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O conúbio entre escritor e jornal é contumaz, e não só em nosso país. Entre nós, mereceu um capitulo de Brito Broca, em A vida literária no

Brasil – 1900. (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 625-626).

E se, como dizíamos a pouco, a prática jornalista e a prática literária foram, mais das vezes, concomitantes na vida de muitos escritores brasileiros, foram também concomitantes a esse metier acerbas discussões sobre as implicações da escrita jornalística, geralmente tida por perniciosa, ao desempenho do ofício literário. O fato é que, a grande

maioria dos nossos escritores se dedicou, pelos mais variados motivos e contingências, ao ofício de jornalista.

Dessa conturbada relação é que trata Walnice Pereira Galvão, em seu artigo no qual, não só reafirma a complexidade e longevidade da relação entre escritor e jornal na literatura brasileira, como também trata de nos esclarecer que, em se tratando da relação

dos escritores com a crônica e por extensão com o jornal, “... há consideráveis nuances e

modulações: tudo pode parecer um fenômeno só, mas não é de maneira alguma. Os

escritores distribuem-se por diferentes relações com o jornalismo.” (SÜSSEKIND&DIAS,

2004, p. 623).

Walnice trata então de estabelecer uma tipologia de escritores, partindo do tipo de relação que cada qual manteve com o jornal e com as outras formas de escrita que cultivou em vida. Consideramos ser de grande importância apresentar a tipologia de Walnice, tendo em vista, não só o fato de que ela contempla, entre os escritores apresentados, Clarice Lispector, nosso verdadeiro interesse nesse seu artigo, mas ainda pelo fato desse seu trabalho percorrer de forma muito instrutiva a história da crônica brasileira e de seus principais representantes.

Passemos à sua tipologia de escritores cronistas, na qual, o primeiro tipo

apresentado é o “Tipo tempo integral”, ilustrado por Brito Broca, que além de ter se

dedicado de forma exclusiva ao jornal, ainda tratou dessa relação, escritor e jornal, em um

capítulo de seu A vida literária no Brasil – 1900 (Rio de janeiro: José Olímpio, 1975). O

segundo, “Tipo crisálida”, seria ilustrado por grandes nomes como Sérgio Buarque de Holanda e Décio de Almeida Prado, e refere-se ao tipo de escritor, que, enveredando pela carreira universitária acaba por abandonar o jornal. (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 623).

Já o tal “Tipo tribuna” seria ilustrado por Mário de Andrade. Subordinada à postura combativa de Mário, a coluna de jornal, aqui serviria para divulgação das idéias modernistas. Walnice lembra que, se olhamos a correspondência andradiana, vemos que ele recomendava aos seus correspondentes que um escritor deveria ter sempre em mente seu futuro livro, para evitar se exaurir ou tornar-se fútil devido ao exercício da prática jornalística, (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 623).

O “Tipo evolutivo”, cujo melhor exemplo segundo Walnice, é Antonio Candido, refere-se ao tipo articulista de jornal, modalidade hoje inexistente e que teve ensejo quando, grandes nomes da produção intelectual do período __ como Tristão de Ataíde, Augusto Meyer, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, exerciam a critica literária de rodapé

nos jornais tratando teoricamente do que então surgia como coisa atual na literatura que ora se fazia.

O “Tipo relutante”, que é particularmente de nosso interesse, segundo Walnice, seria ilustrado pela escritora Clarice Lispector. Pois ela encarnava, na sua relação com o jornal “a não-profissional em apuros financeiros que desempenha várias funções ou tarefas em diferentes periódicos, até sob pseudônimo, pois os patrões opinavam que seu nome afugentaria os leitores.” (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 625). Vemos a própria Clarice falando de sua relação com a crônica em “Amor imorredouro”, uma de suas publicações no

Jornal do Brasil:

Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. (...) (“Amor imorredouro”, DM, 1999, p. 29-32)

Ainda assim, Clarice, como já dissemos anteriormente, escreveu para o Correio da

Manhã, o Diário da Noite, a revista Senhor, e trabalhou ainda para a revista Manchete e para o Jornal do Brasil, como cronista por mais de seis anos. Tratando dessa relação de Clarice com a imprensa, Aparecida Nunes, mostra que essa relação de Clarice com o

jornalismo foi bem longa, pois, “Clarice foi jornalista por mais de 20 anos”50, (NUNES,

2005, p. 23). Dividindo-se entre escritora de páginas femininas, entrevistadora, tradutora, repórter, cronista e contista, em vários periódicos diferentes.

E, se Clarice Lispector não se sentia muito confortável em atuar na imprensa, e só

exercia esse papel como forma de garantir sua subsistência, por outro lado, “ela estava

sempre presenta nas páginas dos periódicos” (NUNES, 2005, p. 24). Mas voltemos a Walnice que, segue com a apresentação da tipologia, na qual Oswald de Andrade é o

exemplar para o “Tipo militante”. Pois ele, no decorrer de sua vida, escreveu para jornal

50 Como afirma Aparecida Nunes: “É importante frisar que o trabalho de Clarice Lispector em jornal não se

deu em momento isolado na vida da escritora. Desde 1940, quando publicou o conto “Triunfo” na revista

Pan, até as entrevistas que realizou para outra revista, a Fatos e Fotos/Gente, em 1976 e 1977, a escritora marcou presença na imprensa brasileira, onde sua produção foi intensa.” (NUNES, 2006, p. 27).

praticamente todos os dias, tendo mesmo alternado entre periódicos cujos perfis ideológicos chegavam a ser divergentes, e tendo alternado ainda de funções na sua relação com o jornalismo. Tendo sido mesmo fundador e editor de jornais e revistas. Para Walnice, há que se considerar que Oswald urdiu na imprensa nacional “... a crônica política e

intelectual de seu tempo.”51Quanto ao “Tipo tudo-menos-jornalista”, o exemplo escolhido

foi Euclides da Cunha, pois este jamais se considerou um jornalista, mas sim, e antes de tudo, um engenheiro. (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 626).

Já o “Tipo entusiasta declarado” é o poeta Carlos Drummond de Andrade, que foi o “... autor de milhares (sem hipérbole) de crônicas ao longo de meio século.”

(SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 627). O último da tipologia de Walnice é o “Tipo

refratário”, ilustrado por João Guimarães Rosa, “para quem o jornalismo não tem a menor

importância, é aleatório e inteiramente subjugado à literatura” (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 627). Walnice nos lembra aqui que, as únicas contribuições sistemáticas de Rosa para jornal teriam sido para o jornalzinho de médicos Pulso, e que resultariam depois no livro Tutaméia – Terceiras estórias.

Para finalizar, Walnice Pereira Galvão (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 628), na parte final de seu texto, nos apresenta outro importante momento da discussão sobre as relações entre o ofício jornalístico e o literário falando do trabalho de Humberto

Werneck52, que trata das relações entre escritores mineiros e o jornalismo. Pois, em Minas,

essa relação foi perene e intensa no decorrer do século XX. Outro ponto fundamental da questão apresentada no texto de Walnice (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 629) refere-se a determinante contribuição dos cronistas para a configuração da língua portuguesa moderna:

Mas devemos aos grandes cronistas brasileiros algo mais do que muitos momentos de prazer que eles nos deram com suas crônicas. Devemos a eles a língua portuguesa moderna. Foram os cronistas que, com sua vocação literária infiltrada nos jornais, ensinaram esses jornais a escrever. Compare as crônicas de Rubem [Braga], Fernando [Sabino], Paulinho [Paulo Mendes Campos] ou Elsie [Lessa] com o texto dos jornais publicados em volta delas nos anos 50. O contraste será chocante. De tanto abrigar a escrita clara e direta desses cronistas, os jornais foram se envergonhando do ranço acadêmico, da sensaboria verbal e, no caso dos articulistas, da empáfia engomada e da seriedade oca. A contribuição dos cronistas ainda espera por um estudioso sério que a avalie. (SÜSSEKIND&DIAS, 2004, p. 628).

51 Walnice no lembra que as crônicas de Oswald de Andrade foram reunidas por Vera M. Chalmers no livro Telefonema, (1996).

Quando se trata dessas relações fronteiriças entre os gêneros de escrita literária e os gêneros jornalísticos muitas e polêmicas questões se levantam diante de qualquer empresa que se pretenda nesses domínios. Como no caso do estudo da crônica, situada entre a

ficção e a não-ficção. Assim, é importante ter-se em conta o que fala Alfredo Bosi53 sobre

esses os gêneros de fronteira, cujas relações às vezes tendem mesmo a impossibilitar que se fale nas tradicionais fronteiras entre os gêneros de escrita, literária ou não.

2.2- O Pavão

Eu considerei a glória de um pavão ostentando a esplendor de suas cores: é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas dágua em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. (BRAGA, 2004, p. 237)

Definir o gênero crônica como sendo o pavão da literatura brasileira é, em primeiro lugar, nos termos apresentados pela crônica que leva esse nome, a defesa de um gênero “menor”. Em segundo lugar, a tentativa de mostrar que esse gênero não é verdadeiramente menor, a não ser que tal definição recaia sobre sua extensão, geralmente curta, e “menor” que a de outros gêneros extensos, como o romance.

É que como vemos na crônica “O pavão”, de Rubem Braga, a economia de elementos utilizados para a composição, o fato de seu espaço ser previamente delimitado na página do jornal, o tempo exíguo com o qual geralmente trabalha o cronista para escrever uma crônica, a sua matéria geralmente retirada do cotidiano partilhado entre cronista e leitor, a relação de sua crônica com as outras notícias trazidas pelo periódico, e pela linha editorial do jornal onde o cronista se apresenta, tudo isso, ou melhor, toda essa exigüidade e cerceamento das liberdades __ de criação, execução __ com as quais o cronista é obrigado a lidar, por outro lado, lhe possibilitam fazer da crônica uma exuberante forma de arte escrita.

53Bosi, Alfredo. “As fronteiras da Literatura” In: Gêneros de fronteira: Cruzamentos entre o histórico e o

A epígrafe acima não poderia ter sido retirada de outro escritor que não um cronista, na verdade do grande cronista Rubem Braga, particularmente caro ao nosso trabalho por ser, além de um importante nome da crônica, um amigo pessoal de Clarice, e

ainda por ter sido pela escritora, definido como o “inventor da crônica”, por ela

entrevistado54, por ela, enfim, reconhecido e evocado como paradigma de escritor cronista.

A crônica de Braga, “O pavão”, encontra-se também citada nas páginas do famoso

prefácio de Antonio Candido ao 5º volume de crônicas da série Para gostar de ler55,

quando trata de apresentar o gênero naquilo que o definiria em relação aos outros gêneros

literários e em sua posição no interior da literatura brasileira. Essa mesma crônica, “O

pavão”, será citada, também, por Jorge de Sá em seu livro A crônica, 1985, p.13. Nesse

prefácio, Antonio Candido, por um lado, parece atrelar a perenidade da crônica ao fato de estar ela ligada ao jornal, mas por outro esclarecer uma diferença fundamental da crônica frente aos outros gêneros que tiveram no jornal um suporte para sua materialização.

Pois, se outros gêneros tiveram no jornal o suporte que lhes possibilitou ascensão, isso não se deu propriamente com a crônica. Isso decorre, segundo ele, do fato de ser a crônica “filha do jornal e da era da máquina,” (CANDIDO, 1992, p. 15). Ou seja, filha daquela efemeridade inerente ao espaço do jornal, no qual tudo o que nasce pela manhã como notícia morre pela noite como papel de embrulho. Não há aqui nenhuma esperança ou pretensão de durabilidade por parte da crônica. Mas, continua ele, se a crônica muda de suporte e passa ao livro, revela-se, para surpresa nossa e dela própria, de uma durabilidade muito maior que a esperada (CANDIDO, 1992, p. 15).

Tal fato se daria, no “... caso da crônica, talvez como prêmio por ser tão

despretensiosa, insinuante e reveladora.” (CANDIDO, 1992, p. 22). Mas, poderíamos ver

aqui inscrito algo que não fosse apenas uma promessa, um prêmio de consolação que “talvez” venha a compensar, quando da publicação em livro, a gratuidade com a qual o gênero se dá aos seus leitores? Quer parecer-nos que não. A crônica inegavelmente nasce para morrer com o jornal, naquilo que esse suporte tem de descartável e vida útil reduzida ao espaço de um dia, pois, ao contrário do romance, do conto, e até mesmo do folhetim,

54“Entrevista de Rubem Braga”, em Entrevistas, de Clarice Lispector, organizado por Claire Williams, (2007,

p. 18-21).

55Publicado originalmente como prefácio em Para gostar de ler: crônicas, vol. 5 (São Paulo: Ática, 1981-4).

Nesse quinto volume estavam presentes os cronistas: Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino. Esse prefácio de Antonio Candido, “A Vida ao Rés-do-Chão”, foi também publicado como introdução ao livro A Crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. (Editora da UNICAMP e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992).

que este sim era colecionado pelos leitores, a crônica compartilha por definição do destino do jornal, e morre com ele, como a seção de anúncios, como a seção dos obituários, como as notícias do dia que só tem valia naquele dia. Antonio Candido, nessa sua introdução argumenta também que:

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor. (CANDIDO, 1992, p. 13)

Mas nos parece também que, a crônica possui uma singular capacidade de nos atingir, na sua aparente despretensão acaba por se aproximar mais de nós leitores e aí agir, e aí mostrar-se de uma insuspeita profundidade. Porém não se trata, no caso da crônica, da profundidade no sentido tradicionalmente alcançado pelos grandes gêneros literários. Fala- se aqui de “uma certa profundidade” (CANDIDO, 1992, p. 14), pois a crônica implicaria, inerentemente, em despretensão e, acrescentaríamos lembrando David Arrigucci (1987), humildade de estilo.

A proximidade que o gênero crônica mantém com do cotidiano, segundo Candido, lhe permite “estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas.” (CANDIDO, 1992, p. 22). Ela, situando-se no terra-a-terra cotidiano de seu leitor,

assumindo o tom de cumplicidade de uma simples conversa pode “recuperar” a

profundidade de significado e “... certo acabamento de forma” capazes de possibilitar que

ela se apresente como uma “... inesperada embora discreta candidata à perfeição.”

(CANDIDO, 1992, p. 22).