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7 RESULTADOS E DISCUSSÃO

7.1 O sujeito autista na Rede SUS: (Im)possibilidade de cuidado

Atualmente denominado Transtorno do Espectro Autista (TEA) pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5ª edição (APA, 2013), o autismo acompanha os primórdios da Psiquiatria desde a virada do século XVIII para o XIX, inicialmente atrelado à noção de idiotia38. No contexto de então, o tratamento moral de Pinel

passou a ser questionado quanto a sua efetividade com esses pacientes, apostando-se no método clínico-pedagógico, esse desenvolvido pelo célebre médico francês Jean Itard39

(BRASIL, 2013).

Instalado esse debate em torno da pedagogia versus tratamento que se tornou evidente nos primórdios da Psiquiatria Infantil, mais especificamente no campo das idiotias, destacando-se as teorias de Paracelso, Pinel e Itard sobre a deficiência intelectual. Muitos fatos e uma série de acontecimentos em torno da figura do autista sucederam-se, fatos que ainda hoje permanecem e podem-se evidenciar resquícios dessa “confusão” e/ou dúvida se o quadro diagnóstico é uma psicopatologia ou deficiência. Embora o debate seja secular, os campos das neurociências e teorias comportamentais, nos dias atuais, sustentam uma visão do sujeito autista atrelado à deficiência40 (BATISTA, 2012).

No âmago da questão encontrava-se a necessidade de distinção entre os quadros de deficiência intelectual/retardo mental e psicoses, pois até então, os mesmos eram tomados como de mesma categoria41. Entretanto, em 1818, Esquirol propôs uma diferenciação entre

loucura e idiotia, pois para a primeira haveria uma suposta cura, enquanto o idiota era mantido numa posição de incurabilidade e estigmatizado como o “degrau zero da humanidade” (ZAFIROPOULOS, 1981 apud BATISTA, 2012, p.42).

Em 1943, Leo Kanner, médico austríaco, radicado nos Estados Unidos, publicou o artigo “Os distúrbios autísticos de contato afetivo”, utilizando o termo “autismo” que Eugen

38 Nos primórdios da Psiquiatria idiotia é considerada precursora da noção de retardo mental, psicoses infantis e o próprio autismo (BATISTA, 2012).

39 Jean Itard ficou conhecido pelo caso de Victor de Aveyron “O menino selvagem” que foi encontrado nu, com rosto e pescoço cobertos de cicatrizes nos arredores de uma aldeia no sul da França em 1800, o menino não falava e nem respondia à fala (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2006).

40 Embora a deficiência intelectual seja uma comorbidade possivelmente relacionada ao autismo e seja apontada como um dos critérios a ser descartado e/ou corroborado no processo de diagnóstico diferencial.

41 Atualmente possuímos o diagnóstico diferencial para descartar hipóteses diagnósticas e comorbidades associadas ao quadro diagnóstico central.

Bleuler42 havia usado para descrever um dos sintomas da esquizofrenia, caracterizado pelo

isolamento e desinteresse do indivíduo pelas pessoas e objetos externos (BRASIL, 2013). Desde então, percebemos uma história atrelada a avanços e retrocessos no âmbito científico em torno do autismo, conforme ilustrado no quadro abaixo.

Quadro 2- Evolução das ideias em torno da categoria “autismo”.

Acontecimento Período Características importantes

Diagnóstico de Idiotia por Pinel Em torno de 1800 Categoria loucura passa a ser doença e alvo do Tratamento Moral no Asilo de Bicêtre.

Método clínico-pedagógico por Jean

Itard 1801 Passou-se a questionar a doença mental a partir do caso de Victor de Aveyron que foi educado no Instituo de Surdos-mudos por dez anos na França.

Diferenciação entre Idiotia e loucura por Esquirol

1818 Divisão dos distúrbios mentais de substrato orgânico dos funcionais, considerando o idiota como um indivíduo que não se desenvolveu.

Descrição das psicoses infantis por De Sanctis e dementia infantilis por Heller

1906 e 1908 Ambas as descrições seguiram o crivo da

dementia praecox do alemão Emil

Kraepelin Descrição da esquizofrenia e sintoma

de autismo presente no quadro por Eugen Bleuler

1911 Bleuler foi influenciado por Freud, utilizou o termo autismo em referência ao termo “autoerotismo” ao relacionar a esquizofrenia à “perda de contato com a realidade”, retirando o prefixo “eros” por atrelar sexualidade à esfera da genitalidade.

Publicação do artigo “Os distúrbios autísticos do contato afetivo” por Leo Kanner

1943 Descrição de 11 crianças com distúrbios cujos sintomas circundavam em torno do isolamento extremo, comportamento estereotipado e não aquisição da linguagem.

Publicação do artigo “Psicopatia autística na infância” por Hans Asperger

1944 Descrição de quatro crianças com transtorno no relacionamento com o ambiente ao seu redor, porém, de alto nível de originalidade no pensamento e atitudes. Publicação do livro “A fortaleza

vazia” por Bruno Bettelheim 1967 Introdução do termo “Mãe-geladeira”, para o autor os quadros de autismo possuíam como psicogênese ambientes familiares pouco afetuosos.

Autismo como um distúrbio do

desenvolvimento 1970 até hoje Ascensão da teoria cognitivista e queda da compreensão psicodinâmica dos transtornos mentais e autismo.

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da leitura de Brasil (2013).

Relacionado à questão dos avanços e retrocessos, no Brasil destacamos o fato da criação e aprovação da Lei 12.764 (Lei Berenice Piana), de 27 de dezembro de 2012 que

42 Nessa discussão, salientamos que Eugen Bleuler utilizou o termo “autismo” influenciado pela teoria freudiana, mais especificamente da noção de autoerotismo, que para Freud consistia no indivíduo tomar o próprio corpo como objeto sexual, para descrever o sintoma da esquizofrenia pela recusa aos objetos externos, entretanto, Bleuler suprimiu o prefixo Eros, por acreditar não estar a esquizofrenia ligada à sexualidade, ficando assim autismo (ALBERTI; BETEILLE, 2014).

institui a Política Nacional de Proteção da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista43. A

referida legislação passou a tomar, para fins de lei, o autista como pessoa com deficiência (BRASIL, 2012c). Esse fato nos traz inúmeras repercussões, tanto no âmbito científico quanto social, visto que pais de autistas tiveram grande participação para a elaboração e aprovação da referida lei.

A partir dessa vinculação da figura do autista à deficiência temos uma série de reflexos na política pública de saúde, pois nos surpreende que atualmente os governos e familiares façam essa associação do autismo à deficiência, ainda que historicamente o deficiente tenha sido mais estigmatizado que o louco (BATISTA, 2012). Essa realidade dá margem a várias discussões, dentre elas a que nos interessa é a configuração/organização da Rede SUS no tangente a atenção/cuidados aos usuários autistas e que desdobramentos dessa vinculação do autismo com a deficiência intelectual/cognitiva traz no contexto em questão, a saúde pública.

7.2 Documentos oficiais e normativos do Ministério da Saúde referentes aos Transtornos