• Nenhum resultado encontrado

DA AUTOBIOGRAFIA CLARICIANA Clarice, até que ponto você se identifica com as suas

personagens? Até que ponto você é a Joana de Perto do coração

selvagem, uma pessoa lúcida que não se encontra na realidade? __ Bem, Flaubert disse uma vez: “Madame Bovary sou eu.” (LISPECTOR. Clarice. Entrevista a Sérgio Augusto, Jaguar,

Ziraldo e Ivan Lessa. In: Pasquim. Rio de Janeiro, 09 de junho de 1974.)

Nas crônicas claricianas publicadas nas páginas do Jornal do Brasil, que se encontram em A descoberta do mundo (1999), nota-se, a perpassar a escrita dessa parte da obra de Clarice Lispector, uma questão. A questão autobiográfica, que se faz presente, seja como tema ou não dessas publicações, negando-se ou se afirmando presente mesmo naquelas crônicas em que esse assunto não se anuncia como o assunto tratado. E é essa presença que nos leva a refletir aqui sobre a autobiografia, e sobre sua relação com a escrita de Clarice Lispector, mais especificamente, a de suas crônicas.

Mas quais seriam as características intrínsecas ao gênero autobiografia indispensáveis para se compreendê-lo, enquanto gênero fronteiriço, situado entre a literatura e a não-ficção? Seria possível observar, empreendendo um rápido percurso pela sua história, aquelas que seriam as características inerentes à sua constituição? Seria possível rapidamente percebermos o porquê de, mais contemporaneamente, ele haver se transformado em um grande sucesso editorial, e ter despertado o interesse de muitos e variados leitores?

E ainda, por que esse gênero __ no mesmo movimento que abarca outros gêneros considerados menores, como a crônica, a epistola, o diário, entre outros __, tem despertado o interesse de muitos estudiosos que vêm, nas últimas décadas, tratando justamente de sua configuração, de seu imbricamento com outros gêneros, como os literários, considerados tradicionalmente como de maior valor? Poderíamos por fim perguntar aqui sobre o porquê de a autobiografia, ter se transformado em um objeto de interesse para teóricos e pesquisadores da literatura por exemplo__ incluindo aqui nosso intuito de pensar o modo como a autobiografia se articula com a crônica de Clarice Lispector.

Mas passemos a algumas considerações sobre a autobiografia e a alguns exemplos de escritas autobiográficas, e mesmo biográficas, importantes para se pensar esse gênero.

Tendo em vista nosso intento de pensá-lo naquilo que se relaciona com a obra cronística de Clarice Lispector.

Assim é que retomamos, para começar, aquela crônica da autora intitulada, “Fernando Pessoa me ajudando”, de 21 de setembro de 1968. Crônica na qual, partamos do título, Clarice recorre ao poeta Pessoa em defesa desta, podemos dizer, inapreensibilidade

de sua vida no corpo de seus escritos81. Não porque ela ali não esteja, mas pelo contrário,

por estar profundamente implicada no seu texto é que ela não se deixaria conhecer. É isso o que diz a crônica, e é o que, segundo a escritora, disse Fernando Pessoa.

Sendo esta constatação pessoana uma forma de consolo para Clarice que confessa: “O que me consola é a frase de Fernando Pessoa que li citada: „Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos.‟” (DM, 1999, p. 136-137). Mas isso vem a propósito da constante preocupação de Clarice com a singularidade do espaço do jornal e de sua crônica aí ensejada. Essa crônica em questão começa com mais um daqueles

momentos de desabafo, bem comuns a esses seus textos: “Noto uma coisa extremamente

desagradável. Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas...” (DM, 1999, p. 136-137), em seguida acrescenta, “mas agora entendo os nossos melhores cronistas. Porque eles assinam, não conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim, isto me desagrada.” (DM, 1999, p. 136-137).

E então, após assinalar seu desagrado, desconforto, com essa situação, volta à diferença de valor que para ela existe entre seus diferentes escritos. Ao dizer: “Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer.” (DM, 1999, p. 136-137). E, como já sabemos, ela afirmava valorizar mais seus escritos para livros do que o que viria a ser uma de suas crônicas82. Na verdade, ela

81Podemos nesse sentido lembrar aqui um momento do texto “Fernando Pessoa: o desconhecido de si

mesmo”, de Otávio Paz sobre o poeta Pessoa, que parece vir a propósito do que dissemos acima: “(...) O seu segredo, para mais, está escrito no seu nome: Pessoa quer dizer personagem e vem de persona, máscara dos actores romanos. Máscara, personagem de ficção, ninguém: Pessoa. A sua história poderia reduzir-se à viagem entre a irrealidade da sua vida quotidiana e a realidade das suas ficções. Estas ficções são os poetas Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e, sobretudo, ele mesmo, Fernando Pessoa. Assim, não é inútil recordar os factos mais salientes da sua vida, na condição de se saber que se trata das pegadas de uma sombra. O verdadeiro Pessoa é outro.”(PAZ, 1908, p. 7-8.)

82 Como exemplifica o que ela disse na já citada “Ser cronista”: “basta eu saber que estou escrevendo para

jornal, isto é, para algo que aberto facilmente por todo mundo, e não para um livro, que só é aberto por quem realmente quer, para que, sem mesmo sentir, o modo de escrever se transforme. (...) Mas mudar só porque isto é uma coluna ou uma crônica? Ser mais leve só porque o leitor assim o quer? Divertir? Fazer passar uns minutos de leitura? E outra coisa: nos meus livros quero profundamente a comunicação profunda comigo e com o leitor. Aqui no jornal apenas falo com o leitor e agrada-me que ele fique agradado. Vou dizer a verdade: não estou contente.” (DM, 1999, p. 112).

parecia não se preocupar muito, nem com os motivos dessas composições, nem com uma profunda elaboração estilística, e recorria mesmo à republicação de seus escritos como

forma de cumprir com essas obrigações de ser cronista83.

Porém, podemos dizer, por outro lado, que o papel de cronista, no espaço do Jornal

do Brasil, acabou por levar-lhe a refletir sobre as especificidades dessa produção. E até mesmo por surpreender-lhe, seja pelo contato com um público maior e mais diferenciado que o dos seus leitores de livros, seja pela resposta desse público, através cartas e mesmo telefonemas que recebia. Ou seja, também, porque essa especificidade da crônica passou a lhe exigir um cuidado maior com a escrita no espaço do jornal que, pelo contrário do que acreditava, lhe possibilitou exatamente o tipo de contato com o outro, no plural do conjunto de seus leitores, que ela afirmava, às vezes, buscar na escrita de seus livros.

E Clarice, continua indagando em sua crônica: “Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha.” (DM, 1999, p. 136-137). Mas avisa não haver-lhe escapatória, pois: “Acho que se escrever sobre o problema da superprodução de café no Brasil terminarei sendo pessoal.

Daqui em breve serei popular? Isso me assusta. Vou ver o que posso fazer, se é que posso.”

(DM, 1999, p. 136-137). A cronista parece ter consciência de que a exposição de sua intimidade no espaço da crônica é inevitável. Mas, voltemos ao início do que dissemos sobre essa crônica, pois Clarice nos lembra do poeta Fernando Pessoa, e justificada pela figura dele acaba também por se negar a admitir essa entrega de si, o desvelamento de sua intimidade, no espaço de suas crônicas.

Pensar nessa questão, do imbricamento entre vida e obra de um escritor e, no caso

da escritora Clarice Lispector, nos faz voltar ao trabalho de Otávio Paz, “Fernando Pessoa:

o desconhecido de si mesmo” (PAZ, 1980), no qual, logo de início, tem-se: “Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia.” (PAZ, 1980, p. 07). Citá-lo aqui nos importa na medida em que pode exemplificar que, se há os mais diversos modos de se tratar às relações entre vida e obra de escritores, contudo, um aparente paradoxo, pode se apresentar ante esse percurso como o ponto de partida, ou mesmo como a resposta esclarecedora, o ponto de chegada ao fim dessa jornada.

Ou simplesmente poderíamos dizer que as diversas abordagens das também diversas relações, entre vida e obra, encarnadas pelos escritores estão longe de nos

83 Como disse em carta ao filho, também apresentada nesse trabalho anteriormente: Carta de Clarice ao filho

Paulo Gurgel Valente, na década de setenta, quando ele estava nos E.U.A., (LISPECTOR, Clarice.

possibilitar uma resposta consensual sobre a medida deste imbricamento. E que ainda que não possam apresentar qual seria a melhor maneira de procedermos em relação a esse tipo de trabalho, a essa investida que busca refletir sobre a constituição de uma escrita de si__ no corpo da escrita de Clarice Lispector__ podem ao menos nos indicar possíveis caminhos, podem nos apresentar as perguntas que se deve fazer nesse percurso.

E, devemos ainda afirmar o seguinte: procedendo a uma rápida abordagem dessas relações entre a vida e a escrita de Clarice Lispector, materializada em sua produção cronística, ressaltemos o fato de que esse imbricamento há de ser aqui pensado de forma a inseri-lo em um movimento maior, qual seja, o de não apenas admitir a impossibilidade de separação entre vida e obra do escritor, mais sim de pensar ambas, vida e obra, já na observância da confluência em que se urdiram, na constituição, tanto de uma quanto da outra.

Nesse sentido, pretendemos lembrar ainda que __ se ao tratar da crônica, o gênero “menor”, a tarefa implicava, por si só, percorrer dispersos e ainda não substanciais, quantitativamente falando, trabalhos sobre esse gênero e seus representantes na literatura brasileira __ estudar as crônicas de nossa autora, Clarice Lispector, nos levou necessariamente a refletir sobre outro gênero, esse outro gênero, a autobiografia, no entrecruzamento que se evidência. E que nos impele agora a empreender outro percurso, em busca de um entendimento do que seria essa autobiografia, e do mais ajustado modo de pensá-la naquilo que dela nos interessa, ou seja, do modo como se dá sua relação com a produção cronística clariciana.

Assim é que havemos de lembrar que esse gênero, como a crônica, é outro gênero “menor”. Que, como a própria crônica, no decorrer do tempo, manteve diferentes modos de constituição e de conceituação dos escritos que a ele pertencem. E que manteve para com relação aos seus próprios paradigmas, aceitação, desconfiança, ou mesmo subversão. E se, teve limites bem nítidos quanto a sua forma e matéria, isso se refere já a um distante passado do gênero, pois o que o constitui mais contemporaneamente é uma grande miscelânea de formas e uma grande liberdade de tratamento do assunto que o constitui: o “eu”, a primeira pessoa auto-referenciada na escrita.

Por sinal, a autobiografia é um gênero que, como a crônica, foi situado ali à margem, ou à sombra dos gêneros literários, ou situado naquilo que seria mesmo a fronteira entre o ficcional desses gêneros literários e o não-ficcional ou referencial dos outros gêneros discursivos. Situado à margem da valoração positiva e às vezes até

grandiloqüente com a qual gêneros literários, como o romance por exemplo, foram agraciados no decorrer do tempo.

Como a crônica, a autobiografia __ apesar de sua história ser longa, apesar de ser uma escrita a que grandes homens se dedicaram, apesar de já se ter acreditado como sendo capaz de dar a conhecer a totalidade de uma vida a qualquer leitor, apesar disso, e de muito mais __ nunca foi considerada um dos grandes gêneros. E se foi já alguma vez definida, ou confundida com um gênero literário, mais contemporaneamente, vive tal desdobramento mesmo de suas possibilidades de forma que enseja o questionar das distinções entre o

ficcional e o não-ficcional, o “eu” e o “ele”, o biográfico e o autobiográfico. Essas

questões, entre outras, devem ser pensadas nos seus mais variados modos de imbricamento no corpo da escrita, na inscrição da palavra, no texto em que um autor assina seu nome.