• Nenhum resultado encontrado

Autismo, transições conceituais e implicações nos arranjos organizativos

7 RESULTADOS E DISCUSSÃO

7.4 Autismo, transições conceituais e implicações nos arranjos organizativos

A leitura dos documentos ministeriais remete-nos a discussão acerca da historicidade da saúde mental no Brasil, bem como ao processo de Reforma Psiquiátrica61.

Apesar dos avanços da letra no tangente aos direitos dos usuários dos serviços ligados à RAPS, podemos localizar pontos de divergências, convergências de saberes e técnicas priorizadas em cada ponto dessa rede. Para isso, vamos nos situar na primeira contradição constatada no referente ao autismo, as transições entre transtorno do desenvolvimento, transtorno mental/espectral e deficiência.

Essas transições de perspectivas e posicionamentos62 são evidentes entre os

documentos Linha de Cuidado e Diretrizes de Atenção, pois o primeiro traz uma discussão ao mesmo tempo ampla e problemática sobre os TEA, enquanto o segundo reduz o quadro a uma deficiência intelectual, passível de tratamento e reabilitação na Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência.

O documento “Diretrizes de Atenção à reabilitação da pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (TEA)” possui 85 páginas, está dividido em doze capítulos e resulta de uma pesquisa bibliográfica que utilizou material nacional e internacional dos últimos 70 anos a respeito da problemática. Desta forma, contou com a colaboração de “[...] profissionais, pesquisadores e especialistas com experiências reconhecidas em diversas profissões da área da Saúde e pertencentes a sociedades científicas e profissionais” (BRASIL, 2014a).

O objetivo desta diretriz é oferecer orientações às equipes multiprofissionais dos pontos de atenção da Rede SUS para o cuidado à saúde da pessoa com transtornos do espectro do autismo (TEA) e de sua família nos diferentes pontos de atenção da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2014a, p. 07).

As diretrizes foram elaboradas, com destaque especial, por profissionais da Fonoaudiologia63, Neurologia e representantes da Coordenação Geral de Saúde da Pessoa

com Deficiência. Dessa forma, podemos perceber uma filiação direta do documento ao campo da deficiência e numa perspectiva voltada à reabilitação. Nesse sentido, destacamos de qual

61De acordo com Amarante (1995) apud Bezerra (2013) a Reforma Psiquiátrica Brasileira data desde a década de 70, onde a Psiquiatria Clássica e o modelo de manicômio passam a ser questionados por uma vertente de pensamento, cujo expoente era o psiquiatra italiano Franco Basaglia, a partir de então uma série de repercussões e serviços substitutivos começaram a ser criados a partir da década de 90, dentre eles o principal é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

62 Ora pessoa com Transtorno Mental, ora pessoa com deficiência intelectual.

63 A diretriz contou com a participação maioritária de profissionais da Fonoaudiologia, 05 especificamente. Ressaltamos que as funções de coordenação e organização desse documento foram exercidas por esses profissionais.

lugar o documento que ora analisamos nos fala, salientando sua filiação teórica e seu posicionamento frente a problemática do autismo, pois essas são questões imprescindíveis na Análise de Discurso francesa (ORLANDI, 2001).

Além dessas características citadas acima, as diretrizes possuem os seguintes eixos norteadores: Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência de 200764,

Decreto nº 6.949/200965, Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência66 e por fim, Lei nº

12.764/201267.

Iniciamos com a descrição do capítulo dois68 que apresenta a metodologia

utilizada para elaboração do relatório, seguidos do capítulo introdutório que apresenta o histórico em torno do autismo desde a concepção inicial de Leo Kanner até a atual classificação denominada “TEA”. Dessa forma, podemos perceber que as diretrizes utilizam como marco referencial a suposta descoberta de Kanner dos distúrbios autísticos de contato afetivo em 1943. Nessa discussão, é interessante sublinhar que a versão preliminar das diretrizes constava que o autismo era considerado uma “síndrome neuropsiquiátrica” (p.14), na versão definitiva, ao contrário, temos uma “amenização” desse discurso determinista.

Embora uma etiologia específica não tenha sido identificada, estudos sugerem a presença de alguns fatores genéticos e neurobiológicos que podem estar associados ao autismo, tais como anomalia anatômica ou fisiológica do sistema nervoso central (SNC) e problemas constitucionais inatos predeterminados biologicamente (AKSHOMOFF, 2006 apud BRASIL, 2014ª, p. 13).

Mesmo tendo sido descartado o termo “síndrome neuropsiquiátrica”, ainda assim o documento apresenta predominantemente um discurso voltado à síndrome. Justificamos assim, a ênfase dada ao trabalho de Sir Michael Rutter em 1978 e sua “[...] fundamental importância para o desenvolvimento do conhecimento na área”. Rutter foi o responsável pela caracterização da “síndrome” em relação ao nível de desenvolvimento “neuropsicomotor e cronológico” (BRASIL, 2014a, p. 13). Nesse sentido, podemos evidenciar e constatar quais as

64A convenção foi realizada em Nova Iorque no ano de 2007 e teve como ponto central a discussão em torno da acessibilidade. Nesse sentido, amplia-se a noção de deficiência, indo além da perspectiva de um indivíduo

portador de uma anormalidade (BRASIL, 2014a).

65 O referido decreto resultou numa mudança conceitual em relação ao conceito de deficiência, dessa forma, a pessoa com deficiência é aquela que “[...] tem impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2009).

66A Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência é parte do programa Viver sem Limite: Plano Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência lançado em 2011. A Rede de Cuidados, vinculada ao SUS, estabelece diretrizes para o cuidado às pessoas com deficiências, sejam elas temporárias ou permanentes, regressivas ou estáveis, intermitentes ou contínuas (BRASIL, 2014a).

67Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (BRASIL, 2012c).

filiações teóricas e posicionamento das diretrizes em relação ao autismo, que em seu conteúdo e textualidade é uma síndrome.

Em “Importância da detecção de sinais iniciais de problemas de desenvolvimento”, capítulo seguinte, o documento nos traz a importância da detecção precoce de problemas no desenvolvimento. Justificando o fato de que “A maior plasticidade das estruturas anátomo-fisiológicas do cérebro nos primeiros anos de vida e o papel fundamental das conexões neuronais para a constituição psicossocial, tornam este período um momento sensível e privilegiado para intervenções” (BRASIL, 2014a, p. 16).

Para ilustrar, o documento traz os indicadores de desenvolvimento e sinais de alerta para TEA nas esferas da interação social, linguagem, brincadeiras e alimentação. São apresentadas, essas esferas, nas seguintes faixas etárias: de zero a 06 meses; 06 a 12 meses; 12 a 18 meses; 18 a 24 meses e 24 a 36 meses69 (BRASIL, 2014a).

No capítulo 5 são apresentados os “Indicadores comportamentais de TEA”, salientando os prejuízos motores, sensoriais, rotinas, fala e aspecto emocional. Entretanto, o documento aponta que o aspecto comportamental não é um bom preditor para TEA, pois “[...] várias crianças com TEA não os apresentam e, quando os têm, costumam demonstrá-los mais tardiamente” (BRASIL, 2014a, p. 33).

O capítulo 6 aponta os principais instrumentos diagnósticos para rastreamento/triagem de indicadores de desenvolvimento infantil e dos TEA. Dessa forma, salienta que os instrumentos são importantes para identificação de problemas específicos, pois o diagnóstico de TEA ainda “[...] permanece essencialmente clínico e é feito a partir de observações [...]” (BRASIL, 2014a, p. 36).

Em “Avaliação diagnóstica e classificações” o documento traz a importância do diagnóstico nosológico, além de ressaltar o papel da equipe interdisciplinar frente a esse processo. Nesse sentido, a diretriz aponta que as equipes devem contar com os seguintes profissionais: psiquiatra e/ou neurologista e/ou pediatra, psicólogo e fonoaudiólogo (BRASIL, 2014a).

A cada profissional, corresponde uma série de atribuições elencadas abaixo, conforme o que nos aponta a diretriz:

A avaliação médica, independentemente da especialidade, inclui anamnese e exame físico e, se necessário, exames laboratoriais e de imagem. Quando existirem, por exemplo, alterações emocionais e comportamentais muito importantes, alterações de sono, apetite, consciência, marcha, excesso de agressividade e agitação psicomotora

69 Uma parte dos indicadores do desenvolvimento e sinais de alerta presentes nas diretrizes encontram-se no Anexo B.

que necessitem de avaliação mais precisa e de intervenções medicamentosas, geralmente é recomendada a atuação dos especialistas das áreas de neurologia e/ou psiquiatra (BRASIL, 2014a, p. 39-40).

Quanto aos profissionais da Fonoaudiologia e Psicologia, ao primeiro corresponde a avaliação dos aspectos linguísticos, traçando dessa forma uma distinção entre as peculiaridades dos quadros de TEA dos demais distúrbios de linguagem e/ou deficiências auditivas. Em relação ao profissional da Psicologia, o documento aponta que ao mesmo compete as avaliações cognitivas e neuropsicológicas.

Já a avaliação psicológica compreende entrevistas de anamnese com os familiares e a avaliação da interação social por meio de brincadeiras (no caso de crianças) e de entrevistas (no caso de adolescentes e adultos que apresentam linguagem oral). Envolve ainda a avaliação nas áreas cognitiva e neuropsicológica (quesito importante tanto para o diagnóstico diferencial quanto para o PTS) e a entrevista de devolução dos resultados para os familiares (BRASIL, 2014a, p. 41).

No capítulo “Comorbidades e causas” são apresentadas as principais características sintomatológicas dos quadros de TEA e a associação do quadro a causas genéticas, apontando as estatísticas de alguns estudos na área. Dessa forma, o documento discute sobre a possibilidade da existência de duas sintomatologias de quadros diagnósticos distintos no indivíduo com TEA, principalmente no tangente à Deficiência Intelectual e TEA (BRASIL, 2014a).

A diretriz segue com os capítulos “O momento da notícia do diagnóstico de TEA”, “Projeto Terapêutico Singular: Habilitação e Reabilitação da pessoa com TEA”, “Apoio e acolhimento da família da pessoa com TEA, e por fim, “ O fluxograma de acompanhamento e atendimento da pessoa com TEA na Rede SUS”. Nesse sentido, nos deteremos na questão da habilitação e reabilitação, visto que essa questão é problemática, pois percebemos que o documento que lança as diretrizes possui um discurso determinista e voltado às neurociências.

A discussão em torno da (re) habilitação70 é problemática e passível de análise

quando se toma como questão a centralidade do cuidado. Ao se propor uma reabilitação ao sujeito autista, denotamos um anterior estado de normalidade e percebemos o condicionamento do discurso de profissionais e familiares carregados de um aspecto desenvolvimentista atrelado à adaptação de um “indivíduo” a uma norma social. Seguindo esse parâmetro, percebemos o quanto o discurso de profissionais, familiares e demais atores

70 A noção de reabilitação está em consonância ao Relatório sobre as Deficiências da OMS, entendendo o conceito como um processo global e dinâmico para recuperação física e psicológica da pessoa com deficiência (BATISTA, 2012.p. 49).

sociais envolvidos no processo de cuidado está impregnado pela noção de deficiência, onde um indivíduo incapaz e denominado paciente deve ser reabilitado seguindo as diretrizes de uma CIF (BATISTA, 2012).

A avaliação sistemática do processo de habilitação/reabilitação deve ser pautada pela consideração da linguagem, dos sentimentos, dos pensamentos e das formas que o paciente tem de se relacionar com as pessoas e com o seu ambiente, bem como pela melhoria e pela ampliação das capacidades funcionais do indivíduo em vários níveis e ao longo do tempo (BRASIL, 2014a, p.63-64, grifo nosso).

De acordo com Batista (2012) o conceito de reabilitação teve grande desenvolvimento no século XX, embora seja preponderante a ideia central de reparação de um déficit adquirido. Atualmente está sendo incorporada a noção de “habilitação” na tentativa de ampliar e entender o conceito de deficiência, acoplando nesse sentido não somente intervenções para “melhorar a função corporal” dos sujeitos, mas também medidas abrangentes de inclusão (p.48).

Neste sentido, o Brasil como signatário e Estado membro da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência realizada em Nova York em 2007, lança uma série de medidas e ações inclusivas. No contexto do presente estudo, destacamos a criação: APACS (Autorização de Procedimentos Ambulatoriais de Alta Complexidade/Custo) em 2002, criação de novos procedimentos para os “Transtornos do Desenvolvimento” em 2008, Rede de Cuidados às Pessoas com Deficiência e os Centros Especializados de Reabilitação II, III, IV (BATISTA, 2012).

A tentativa de relacionar deficiência ao autismo por parte do modelo de ciência que aqui criticamos, não dialoga com a teoria psicanalítica, que ao dar a palavra ao sujeito autista, torna possível a inserção do mesmo no laço social, não o reduzindo a uma entidade nosológica, cujos sintomas são descritos por manuais.

De acordo com Batista (2012) para o autista o Outro é ameaçador, enquanto para o débil o Outro é absoluto. Desta forma, deixamos claro que quando falamos no autista, remetemo-nos a uma posição subjetiva e não apenas a um quadro caracterizado por prejuízos e incapacidades da ordem das faculdades mentais e habilidades cognitivas.

O trabalho clínico psicanalítico abre possibilidades para que cada um possa construir laços sociais, sorver a celebração de viver e contribuir para uma sociedade humana. O que interessa é que a pessoa com autismo usufrua da vida com todas as suas potencialidades, com um futuro em que há caminhos a escolher e percorrer (PACHECO, 2012. p. 105).

É imprescindível acrescentar à discussão que, a linha de cuidado foi posta à Consulta Pública, enquanto o segundo documento é uma diretriz, cujo objetivo central é

“oferecer orientações às equipes multiprofissionais71”. Este último documento foi elaborado

por pesquisadores e “especialistas” reconhecidos nas áreas da saúde e sociedades científicas (BRASIL, 2014. p. 09).

O primeiro salienta a pluralidade e intersetorialidade, enquanto o segundo especifica e direciona o autismo ao campo das deficiências e a um ponto da rede apenas. Neste sentido, criamos o quadro abaixo para apontarmos as principais características e dissonâncias entre esses documentos que nos propusemos analisar.

Quadro 3 – Características e dissonâncias entre a linha de cuidado e diretrizes terapêuticas

Itens

Linha de cuidado para a atenção às pessoas com Transtornos do Espectro do Autismo e suas famílias na

Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde

Diretrizes de Atenção à reabilitação da pessoa com Transtornos do Espectro do

Autismo (TEA)

Ano 2013 Versão preliminar 2013 Versão definitiva 2014

Objetivo

Contribuir para ampliação do acesso e a qualificação da atenção às pessoas com TEA e suas famílias. Trabalha-se assim com a perspectiva da linha de cuidado, reafirmando os princípios ético-técnico-políticos para organização dos pontos de atenção da RAPS, subsidiando a definição de

estratégias para ação, incluindo a atenção básica.

Oferecer orientações às equipes multiprofissionais dos pontos de atenção da Rede SUS para o cuidado à saúde da pessoa com TEA e sua família nos diferentes

pontos de atenção da Rede de Cuidados à Pessoa com

Deficiência. Diretrizes

Integralidade, garantia de direitos e cidadania, arranjos e dispositivos para o cuidado, Projeto Terapêutico Singular

(PTS), Tecnologias de Cuidado e Tratamento medicamentoso.

Habilitação/Reabilitação.

Eixos norteadores

Ideais levantados pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, Lei 8069/1990, Lei 10.216/2001, Lei 12.764/2012, Decreto nº

6949/2009, Decreto nº 7.508/2011, Portaria GM nº 336/2002, Portaria GM nº 4.279/2010, Portaria GM nº

3088/2011, Portaria nº 793/2012 e Portaria SAS nº 854/2012.

Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência 2007, Decreto nº 6.949 de 2009, Plano

Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência de 2011, Rede de

Cuidados à Pessoa com Deficiência e Lei 12.764/2012. Submetido à

Consulta Pública

Sim. Não.

Metodologia Não apresenta detalhamento do processo metodológico de elaboração do documento. Pesquisa bibliográfica, resultante de pesquisas científicas dos últimos 70 anos/Estado da Arte. Histórico do

Autismo XVIII para o XIX, debate em torno da noção de idiotia. Desde os primórdios da Psiquiatria, virada do século

Desde a caracterização do Transtorno por Leo Kanner em

1943 (últimos 70 anos) Tecnologias

de Cuidado

Tratamento clínico de base psicanalítica, Análise do Comportamento Aplicada (Applied Behavioral Analysis-

ABA), Comunicação Suplementar e Alternativa (CSA), Integração Sensorial, Tratamento e Educação para crianças com Transtornos do Espectro do Autismo

Não utiliza a terminologia “Tecnologias de Cuidado”, embora esse seja exercido, de acordo com o documento através:

Instrumentos de Rastreamento,

71 Seguindo a lógica dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas no Sistema Único de Saúde, que são baseados na “melhor evidência científica” (BRASIL, 2011).

(TEACCH), Acompanhamento Terapêutico e Aparelhos

de Alta Tecnologia. Avaliação Diagnóstica, entrevista com pais e cuidadores, observação direta do comportamento e da interação, classificação diagnóstica em si e

por fim, prevenção e aconselhamento genético. Lugar das pessoas com TEA na RAS (Rede de Atenção à Saúde)

Usuário: Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus diversos pontos, sejam eles vinculados à Atenção Primária

à Saúde/ou Serviços de Urgência e Emergência, por exemplo.

Paciente: Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência.

Ênfase nos seguintes

aspectos

Singularidade, narrativa aberta no processo diagnóstico, integralidade do cuidado, Reforma Psiquiátrica e o conceito de território, intersetorialidade e garantia de

direitos.

Detecção precoce de sinais iniciais de problemas no desenvolvimento, Indicadores do desenvolvimento e sinais de alerta, indicadores comportamentais de TEA, instrumentos de rastreamento e avaliação diagnóstica e classificações: CID 10 e CIF.

Processo de elaboração

Psicólogos, Psiquiatras e demais profissionais vinculados à Rede de Atenção Psicossocial, representantes da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras drogas, além de representantes do Movimento Psicanálise,

Autismo e Saúde Pública.

Representantes de Sociedades Científicas, Profissionais da Neurologia, com participação

significativa nas funções de coordenação e organização do documento por profissionais da

Fonoaudiologia. Fonte: Elaborado pelo autor a partir da leitura de Brasil (2013) e Brasil (2014a).

Dentre as palavras presentes nas diretrizes, temos: plasticidade, quadro sintomatológico, sinais iniciais, problemas no desenvolvimento, instrumentos de rastreamento, aconselhamento genético, entre outros que salientam o caráter desenvolvimentista, no qual as teorias cognitivo-comportamentais são priorizadas como produtora de verdades72.

Além dessas questões, percebemos o quanto a dissonância presente entre a Linha de cuidado e as diretrizes possui um posicionamento político pró e contra os ideais da Reforma Psiquiátrica. De acordo com Angelucci e Sotilli (2015) de um lado tivemos a pressão que familiares de autistas e profissionais que não estão de acordo com a política de saúde mental e que exerceram pressão sobre o poder executivo federal para elaboração de lei específica e diretrizes. No entanto, essa pressão exercida focou na concepção de que o cuidado deve ser exercido tendo como centralidade o diagnóstico, colocando ênfase nas especifidades da patologia e assim estabelecendo as diretrizes que ora criticamos. Por outro

72É interessante acrescentar que historicamente a Educação em Saúde no âmbito do SUS tem se mostrado ineficaz, justamente por utilizar técnicas da psicologia comportamental na tentativa de “aprendizagem de hábitos saudáveis”, ou seja, aumentar o repertório de comportamentos positivos dos indivíduos, gerando um hiato entre teoria e prática (GAZZINELLI, 2005).

lado, temos a linha de cuidado fortemente embasada nos ideais levantados pela Reforma Psiquiátrica e focando na singularidade, procurando superar estigmas e valorizando a pluralidade.

Temos assim, então, o marco que caracteriza esta situação de ambiguidade no Brasil: uma política baseada na Reforma Psiquiátrica e nos princípios da luta antimanicomial que, no âmbito específico dos transtornos do espectro autista, está estruturado tendo como base dois documentos que revelam posições antagônicas: um expressa o processo de construção grupal por parte dos profissionais e o outro que revela o poder das associações de familiares e alguns (as) profissionais contrários às diretrizes atualmente vigentes (ANGELUCCI; SOTILLI, 2015, p. 209, tradução nossa).

Essa busca obcecada para compreensão do suposto e referido quadro clínico leva não só a comunidade científica, mas a sociedade como um todo a um equívoco, generalizações indevidas e necessidade de compreender um fenômeno a partir de uma série de ensaios clínicos e estudos genéticos, tomando o método experimental como única forma de produzir verdades em relação ao objeto que nos debruçamos.

Essas generalizações são grandes equívocos das sociedades científicas, pois as tentativas da epigenética – estuda as interações causais entre os genes e seus produtos que dão lugar ao fenótipo – por exemplo, não dão respostas conclusivas acerca da gênese do autismo. Mesmo assim, são lançadas supostas verdades, embora os resultados desses estudos não terem sido realizados com um número significativos de sujeitos, entre outros problemas metodológicos73 (BENASAYAG; FLORES, 2015). Caímos na necessidade de dar contornos

ao desconhecido e dessa forma, lançamos supostas verdades que nos aprisionam e fazem-nos repudiar a reflexão e o pensamento.

Alberti (2006) aponta que tendemos a “imaginarizar”, pois não suportamos o Real e nesse sentido necessitamos “gestaltizar” o mundo em que vivemos, numa tentativa constante de representação e/ou simbolização do mesmo. A questão da ciência moderna não destoa dessa compreensão, pois há uma necessidade premente de dar contornos a todo e qualquer enigma que se levante, pois, a ciência promete dissolver todas as problemáticas. Entretanto, nesse ínterim se destaca a discussão em torno dos objetos de estudo da Psicanálise, Psiquiatria e Neurologia que, embora haja uma suposta intersecção74 entre os campos “a mente humana”,

existem igualmente pontos particulares, caso contrário, não se configurariam como disciplinas do conhecimento (p.95).

73 Além do número insuficiente de pacientes na pesquisa, são detectados outros problemas como: não há critério unânime para definir o que é o autismo, não há definição precisa de causalidade, pois muitas vezes correlação é confundida com causa, etc. (BENASAYAG; FLORES, 2015).