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2.3 ASPECTOS NEGATIVOS E LIMITADORES DO ALCANCE DAS TICS

2.3.2 Ausência de cultura participativa e cidadã

Dentre os fatores que interferem no impacto das TICs nos processos democráticos está o nível de cultura e de cidadania da sociedade. Nesse sentido, Barbosa (2012) explica que a noção de cidadania do brasileiro deve ser melhor trabalhada, pois a realidade do país não é propícia à participação ativa. Não existe uma relação entre cidadão e governo, nem uma prática de participação pública. Os momentos de maior interação são esporádicos, limitados e superficiais, reservados, por exemplo, ao momento do voto. Mesmo assim, o voto é feito de maneira desinteressada, pois a grande maioria dos eleitores não procuram saber quem são seus candidatos.

O mesmo é afirmado por Santos (2012), que destaca a falta de costume do cidadão brasileiro de buscar informações públicas, de questionar e fazer exigências conforme seus interesses. Com isso, as possibilidades de interação e participação

disponibilizadas pelo governo são limitadas, pois são concebidas apenas com a visão do próprio governo, sem moldar-se à lógica e às exigências do usuário. Há um verdadeiro descompasso entre a oferta e a demanda de serviços.

Destacando o aspecto da exclusão social, Risério (2009) afirma que a internet nunca conseguirá atingir suas potencialidades de inclusão e democratização sem que antes o país supere suas diferenças de classe, que gravitam em torno do problema educacional no Brasil. Segundo o autor, as vantagens das TICs são irrelevantes se os cidadãos não forem capazes de desenvolverem uma noção básica de civismo e nação.

A falta de educação adequada também é abordada por Nogueira (1998), que explica porque o cidadão comum tem mais dificuldade para participar. Segundo o autor, a cultura que se estabeleceu em torno do conceito de política a tornou um assunto reservado aos técnicos e profissionais, e não ao cidadão comum. Dessa forma, a participação cidadã ficaria resumida a momentos pontuais e passageiros, como é o caso do momento eleitoral. Tendo em vista que as decisões se dão em torno de aspectos altamente técnicos e complexos, a ação política fica fora do alcance da sociedade, que perde seu protagonismo.

A ausência de protagonismo, principalmente no Brasil, também é explicada por Vianna (1999), ao apontar que a formação e evolução histórica da sociedade brasileira impediu e continua prejudicando a existência de uma sociedade ativa e protagonista da vida pública. Desde os princípios da colonização, o Brasil herdou os traços e características do patrimonialismo do Estado Português, extremamente autônomo em relação à sociedade civil e que utilizava a administração pública como um patrimônio a ser explorado para atender interesses privados, sem limites entre as esferas pública e privada. Com isso, tem-se os cidadãos sem direitos ou iniciativa perante o Estado controlador. Mesmo com algumas mudanças advindas do progresso, a evolução verificada não consegue romper com esse passado patrimonialista, e a accountability, transparência e participação não têm espaço para se formar e consolidar.

Voltando a análise do contexto brasileiro para épocas mais recentes, Pinho (2008) destaca que, com a redemocratização do Brasil, após o Estado autoritário que vigorou entre 1964 e 1985, surgiram algumas experiências de participação popular, principalmente nos munícipios, como ocorreu com o orçamento participativo. Todavia, após trinta anos de democracia, a estrutura governamental permanece com um

caráter autoritário e forte, impedido a construção de uma cultura de participação popular, em que pese a existência de alguns isolados casos bem-sucedidos.

Sobre o processo de redemocratização, Nogueira (1998) comenta o contexto histórico do Brasil, bem de como outros países da América Latina que passaram por longas ditaduras militares que minaram a prática da cidadania. O autor explica que a volta à democracia se dá de forma lenta e complexa, o que intensifica e prolonga as desigualdades, e reduz a prática da cidadania. Ainda que se notem algumas mudanças, elas provocam intensas reações de resistência por parte das elites e classes dominantes, exercendo grande pressão de cima para baixo para evitar manifestações dos cidadãos e perpetuar a insuficiência de democratização. Isso decorre da inexistência de iniciativas populares na sociedade brasileira, que, quando muda, muda por meio de um processo de revolução passiva, no qual o equilíbrio é restaurado por meio da incorporação de novos aspectos e manutenção da maioria dos aspectos antigos. O efeito prático desse contexto é uma democracia extremamente minimalista, que se limita aos momentos eleitorais.

Assim, o autoritarismo não é um elemento comum apenas ao âmbito público. Nesse sentido, Dagnino (2002) afirma que o autoritarismo e conservadorismo presentes no governo também se reproduzem na própria sociedade, impedindo o atendimento amplo ao interesse coletivo em detrimento de interesses específicos. Segundo a autora, a sociedade não é sempre a vítima desse processo.

Sobre os reflexos desse contexto cultural nos processos de governo eletrônico, Prado, Ribeiro e Diniz (2012) afirmam que as TICs, utilizadas de maneira isolada, não implicam no aumento de transparência. Para isto, é necessária a criação de uma cultura na qual a sociedade aceite e exerça o seu papel de controlar e estudar o Poder Público, interessando-se em defender e exigir a implementação do acesso à informação.

Sob o mesmo prisma da transparência, Pinho (2008) estudou dez portais governamentais das principais capitais brasileiras com o objetivo de verificar como as informações são disponibilizadas para os cidadãos, e que facilidades lhes são oferecidas. Trata-se de verificar como o governo eletrônico e as TICs podem aprofundar a democracia, baseando-se também nos conceitos de accountability e participação popular. Como resultado, concluíram que não há grandes incrementos na democracia, sendo alguns dos motivos o conservadorismo e o autoritarismo

brasileiros.

Mesmo com o advento da Lei de Acesso à Informação, normativo criado para efetivar e concretizar o direito constitucional à informação, o cenário mostra-se inalterado. Raupp e Pinho (2015, p. 30) analisaram se vigência da lei alterou de alguma forma as características dos portais eletrônicos de prestação de contas dos poderes legislativos de municípios de Santa Catarina. Concluíram que os portais apresentam pouca ou nenhuma capacidade de prestar contas. Assim, os autores acreditam que a utilização desses portais não se enquadra na realidade social brasileira, já que o modelo foi "importado de realidades mais desenvolvidas".

Raupp e Pinho (2015, p. 34) discorrem sobre o conceito de formalismo, para explicar essa característica da sociedade brasileira. Com base em referencial teórico amplo, explicam que sociedades de países em desenvolvimento dependem de países desenvolvidos para implementar suas estruturas sociais, políticas e econômicas. Essas estruturas acabam sendo copiadas, importadas de sociedades mais desenvolvidas, mas elas não se adaptam à realidade heterogênea das sociedades em desenvolvimento, e acabam criando o formalismo. Assim, surge um alto grau de discrepância entre os valores prescritos e os praticados na realidade, uma aceitação das normas criadas, mas um desvio na sua prática. Com isso, surgem leis que traçam comportamentos ideais, mas que acabam sendo desrespeitados cotidianamente, sem que haja punição para os infratores. Desse contexto é que surge o "jeitinho", uma característica sociocultural brasileira. Consequentemente, instaura-se um descrédito generalizado em torno da validade das leis, e uma percepção de que elas sempre serão desrespeitadas.

Com isso, Raupp e Pinho (2015, p. 43) constatam que "parece mesmo que os portais existem apenas para constar, para imitar um comportamento de países mais desenvolvidos". Tal conclusão mostra os reflexos do formalismo, de adoção de comportamentos de sociedades mais desenvolvidas, mas que estão "longe de efetivamente funcionar", pois não conseguem se inserir nas práticas cotidianas da sociedade brasileira.

Esse contexto cultural também acaba frustrando as potencialidades que poderiam ser atingidas com a utilização das mídias sociais. Farranha (2016) discute se as mídias sociais podem promover a construção de uma vontade geral, já que essas ferramentas ampliam a interação sobre temas que interessam de fato à

sociedade. Com isso, é possível que haja o fortalecimento de uma cultura cívica, que a longo prazo pode promover discussões importantes sobre questões que envolvem a sociedade.

Ademais, as redes sociais também podem contribuir para democratizar as relações entre políticos e cidadãos. Todavia, a forma tradicional de realizar a política no Brasil, com aspectos patrimonialistas, personalistas e clientelistas, aponta para a possibilidade de os novos ambientes virtuais apenas replicarem as práticas que já são cotidianas nos ambientes tradicionais (BRAGA et al., 2008).

Desse modo, faz-se necessário estimular as ações do governo para implementar e fomentar uma estrutura de participação social, por meio de ferramentas digitais. No entanto, uma preocupação levantada por Pinho (2008) é sobre qual a real contribuição das TICs para a participação popular no Brasil, participação esta que ainda não se afirmou e consolidou nem mesmo através dos meios clássicos e convencionais de participação.

Pinho (2008) questiona qual o benefício das TICs para formar e ampliar uma cultura cívica e participativa, pois a sociedade brasileira não é tão apática e passiva (PINHO et al., 2016). Nesse sentido, os autores afirmam que o Brasil é palco de inúmeros movimentos, protestos, e até rebeliões, que ocorrem de forma continuada. Todavia, não são percebidas pela sociedade e pelas grandes mídias pois acontecem nas regiões periféricas das cidades. Na verdade, o povo, notadamente das áreas periféricas, é ativo com uma frequência que não é tão percebida.

Nesse sentido, os grandes movimentos ocorrem com certa periodicidade, intermediados por momentos de calmaria. Nos últimos anos, por exemplo, os grandes protestos ocorreram praticamente a cada década. Mesmo assim, apesar da importância e do ânimo que envolve cada episódio de articulação popular não é capaz de mudar o quadro político de forma ampla e rápida.

Posto isso, constata-se que a internet e os processos de governo eletrônico não são determinantes para resolver de forma automática os problemas da sociedade. É a observação de Levy (1999), que, assim como Pinho (2012) e Pinho e outros (2012), alerta para a necessidade de não criar expectativas elevadas quanto à possibilidade de as TICs resolverem eliminar os problemas da humanidade. Para o autor, a tecnologia é apenas a "técnica", que, para ser efetiva, depende de uma combinação

complexa de elementos sociais, políticos, econômicos e estruturais da sociedade.