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Auto-estima e auto-conceito: conceptualização e medida

PARTE I – AVALIAÇÃO DA AUTO-REPRESENTAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA

1. Introdução

1.2. Da Psicologia do Desenvolvimento à Psicologia Social

1.2.1. Auto-estima e auto-conceito: conceptualização e medida

O capítulo de William James (1890, 1892) ‗The consciouness of the self‘ no livro ‗Principles of Psychology‘ marca a primeira abordagem psicológica sobre o self. Este trabalho pioneiro tem o mérito de identificar alguns dos temas principais do estudo sobre o

self na actualidade: a distinção entre o I-self e o Me-self (descrita na introdução), que é

reconhecido em quase todas as abordagens sobre o self; a definição da auto-estima como uma função dos resultados e aspirações dos indivíduos; e a perspectiva multidimensional e dinâmica do auto-conceito.

Segundo James (1890/1999), o ME (o aspecto do self que é objecto da nossa atenção, pensamento ou percepção) pode ser dividido em três partes: os constituintes; os sentimentos e emoções que provocam; e as acções que desencadeiam. De uma forma geral, é reconhecido que o auto-conceito inclui uma componente cognitiva, uma componente afectiva e uma componente comportamental (Baumeister, 1999). A componente cognitiva refere-se aos conteúdos, que alguns designam de auto-conceito, enquanto os aspectos afectivos e avaliativos, referem-se à auto-estima (e.g., Baumeister, 1995; Brown, 1998; Harter, 1999, 2003; Wylie, 1974). A componente comportamental ou executiva refere-se à regulação dos comportamentos – gestão do nosso ‗Eu‘, em termos físicos, relacionais e emocionais (e.g.,

Baumeister, 1998). De seguida iremos centrar a nossa apresentação na componente cognitiva e afectiva, e reflectir sobre a relação entre estas componentes.

Um dos aspectos da componente cognitiva do auto-conceito refere-se aos conteúdos usados pelos indivíduos para se descreverem. Estes foram objecto de análise relevante nos estudos realizados nos anos 80 no domínio da psicologia do desenvolvimento (e.g., Harter, 1983; Damon & Hart, 1988). Estes estudos demonstraram a forma como as auto-descrições das crianças e adolescentes se desenvolvem e a forma como os conteúdos vão mudando ao longo do desenvolvimento (e.g., identificação de diferenças em função da faixa etária e do género). No sentido de aceder aos conteúdos do auto-conceito de crianças e adolescentes, foram utilizadas principalmente duas metodologias – entrevistas e questionários com perguntas de resposta aberta (e.g., ―quem sou eu‖). Os conteúdos espontaneamente gerados pelas crianças e adolescentes eram, posteriormente, analisados e categorizados nas dimensões mais salientes das auto-descrições. Deste modo, foi possível identificar o aumento de dimensões utilizadas na auto-descrição com a idade.

A par dos conteúdos tem sido defendido que é importante integrar na análise a forma como os indivíduos se pensam, ou seja, a dimensão avaliativa (i.e., a auto-estima), na medida em que a componente avaliativa é uma das dimensões mais fortes na organização dos atributos, i.e. os indivíduos organizam o pensamento sobre si e sobre os outros com base em julgamentos positivos ou negativos (Harter, 1999, 2003). Neste sentido, o auto-conceito e a auto-estima são assumidos, umas vezes, como indistintos e utilizados indiferenciadamente (e.g., Piers, 1984), outras, são-lhes atribuídos significados específicos apenas quanto à sua natureza (mais cognitiva ou mais afectiva), outras ainda, são considerados como verdadeiramente independentes e com funções diferenciadas (e.g., Harter, 2003). Na presente dissertação, vamos centrar a análise na componente cognitiva, em particular, nos conteúdos e organização cognitiva dos mesmos.

Nas abordagens iniciais do estudo da auto-estima das décadas de 50, 60 e 70, a auto- estima foi conceptualizada como um constructo unitário referente à forma como os indivíduos se sentem em geral em relação a si (e.g., Harter, 2003). Esta conceptualização reflecte-se nas medidas utilizadas, das quais resultavam valores globais sobre a forma como o indivíduo se sentia em geral (e.g., Harter, 2003; Markus & Wurf, 1987; Shavelson, Hubner, & Stanton, 1976). Contudo, no final da década de 70 começaram a surgir artigos críticos face à forma como o estudo do auto-conceito e da auto-estima estava a ser desenvolvido. Para além dos problemas ao nível da definição dos conceitos, existiam problemas ao nível da

validade das medidas usadas pela falta de estudos sistemáticos sobre as mesmas. Shavelson e colegas (1976) constataram, numa revisão dos estudos sobre o auto-conceito, que existiam deficiências importantes na investigação que era desenvolvida, concluindo que ―it appears that self-concept research has addressed itself to substantive problems before problems of definition, measurement, and interpretation have been resolved‖ (p.470). Assiste-se, assim, a uma mudança na abordagem do estudo do auto-conceito não só ao nível teórico, passando-se de modelos unidimensionais para modelos multidimensionais, como ao nível metodológico, com o recurso a análises factoriais confirmatórias, modelos de equações estruturais e análises multi-traço/multi-método.

Face a estas mudanças, surgem modelos alternativos na concepção e avaliação do auto-conceito e da auto-estima. As abordagens mais recentes, apesar de integrarem, ainda, uma visão global da auto-estima, adoptam também uma visão multidimensional do conceito (Epstein, 1973; Harter, 1996; Hattie, 1992; Marsh & Hattie, 1996; Oosterwegel & Oppenheimer, 1993; Oppenheimer, 1995; Shavelson et al., 1976).

No campo da psicologia educacional a abordagem multidimensional fica marcada pela proposta do modelo hierárquico de Shavelson e colaboradores (1976) que foi posteriormente desenvolvido pela equipa de Marsh (Marsh, Byrne & Shavelson, 1988; Marsh & Shavelson, 1985; Shavelson & Marsh, 1986; Marsh & Hattie, 1996). Este grupo defende que a determinação teórica dos domínios do auto-conceito deve ser pré-requisito do estudo de como o self se relaciona com outras variáveis. Assim, a preocupação com as qualidades psicométricas dos instrumentos desenvolvidos com base num modelo teórico forte tornou-se um aspecto central na investigação. É neste sentido que no modelo proposto, o auto-conceito é encarado como um constructo multidimensional e hierárquico, no qual no topo da hierarquia está o auto-conceito geral, que se assume como o aspecto mais estável do auto- conceito, que por sua vez se divide em auto-conceito académico e auto-conceito não académico. Tendo por base o modelo de Shavelson e colaboradores (1976) Marsh e colaboradores (Marsh, Byrne & Shavelson, 1988; Marsh & Shavelson, 1985; Shavelson, et al., 1976; Shavelson & Marsh, 1986; Marsh & Hattie, 1996) desenvolveram os ‗Self

Description Questionnaire‘ (SDQ) para pré-adolescentes (SDQ I), adolescentes (SDQ II), e

jovens adultos (SDQ III).

No campo da Psicologia do Desenvolvimento o modelo proposto por Harter (1982, 1989, 1999, 2003) assenta também no pressuposto da multidimensionalidade do auto- conceito. Harter (1985, 1988, 1990, 1993, 1998, 1999) desenvolve a sua proposta centrando-

se na percepção de competência e tendo por base as concepções iniciais de James (1892). James (1892) enfatizou a necessidade de se considerarem as percepções de sucesso e insucesso em relação às aspirações dos indivíduos. Para James, esta relação representava os antecedentes da auto-estima global. De acordo com esta perspectiva o insucesso numa área que não é considerada importante para o individuo terá um impacto menor na auto-estima global.

Ao operacionalizar o modelo de James, Harter (1985, 1988, 1990, 1993, 1998, 1999) considera que a auto-estima resultará da discrepância entre a percepção de competência nos diferentes domínios do auto-conceito e a importância atribuída a esses domínios. Em vários estudos com diferentes faixas etárias (Harter, 1985, 1986, 1990, 1993) os domínios de competência considerados importantes estão mais correlacionados com a auto-estima global do que a percepção de competência em domínios que não são considerados importantes. A medida desenvolvida por Harter – o ‗Self Perception Profile‘ (SPP) - integra a percepção de competência dos indivíduos num conjunto de domínios relevantes, bem como uma escala de importância relativa aos domínios e uma medida global de auto-estima.

Em suma, no campo da Psicologia do Desenvolvimento, da Psicologia Clínica e da Psicologia Escolar, o auto-conceito está intimamente ligado à noção de competência pessoal (Bong & Skaalvik, 2003; Skaalvik & Bong, 2003) e remete para avaliações globais, mas também para as aptidões e competências mais específicas que cada um detém. Para além disso, é adoptada uma perspectiva do desenvolvimento, sendo proposto que as dimensões em que o auto-conceito se organiza vão mudando ao longo do desenvolvimento com a integração progressiva de um maior número de dimensões relevantes. Estas mudanças reflectem uma maior maturidade cognitiva e integração social em diferentes contextos e relações (e.g., Harter, 1990).

Os modelos multidimensionais têm ditado a construção e administração de instrumentos que avaliam um número de domínios do auto-conceito, seguido de análises factoriais exploratórias e confirmatórias que revelam que cada um dos domínios descreve um determinado factor (Harter, 1999). No que se refere aos instrumentos usados na avaliação do auto-conceito/auto-estima constata-se que têm sido quase exclusivamente baseados no auto- relato – resposta a perguntas abertas para aceder às respostas espontâneas dos indivíduos; resposta a questionários tendo por base escalas de tipo Lickert ou o tipo de escala usada nos questionários de Harter (são apresentadas duas frases e, primeiro, é pedido aos participantes

para identificarem qual das duas frases os descreve melhor e após esta selecção, têm de assinalar se a frase apresentada os descreve ‗mais ou menos‘ ou ‗mesmo assim‘).

Paralelamente, no campo da Psicologia Social também se observa uma crítica severa ao modelo unidimensional do auto-conceito (e.g., Markus & Wurf, 1987). Contudo, ao contrário dos estudos desenvolvidos no campo da psicologia educacional e da Psicologia do Desenvolvimento, os estudos nesta área centraram-se, não na percepção de competência, mas nas auto-representações e na forma como a informação é processada e armazenada na memória. Estas diferenças reflectem-se ao nível da definição e operacionalização dos conceitos, como apresentaremos de seguida. Por fim, ao passo que os estudos de percepção de competência incidiram principalmente no estudo do auto-conceito/auto-estima de crianças e adolescentes, no campo da Psicologia Social a investigação tem-se centrado principalmente nas auto-representações de adultos.

As críticas aos modelos unidimensionais incluíam também a investigação desenvolvida, em particular ao papel que era atribuído à auto-estima como preditor. No final da década de 80, Markus e Wurf (1987) referem que a investigação sobre o self poderia ser descrita como a tentativa de relacionar comportamentos gerais e muito complexos a um simples aspecto do auto-conceito - a auto-estima. Esta crítica mantém a sua actualidade como se pode constatar num trabalho de 2007 (Swann, Chang-Schneider, & McClarty, 2007) em que são referidas estratégias para melhorar o poder preditivo do auto-conceito/auto-estima. São sugeridas três estratégias: (1) a conceptualização da multiplicidade do auto-conceito; (2) a especificidade dos comportamentos a prever e (3) os procedimentos usados para avaliar a relação entre as variáveis (Markus & Wurf, 1987; Swann, Chang-Schneider, & McClarty, 2007).

No que diz respeito à primeira estratégia, de acordo com Markus e Wurf (1987) um dos obstáculos da ligação do auto-conceito à regulação do comportamento tem sido a visão do auto-conceito como estável, geral, ou a média das percepções sobre o auto-conceito. É proposto então a conceptualização do auto-conceito como um fenómeno multidimensional, como um conjunto de imagens, representações, esquemas, concepções, protótipos, teorias, objectivos ou tarefas (Markus & Wurf, 1987; Schlenker, 1980; Carver & Scheier, 1981).

As outras duas estratégias estão relacionadas e referem-se, por um lado, à adequação do nível de especificidade dos preditores e das variáveis critério, e, por outro, à adequação dos procedimentos utilizados para avaliar a relação preditor-variável critério (Swann, Chang- Schneider, & McClarty, 2007). Por exemplo, Markus e Wurf (1987) argumentam que as

acções dos indivíduos são muito complexas e, por isso, nem sempre são as mais adequadas enquanto variáveis dependentes. Acresce que a influência do auto-conceito poderá nem sempre ser revelada de forma directa nas acções dos indivíduos. Em vez disso, o seu impacto poderá revelar-se de forma mais subtil, na mudança de humor, nas mudanças dos aspectos do auto-conceito que estão mais acessíveis e dominantes, nas mudanças de auto-estima, nas escolhas de comparação social, na natureza da auto-representação, na escolha do contexto social e na construção e definição das situações.

Assim, na perspectiva da Psicologia Social tem sido reconhecido que o conceito de

self, conceptualizado como uma estrutura cognitiva contextualizada, dinâmica e interpretativa

fornece um importante quadro conceptual na explicação de um conjunto de processos e comportamentos (Baumeister, 1998; Brandstädter, & Greve, 1994; Higgins, 1996; Markus & Herzog, 1991; Markus & Wurf, 1987; Orbach, Mikulincer, Stein, & Cohen, 1998).