ver com os críticos de arte e especialistas em estética que estão em busca das novas linguagens da pintura. Eu gostaria mesmo é de

viver dentro das cenas simples que Larsson pinta com precisão e olhar amoroso. Sou um romântico.

"No princípio era uma cena de felicidade". A alma, no seu lugar mais profundo, é uma cena de felicidade. Viver é sair por aí, ou procurando a cena feliz ou tentando construir a cena feliz. O amor por um homem ou por uma mulher acontece quando, repentinamente, ao ver um rosto, tem-se a impressão de havê-Io visto lá, dentro da cena da alma:

Quando te vi amei-te já muito antes, Tornei a achar-te quando te encontrei. Nasci para ti antes de haver o mundo.

(Fernando Pessoa)

Amamos uma pessoa porque a sua imagem se insere na cena de felicidade que havia na memória "antes de haver o mundo". A paixão acontece quando o rosto real à minha frente coincide, na minha fantasia, com a imagem perdida que busco (para completar a cena).

Os dois, à mesa do restaurante. A comida e a bebida são desculpas. Os dois estão em busca da imagem perdida. Os rostos são os mesmos. Eles se reconhecem. Os retratos o comprovam. Mas as imagens amadas fugiram dos rostos conhecidos, os mesmos rostos.

Os dois, silenciosamente (falta-lhes coragem para falar), fazem um para o outro a pergunta que Cecília Meireles fazia à sua avó morta: "Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto?" Sim, para onde foi a imagem que me fez feliz, a imagem que morava nesse rosto? Agora, por mais que examinem, não conseguem encontrar sinais da sua presença. O rosto está opaco. Nesse mesmo rosto, agora, mora uma outra imagem, me vejo refletido nelas. Suas obras me causam assombro. Mas não as amo. Não quereria viver dentro delas. As telas de Larsson, ao contrário, me dariam felicidade se eu estivesse dentro delas. São cenas de felicidade infantil: uma casa com fumaça saindo da chaminé, fogão de ferro com gato e panelas, um quintal com galinhas deitadas no capim, um cachorro diante da porta, crianças nuas nadando,

menina com um gato, menina debaixo da mesa, menina pescando, a família colhendo maçãs. Os críticos de arte, ao examinar uma tela, trazem consigo uma parafernália de informações sobre estilos, influências, técnicas, linguagens. Eles são seres de "consciência crítica". Eu, ao contrário, esqueço-me de tudo o que sei ao olhar as telas de Larsson. Viro criança novamente consciência totalmente ingênua. Nada tenho a ver com os crÍticos de arte e especialistas em estética que estão em busca das novas linguagens da pintura. Eu gostaria mesmo é de viver dentro das cenas simples que Larsson pinta com precisão e olhar amoroso. Sou um romântico.

"No princípio era uma cena de felicidade". A alma, no seu lugar mais profundo, é uma cena de felicidade. Viver é sair por aí, ou procurando a cena feliz ou tentando construir a cena feliz. O amor por um homem ou por uma mulher acontece quando, repentinamente, ao ver um rosto, tem-se a impressão de havê-lo visto lá, dentro da cena da alma:

Quando te vi amei-te já muito antes, Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci para ti antes de haver o mundo. (Fernando Pessoa)

Amamos uma pessoa porque a sua imagem se insere na cena de felicidade que havia na memória "antes de haver o mundo". A paixão acontece quando o rosto real à minha frente coincide, na minha fantasia, com a imagem perdida que busco (para completar a cena).

Os dois, à mesa do restaurante. A comida e a bebida são desculpas. Os dois estão em busca da imagem perdida. Os rostos são os mesmos. Eles se reconhecem. Os retratos o comprovam. Mas as imagens amadas fugiram dos rostos conhecidos, os mesmos rostos.

Os dois, silenciosamente (falta-lhes coragem para falar), fazem um para o outro a pergunta que Cecília Meireles fazia à sua avó morta: "Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto?" Sim, para onde foi a imagem que me fez feliz, a imagem que morava nesse rosto? Agora, por mais que examinem, não conseguem encontrar sinais da sua presença. O

rosto está opaco. Nesse mesmo rosto, agora, mora uma outra imagem, estranha, feita com materiais desumanos: pedra, gelo, fogo, deboche, alfinetes, areia. Contemplam o rosto conhecido e o desconhecem. Não encontram nele a imagem amada. O rosto dói: é o lugar da ausência da imagem que compunha a cena de felicidade que existia na alma "antes de haver o mundo". A cena de felicidade está rasgada. O Paraíso foi perdido.

Era o casamento. Igreja cheia. O padre falava aos noivos e aos convidados sobre a felicidade. Dizia ele, eloqüente cantante (sem saber que a eloqüência caiu de moda, há muito): "Desafio qualquer pessoa deste auditório a me demonstrar que, se duas pessoas tiverem o desejo sincero de felicidade, elas não conseguirão ser felizes." Tive de me conter para não aceitar o desafio. Iria estragar a festa. O padre recitava psicologia vulgar: querer é poder! Não havia prestado atenção nem em Freud nem em São Paulo apóstolo, que dizia o contrário. "Querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo. Não faço o bem que quero e

sim o mal que não quero" (Romanos 7:18-19). Sim, eu quero ser feliz mas não consigo. Estrago tudo!

O padre, educado na filosofia, acreditava que a vida, inclusive o amor, se faz com a razão. De fato, muitas coisas se fazem com a razão e sem ela não é possível viver. O casamento - duas pessoas vivendo o cotidiano - só sobrevive com o auxílio da razão. O cuidado com a casa, o cuidado com as crianças, o supermercado, as roupas, a comida, o trabalho, a diversão: sem a ordem da razão o cotidiano vira atrito e conflito. Se o casamento fosse uma empresa a razão bastaria. Mas empresa bem-sucedida não dá a felicidade que o padre prometia.

O padre não sabia: a razão nada sabe sobre felicidade.

A razão é como aqueles gênios da garrafa. Eles não têm vontade própria; não têm imaginação. Só têm poder. Obedecem às ordens do amo. Pois a razão é assim: ela só sabe obedecer às ordens do coração. O coração, ele mesmo, desconhece a razão. Não há razões para que eu deseje morar nas cenas da pintura de Larsson. Outros não quererão. "A rosa não tem

porquês. Ela floresce porque floresce." Assim disse o místico Ângelus Silésius. O amor é como a rosa.

Estão os dois, à mesa do restaurante. Olham-se. Seus olhos não são os olhos ingênuos que contemplam as cenas de felicidade das telas de Larsson. A cena, refletida nos olhos do outro, não é uma cena de felicidade. Seus olhos procuram a felicidade que se perdeu. Mas como se perdeu? O rosto não é o mesmo, aquele mesmo rosto que, jurei para mim mesmo, haveria de amar para sempre? Olham um para o outro (tantas vezes fizeram isso!) - e fica não dita a pergunta que nenhum tem coragem de fazer: "Que é que fez com que a rosa que florescia deixasse de florescer? Que é que fez com que a rosa que s6 florescia rosas, agora floresça espinhos?"

O jantar termina. E cada um vai para a sua solidão. Lá, longe do outro, é finalmente possível amá- Ia. Na distância o outro não perturba a sua bela imagem. Ela está no retrato, como sempre esteve, imperturbada, sempre a mesma, congelada eternamente. E cada um sorri.

No documento O AMOR QUE ACENDE A LUA. Rubem Alves. (páginas 129-138)