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Devemos levar em conta que, a famosa fala de Mário__ de que um conto seria tudo aquilo que o autor assim chamasse__, foi adaptada por Fernando Sabino como resposta também ao que de fato seria a crônica. E ainda que algumas características inerentes ao conto possam se ausentar da crônica, e vice-versa. E que, em alguns casos pode vir a ser inútil ou impraticável a distinção entre conto e crônica, como em Clarice por exemplo.

E se pudéssemos aqui definir ambos os gêneros, conto e crônica, um naquilo que o distinguiria do outro, iriamos afirmar que a crônica é o relato, enquanto o conto é a elaboração de uma narrativa; a crônica por definição há de ser leve, enquanto que o conto o será, se conseguir articular elementos composicionais suficientes para causar no seu receptor a impressão dessa leveza; a crônica trará geralmente, ou necessariamente até, um

67 Iniciando com “A mineira calada”, (25 de novembro de 1967, DM, 1999, p. 47-48), “A vidente” (25 de

novembro de 1967, DM, 1999, p. 48), “Agradecimento?” (25 de novembro de 1967, DM, 1999, p. 48), “A

coisa”, (25 de novembro de 1967, DM, 1999, p. 48), “Por detrás da devoção”, (2 de dezembro de 1967, DM, 1999, p. 49-51), “Das doçuras de Deus”, (16 de dezembro de 1967, DM, 1999, p. 53-55), “De outras doçuras de Deus”, (16 de dezembro de 1967, DM, 1999, p. 55).

lastro referencial, seja com relação ao “eu” autoral, seja com relação aos acontecimentos do dia-a-dia de seu receptor. E mesmo assim, teríamos que admitir que, ao nos debruçarmos sobre o conto podemos nos deparar com essas características em tese próprias à crônica e vice-versa.

Podemos, como no caso de Lispector, encontrar contos que assim são chamados porque assim a autora os chamou, pois já os havia publicado como crônicas de jornal, ou crônicas que eram inicialmente contos e foram parar no jornal com leves ou nenhuma

alteração68. Resta-nos aqui lembrar que a única diferença mais patente entre os gêneros,

conto e crônica, refere-se à questão do valor, pois, ambos os gêneros tiveram valoração bem distinta e foram situados em posições opostas no interior do cânone literário, o conto, incontestavelmente um gênero maior, já a crônica, sempre foi considerada um gênero menor.

Mas a valoração da crônica, bem como a de outros gêneros tradicionalmente considerados menores tende a mudar na medida em que mais contemporaneamente a teoria e crítica literária e a crítica literária cada vez mais recorrem a esses gêneros menores na tentativa de melhor abordar a obra de um dado escritor. Voltemos a Clarice, cuja correspondência serve de exemplo, junto com a sua crônica, de que aqui tratamos mais detalhadamente, de como os escritos dos chamados gêneros menores serve-nos para nos aproximarmos com mais propriedade das concepções dos escritores sobre seu próprio ofício, quando se encontram em espaços outros de escrita que não necessariamente os da ficção.

Aqui seria oportuno lembrar o prognóstico do professor Reinaldo Marques em seu artigo “Memória literária arquivada”, quando em sua conclusão, entre outras coisas fala dos possíveis impactos que as pesquisas em arquivos literários podem causar sobre os estudos literários:

68 O livro de contos A legião estrangeira, é um bom exemplo desse procedimento: O conto “A legião

estrangeira”, já citado aqui por sua presença em A descoberta do mundo, foi publicado no Jornal do Brasil como a crônica: “A princesa – Noveleta, publicadas entre 3 e 30 de agosto de 1969, em quatro partes, (DM, 1999, p.216-228). O conto “O ovo e a galinha”, foi publicado como crônica de três partes, como o título de “Atualidade do ovo e da galinha”, entre 5 e 19 de julho de 1969, (DM, 1999, p. 206-212). O conto “A repartição dos pães”, foi publicado como a crônica “Olhava longe, sem rancor”, em 21 de junho de 1969, (DM, 1999, p. 202-204). Já o conto “A quinta história”, consta entre as crônicas de A descoberta do mundo, como a crônica: “Cinco relatos e um tema”, publicada em 26 de julho de 1969 (DM, 1999, p. 214). O conto “Evolução de uma miopia”, foi publicado como a crônica “Miopia progressiva” em duas partes, entre 1º e 8 de agosto de 1970, (DM, p. 299-304). O conto “Os obedientes” foi publicado no Jornal do Brasil como a crônica “Os obedientes”, em duas partes e com algumas alterações, em 2 e 9 de dezembro de 1972. (DM, 1999, p. 436-440). Por fim, o conto “Uma amizade sincera” consta entre as publicações cronística de Clarice como a crônica “Os grandes amigos”, de 10 de março de 1973, (DM, 1999, p. 454-456).

promovendo alguns deslocamentos especialmente no âmbito da literatura comparada. Essas pesquisas certamente ampliarão o corpus de materiais postos em comparação, potencializando uma tendência já marcante do comparatismo literário. Desfazem o privilégio do texto acabado, da obra, em sua fatura lingüística, para colocar em cena os manuscritos, as correspondências, as fotografias, os recortes, as coleções. O tratamento museográfico e cenográfico dos acervos literários, ao realçar as coleções de obras de arte dos escritores (pinturas, esculturas, desenhos etc.), estimula o diálogo interartístico, possibilitando aproximar e contrastar as artes. (...)

Nessa direção, entendo que o trabalho em arquivos literários, fomentando a pesquisa com fontes primárias, por um lado contribui para revitalizar as disciplinas dos estudos literários, a exemplo da história da literatura, mas, por outro, no longo prazo, haverá de aprofundar a crise do paradigma disciplinar moderno, ao incrementar o trânsito entre os saberes, as tópicas transdisciplinares, desvelando um cenário pós-disciplinar. Na medida em que problematizam categorias canônicas dos estudos literários, tais como: texto, obra, autor, valor estético universal, os saberes do arquivo tornam mais rarefeitos os fundamentos das disciplinas acadêmicas. Como remédio e veneno – um verdadeiro phármakon –, reclamam a reinvenção do campo dos estudos literários e culturais no mundo acadêmico e nas práticas sociais. (Reinaldo Marques, ALETRIA, 2008, p. 116-117) Dito isto, voltemos à Clarice Lispector. Pois é no espaço de suas cartas que ela dirá não ter problemas em se copiar. Na verdade, como diz no fim da carta para o amigo Lúcio

Cardoso, “Perdoe carta tão mal escrita. É que detesto recopiar, sempre que copio

transformo.” (LISPECTOR, 2002, p. 71). E esse procedimento da cópia será utilizado no

caso dos contos de A legião estrangeira (1998).

Interessante que se a segunda parte de A legião estrangeira, intitulada Fundo de

gaveta, se originou das crônicas publicadas na revista Senhor, na qual Clarice atuou “até o final da primeira fase da revista, (...), de março de 1959 a janeiro de 1964, quando, então

ela já estava separada do marido e voltara definitivamente ao Brasil.” (Nunes, 2006, p. 73).

Esse desmembramento de A legião estrangeira também seria assunto da entrevista ao MIS em 1976. Quando perguntada se utilizara suas anotações para Água viva como crônicas no

Jornal do Brasil, Clarice afirma que sim, pois odiava escrever crônicas, e aliás afirma que

suas publicações no JB não eram crônicas, e sim “textos”. Em seguida Clarice é

perguntada sobre a sua seção na revista Senhor:

Marina Colasanti: O Children’s Corner era o mesmo processo de você utilizar as

tuas anotações, não é Clarice?

Clarice Lispector: Sim, as anotações Children’s Corner fazem parte do livro A legião estrangeira, que traz uma parte de contos outra de textos, que o Otto Lara Resende disse: “Bota o título „Fundo de gaveta‟.” O livro foi inteiramente abafado pelo A paixão segundo G.H., que saiu na mesma ocasião. Agora nessa segunda edição, a Ática quer publicar só os contos e depois as anotações.

(...)

Clarice Lispector: Sim, vão separar os contos das crônicas, mas só que o volume

das crônicas já não se chama mais “Fundo de gaveta”, que é detestável, chama-se

Para não esquecer69. (LISPECTOR, 2005, p. 148)

E qual seria a melhor abordagem para a relação de Clarice Lispector, “a não

profissional em apuros financeiros”, como a definiria Walnice P. Galvão

(SÜSSEKIND&DIAS, 2004 P. 625), com a crônica? Seria totalmente correto aceitarmos que a escritora jamais se adaptou ao peculiar espaço da escrita cronística? Seria, por outro lado, crível que ela tenha se dado a conhecer, desnudando sua intimidade aos seus leitores por inépcia no trato com a crônica? Ou seria ainda possível vislumbrarmos em suas crônicas a inscrição de um espaço múltiplo, formado tanto de suas ficções quanto de suas memórias, numa trama tecida de carne e verbo, até não mais distinguirmos onde termina a ficção e começa a vida de Clarice?

A relação de Clarice com a literatura sempre foi particular, se não foi de negar seu parentesco com outras obras da literatura e seus grandes autores, __ principalmente aqueles com os quais foi comparada deste seu romance de estréia em 1943: James Joyce e Virgínia Woolf, por exemplo__; foi a de escamotear a importância de tais obras e autores para a constituição de sua escritura. Clarice raramente assumia que houvesse recebido influências de outras obras e autores sobre seu trabalho.

Quando o fazia, e admitia conhecer esse ou aquele livro, de escritores como Kafka, ou mesmo Joyce, Woolf, ou Sartre, admite ter tido contato com suas obras geralmente depois de ter escrito esse ou aquele livro. É assim que ela age durante a entrevista ao MIS, quando perguntada por Marina Colasanti se o titulo de Perto do coração selvagem havia sido tirado de Joyce, ela responderia: “É de Joyce sim. Mas eu não tinha lido nada dele. Eu

vi essa frase que seria como uma epígrafe e aproveitei.” (LISPECTOR, 2005, p. 144).

Segue-se a isso uma passagem em que Clarice vai negar a relação de Joyce com sua personagem Ulisses do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1998), explicando que Ulisses fora na verdade um rapaz que ela conheceu na Suíça e que naquela ocasião apaixonara-se por ela. Ao ser perguntada por Marina Colasanti se era verdade que

ela também tinha um cão chamado Ulisses, respondera do seguinte modo: “Tenho um

cachorro chamado Ulisses, sim.” (LISPECTOR, 2005, p. 144).

69 Infelizmente a escritora que morreu antes da publicação do Fundo de gaveta como o livro de crônicas Para não esquecer, em 1978, ano seguinte a sua morte.

Dando seqüência a entrevista, Afonso Romano da Sant‟Anna diz a Clarice o seguinte: “O que a crítica sempre exaltou no seu trabalho é que você surgiu com um estilo pronto: não era um estilo em progresso. Em Perto do coração selvagem você já era Clarice Lispector e era ainda uma menininha de dezessete, dezoito anos.” E imediatamente temos a resposta da escritora em pleno acordo com o que o entrevistador afirmara: “Engraçado que eu não tenha tido influências. Já estava guardado dentro de mim. Eu já tinha escrito contos antes disso”. (LISPECTOR, 2005, p. 144).

O nosso interesse aqui reside no fato de que, apesar dessa notável aversão da autora para com sua vinculação, ou melhor, para com a tentativa de filiação de sua escrita às obras de outros grandes escritores, percebemos em suas crônicas, como no presente caso, uma farta coleção de citações de grandes escritores de literatura. Obviamente que em Clarice muitas vezes as fontes de suas citações podem vir apagadas, por “mero esquecimento” da autora, ou mesmo pelo fato dela afirmar não ser importante tal origem:

Todos aqueles que fizeram grandes coisas fizeram-nas para sair de uma dificuldade, de um beco sem saída.” Traduzo isso do francês, frase encontrada num caderno de notas antigo. Mas, quem escreveu isso? quando? Não importa, é uma verdade de vida, e muitos poderiam tê-la escrito. (DM, 1999, p.399)

Voltemos a entrevista de Clarice ao MIS, pois, quando perguntada por João

Salgueiro se havia algum autor que lhe tivesse influenciado mais, Clarice responde: “Olha,

que eu saiba, não.” (LISPECTOR, 2005, p. 159). Não se dando por vencido, torna Salgueiro, perguntando se a escritora nunca havia sentido um impacto violento com algum

livro, ao que Clarice responderá, ainda evasiva, que sentira sim, mas “um pouco”, e “às

vezes.” E continua, agora assumindo que sentiu tal impacto diante de uma leitura: “Senti com Crime e castigo, de Dostoiévski, que me fez ter uma febre real, O lobo da estepe

[Herman Hesse] também me virou toda...” (LISPECTOR, 2005, p. 159).

Em seguida Clarice perde o rumo da conversa e vai falar de seu primeiro emprego quando, “...tinha treze ou quatorze anos, ainda estava no ginásio, mas era professora

particular de português e de matemática... A propósito, por que eu estou falando nisso?...”

(LISPECTOR, 2005, p. 159) Aí se lembra que se trata de sua relação com os livros que lhe

marcaram e começa a contar a história de como, “com o primeiro dinheiro que eu ganhei,

meu primeiro mesmo, entrei, muito altiva, numa livraria para comprar um livro”,

repente eu disse: „Ei, isso aí sou eu.‟ Eu não sabia que Katherine Mansfield era famosa,

descobri sozinha. Era o livro Felicidade.” (LISPECTOR, 2005, p. 159).

Essa história é contada por Clarice algumas vezes, em espaços diferentes, na crônica “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas” 24 de fevereiro de 1973, a escritora diz:

Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield. (DM, 1999, p.452)

Notamos que Clarice parece ter urdido um roteiro para responder a entrevista, nos moldes daqueles que passava aos seus entrevistados para que eles mesmos respondessem sobre suas vidas. Ou que ela tenha escrito a própria trajetória do mesmo modo como

escreveu as trajetórias dos personagens de sua ficção.70

E, que Clarice não se refere a Mansfield como “escritora”, mas sim como “um dos

melhores escritores de sua época”, o tratamento no masculino não parece referir-se a tentativa de inserir a escritora neozelandesa no plural da categoria, escritores. Ou pelo fato desta estar sozinha enquanto escritora, mesmo porque um dos grandes nomes da literatura inglesa, Virginia Woolf, era contemporânea de Mansfield. Não sendo esse o caso, a solidão de Mansfield, enquanto mulher escritora de língua inglesa em seu tempo, talvez seja importante lembrar que era comum a Clarice Lispector manifestar-se assim, no masculino,

também com relação a si mesma, por acreditar, segundo ela que a entidade “escritor”

estivesse acima das questões dos gêneros, masculino e feminino.

E por falar em Woolf, na seqüência da entrevista ao MIS, Clarice será indagada sobre sua relação com a escritora inglesa, quando Afonso Romano da Sant‟Anna lhe

70 Apresentamos aqui a nota de Teresa Cristina Montero Ferreira, sobre essa questão na sua biografia sobre

Clarice: “Clarice declarou, na crônica “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”, ter comprado o livro

Felicidade aos 15 anos de idade, com seu primeiro ordenado, sem mencionar onde trabalhava. Já na entrevista concedida ao MIS, ela afirmou ter comprado o livro com 13 ou 14 anos, com o primeiro ordenado ganho como professora particular. Já em entrevista ao Pasquim ela contou que o referido livro foi comprado com o primeiro ordenado ganho com seu trabalho em jornal. Levando em consideração que Felicidade foi traduzido no Brasil em 1940, pela Livraria do Globo, no mesmo ano em que ela começou a trabalhar em jornal, constatamos que Clarice não pode tê-lo comprado em 1935, quando tinha 15 anos.” (FERREIRA, 1999, p. 75).

pergunta: “E Virginia Woolf, com quem o próprio Álvaro Lins tentou, parece, comparar você.” (LISPECTOR, 2005, p. 159). A resposta de Clarice será apenas a de que não tinha

lido Virginia Woolf na época em que escreveu seu primeiro romance, dirá aliás que, “...

dela só [leu] Orlando.” (LISPECTOR, 2005, p. 159).

O assunto é de grande interesse para os entrevistadores de Clarice pois, João Salgueiro emenda a pergunta anterior com o seguinte: “E Franz Kafka?” (LISPECTOR, 2005, p. 159). A resposta de Clarice não varia muito quando se trata de autores que

poderiam ter influenciado a constituição de sua obra, assim ela responde: “Kafka eu fui ler

muito mais tarde, quando já tinha publicados muitos dos meus livros. Eu sinto uma

aproximação muito boa, mas eu já tinha escrito muitos livros antes de ler suas obras...”

(LISPECTOR, 2005, p. 159).

Mas como negar que várias relações intertextuais se fazem presentes na obra de Lispector, como desconsiderar que a escritora costumava citar vários autores e trechos de obras, ou simplesmente incorporar ao seu texto trechos de outros escritores. E como negar que ela apresentava uma peculiar tendência a não tratar publicamente de suas relações literárias, mas que em cartas, por exemplo, falava daqueles escritores que mais a

impressionavam. E que crônicas como aquela, “Cisne”, 27 de novembro de 1971,

inevitavelmente remete ao “Albatroz” baudelairiano, no sentido que o sentimento de

inadequação, que recai autoreflexivamente sobre a constituição da própria vida da escritora, se apresenta em termos bastante próximos:

Mas foi no vôo que se explicaram seus braços compridos e desajeitados: eram asas. E o olho um pouco estúpido, aquele olhar estúpido só combinava com as larguras do pensamento pleno. Andava mal no diário, mas voava. Voava tão bem que até parecia arriscar a vida, o que era um luxo. Andava ridículo, cuidadoso, o pato feio. No chão ele era um paciente. “Cisne” (DM, 1999, p. 390)

Lembrando que esta crônica “O cisne”, publicada em A descoberta do mundo, (1999) teve uma versão anterior, presente no livro Para não esquecer que também reúne crônicas de Clarice, com o título de “Um pato feio”:

Mas foi no vôo que se explicou seu braço desajeitado: era asa. E o olho um pouco estúpido, aquele olhar estúpido dava certo nas larguras. Andava mal, mas voava. Voava tão bem que até arriscava a vida, o que era um luxo. Andava ridículo, cuidadoso. No chão ele era um paciente. (PNE, 1999, p. 18)

A diferença dessa versão anterior àquela de A descoberta do mundo (1999) refere- se ao fato de que aqui não se encontra presente a dimensão mais sutil, reflexiva e filosófica

por onde “voa” o tal animal. Nessa versão da crônica em Para não esquecer (1999), estamos mais próximos de um animal deslocado de seu habitat, do que de um ser cujas capacidades não estão em acordo com as cobranças da vida cotidiana, como seria o caso do escritor, do ser artista, enfim.

E se nessa crônica não estivéssemos assim tão próximos do albatroz baudelairiano, outras há em que estaríamos ao menos próximos daquele patinho feio, do conto famoso. Que foi, segundo dirá Clarice em outra de suas crônicas, uma de suas primeiras leituras:

A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio __ quem sabe eu era um cisne? (DM, 1999, p. 452) Ainda que raramente admita sua relação com outros escritores, no sentido de ter sido influenciada por eles, Clarice dialoga com vários deles e ainda com sua própria obra. Ela pratica, ainda que de forma esparsa, ou melhor, diluída e não marcada, na verdade, discretamente, a auto-citação. Um exemplo interessante da utilização desse recurso seria o

conto “A partida do trem” 71, pois nesse conto, das duas personagens em torno das quais

gira a narrativa, uma é a viúva Dona Maria Rita, e a outra é Angela Pralini. Nesse conto Clarice, através de sua personagem Angela Pralini, citará ainda um trecho de outro de seus

contos de Onde estivestes de noite72 (1999):

A velha era anônima como uma galinha, como tinha dito uma tal de Clarice falando de uma velha despudorada, apaixonada por Roberto Carlos. Essa Clarice incomodava. Fazia a velha gritar: tem! que! haver! uma! porta! de saííída! E tinha mesmo. Por exemplo, a porta de saída dessa velha era o marido que voltaria no dia seguinte, eram as pessoas conhecidas, era a sua empregada, era a prece intensa e frutífera diante do desespero. Angela se disse como se se mordesse raivosamente: tem que haver uma porta da saída. Tanto para mim como para dona Maria Rita. (Onde estivestes de noite, 1999, p. 32)

E apresentando aqui esse trecho de modo a relacioná-lo também com o que se passa intimamente com as personagens, tanto Angela Pralini quanto Dona Maria Rita. A autocitação nesse conto, insere a história anterior, no que se narra. E esta história anterior resume, o enredo do conto presente, “A partida do trem”. E insere ainda nesse conto